novembro-dezembro. no IPJ e não só. (novembro e dezembro é MUITO BOM)

(faremos depois post mais perfeitinho. por agora, a indicação dos filmes e suas sinopses)

SESSÕES ESPECIAIS

4ªf, dia 17 Novembro, 21h30, Biblioteca Municipal
Ante-Estreia de JOSÉ & PILAR

de Miguel Gonçalves Mendes, Portugal/Espanha/Brasil, 2010, 125’, M/12
Com o Alto Patrocínio do Governo Civil de Faro
PRESENÇA DO REALIZADOR

Documentário sobre a relação entre José Saramago e a sua mulher Pilar Del Rio, através do registo do dia-a-dia em Lanzarote e das suas viagens de trabalho pelo mundo. O filme relaciona o romance “A Viagem do Elefante” com a própria experiência do autor durante o processo de criação deste livro.


6ªf, dia 26 Novembro, 21h30, Grande Auditório de Gambelas
FILME DO DESASSOSSEGO

de João Botelho, Portugal, 2010, 104’, M/12
Co-Organização com a Reitoria da Universidade do Algarve
PRESENÇA DO REALIZADOR

O Livro do Desassossego é uma obra central da literatura portuguesa, das mais traduzidas a nível mundial, que chega agora ao cinema, dando corpo a Bernardo Soares, o quase-heterónimo que Pessoa criou para espelhar a sua vida diária em Lisboa, e às projecções que João Botelho construiu da cidade.







Ciclo NÃO HÁ LIBERDADE SEM LIBERTAÇÃO - IPJ - 21H30
com o apoio da Civis (Associação para o Aprofundamento da Cidadania)

NOVEMBRO

DIA 8
HISTÓRIAS DA IDADE DE OURO

de Hanno Höfer, Razvan Marculescu, Cristian Mungiu, Constantin Popescu, Ioana Uricaru, Roménia/França, 2009, 155’, M/12

Os últimos 15 anos do regime de Ceausescu foram os piores na história da Roménia. No entanto, a máquina de propaganda referiu-se a essa época como os anos de ouro... Mitos surpreendentes, cómicos, bizarros abundavam, mitos que derivavam de acontecimentos por vezes surreais do quotidiano sob o regime comunista. O humor fez com que os romenos sobrevivessem e este filme tenta encontrar esse espírito. O filme combina várias histórias verdadeiras para retratar uma era em que a comida era mais importante que o dinheiro, a liberdade mais importante que o amor e a sobrevivência mais importante que os princípios.

DIA 15
CANINO

de Yorgos Lanthinos, Grécia, 2009, 94’, M/18

O pai, a mãe e os três filhos vivem numa casa nos subúrbios da cidade. À volta dela, existe uma cerca alta que as crianças nunca passaram. São educadas, entretidas e exercitadas pelos pais, sem qualquer influência do exterior. Acreditam que os aviões são brinquedos e que os zombies são pequenas flores amarelas. Uma alegoria sobre o funcionamento das ditaduras.
Prémio Un Certain Regard em Cannes e Grande Prémio do Estoril Film Festival.

DIA 22
IRÈNE

de Alain Cavalier, França, 2009, 83’, M/12

Para Alain Cavalier, que começou como assistente de Louis Malle e depois dirigiu Alain Delon, Catherine Deneuve ou Romy Schneider, a grande máquina do cinema tornou-se coisa morta: filma sozinho, só ele e a câmara, colada à vida das memórias da sua falecida mulher.

DIA 29
VÃO-ME BUSCAR ALECRIM

de Joshua e Ben Safdie, EUA/ França, 2009, 100’, M/12

Um homem irrequieto, dois miúdos reguilas e uma cidade acordada. De olhos bem abertos para a Nova Iorque de Vão-me Buscar Alecrim, o filme autobiográfico dos Irmãos Safdie.
Grande Prémio Indie Lisboa 2010.


DEZEMBRO

DIA 6
EMBARGO

de António Ferreira, Portugal, 2010, 93’, M/12

Nuno trabalha numa roulotte mas desde sempre teve um espírito criativo. Um dia, descobre algo realmente revolucionário: um digitalizador de pés que transformará, para sempre, toda a indústria do calçado. Mas, quando tudo parece estar a jogar a seu favor, o inesperado acontece: fica fechado no seu próprio carro e, para seu total desespero, parece que nada, nem ninguém consegue resolver o problema.
Adaptação de um conto de José Saramago, integrado no livro "Objecto Quase", publicado em 1978.

DIA 13
PUNK IS NOT DADDY

de Edgar Pêra, Portugal, 2010, 70’

PUNK IS NOT DADDY é uma viagem pelos anos oitenta, testemunhada por um cineasta neófito. Cine-diários das Ruínas do Chiado, rodagens, concertos dos GNR, Xutos e Pontapés, Sétima Legião, Delfins, o último ensaio dos Heróis do Mar, o anti-concerto de encerramento do Rock Rendez Vous.
Finalmente, arte em liberdade.

de 24 a 31, Festa do Cinema Francês. 14 sessões. 1 grátis. As outras a 3€. Passe para todas por 10€ (menores de 30 anos) e 20€

DE QUE É QUE ESTÃO À ESPERA????

Fui lá hoje - Teatro Municipal de Faro, já todos sabem, não é? - comprar os meus bilhetes (vou a 5 sessões) e aquilo (ainda) ESTÁ ÀS MOSCAS!!!!!

Ouçam:

ABRE COM O ÚLTIMO FILME DO JEUNET!! Sabem, aquele?... esse mesmo, o de Delicatessen? E É À BORLAAAAAAAAA! MICAMACS À TIRE LARIGOT (domingo, 24, 21h30):



E logo no 2º dia O MELHOR FILME DE TODOS, O MAIS AGUARDADO - mais propriamente, desde há... 7 anos!! - do ESPANTOSO criador de animação Sylvain Chomet, o de La Vieille Dame et Les Pigeons (curta) e da estrondosa longa Les Triplettes de Belleville/Belleville Rendez-Vous. Agora, finalmente, numa adaptação de um argumento nunca realizado de Jacques Tati, que Chomet homenageia figurando o Mr Hulot, L'ILLUSIONISTE (2ª, 25, 19h):



Na 4ª, 27, também às 19h, ELLE S'APPELLE SABINE, o documentário que a actriz Sandrine Bonnaire - 'madrinha' desta 11ª edição da Festa do Cinema Francês, que lhe dedica um ciclo do qual poderemos ver em Faro Mademoiselle e Sans toi, ni loi - fez da sua irmã autista, Sabine, recorrendo a imagens recolhidas ao longo de 25 anos. Comovente, claro está, e importante, como mensagem-testemunho do nosso desconforto (nosso, o da sociedade) em lidar com a diferença absoluta como no caso deste distúrbio.



Aceitem estas como sugestões minhas. Mas, aceitando-as ou optando por outros filmes, vão. Bom cinema, para além daquele que o CCF dá, não abunda pelas nossas bandas.

Certo? Certo.


2ªf dia 18 termina o nosso ciclo. e muito bem: EU SOU O AMOR. IPJ, 21h30.


Tilda Swinton é sublime num filme gloriosamente operático que reinventa o melodrama clássico e a saga familiar para um tempo em que eles já não existem.

Atente-se na "chave" que dá título a este grandíssimo filme: Maria Callas, ela própria, interpretando a ária da "Mamma Morta" de Giordano, na banda-sonora do "Filadélfia" de Jonathan Demme, que Tilda Swinton vê uma noite na cama à beira de adormecer, antes de o marido chegar e mudar de canal sem sequer lhe perguntar o que está a ver. A frase que Callas canta é "Io sono l'amore" - "eu sou o amor" - e é nesse momento em que o marido a ignora como mera presença utilitária que a divina, gloriosa Tilda toma perfeita consciência do seu papel na poderosa família milanesa. Ela é a verdadeira "mamma morta" (aliás, mais tarde, alguém lhe dirá "tu não existes"), até o amor lhe cair do céu, numa noite de Inverno, na pessoa de um visitante inesperado que nem sequer fica para tomar café.

É complicado explicar o que se passa em "Eu Sou o Amor" sem correr o risco de menorizar a terceira ficção de Luca Guadagnino, porque o que eleva o filme ao estatuto de obra-prima é a abordagem operática, virtuosa, formalista, estilizada, hiper-romântica e pós-modernista com que o cineasta siciliano encara o melodrama clássico e a saga familiar, o modo como ele instala no classicismo do género um corpo estranho através de Tilda Swinton. Vamos, ainda assim, tentar: conhecemos os Recchi, poderosa família industrial milanesa, à volta da mesa do jantar de aniversário do patriarca, que acaba de decidir deixar o negócio de família ao filho e ao neto. Nesse jantar que respira um travo de passado glorioso, de aristocracia fora-de-tempo, percebemos também o papel que as mulheres nele desempenham: Rori, a matriarca, fiel guardiã da tradição familiar; Betta, a neta, de temperamento artístico, que começa a sentir-se limitada pelas expectativas da família; e Emma, a mulher do filho, a anfitriã perfeita, uma mulher discreta que aceitou representar o papel que lhe foi distribuído. Mas que, muito rapidamente, compreendemos que não lhe chega.


Emma é, evidentemente, Tilda Swinton, e a sua presença introduz o pauzinho na engrenagem da saga familiar; é o tal "corpo estranho" de que falávamos - não apenas pela sua personagem ser uma "intrusa" que, aceite pela família, nunca se sentiu inteiramente parte dela, mas também porque a presença física da actriz, pálida, alta, observadora, cria um contraste, lança um desequilíbrio, introduz uma nota de dissonância no conforto luxuoso que a rodeia. Esse contraste é depois amplificado pelas cenas de exteriores rurais onde se desenrola o "affaire" de Emma, de uma sensualidade exacerbada que se opõe à rigidez estruturada do palacete dos Recchi. Guadagnino mantém essa emoção a borbulhar subterraneamente durante todo o filme (sabiamente sublinhada pela música do compositor minimal John Adams), para apenas a deixar sair em momentos judiciosamente escolhidos, como uma panela de pressão que já quase não consegue aguentar a tensão.

É inevitável pensarmos em mestre Visconti (há um travo de "O Leopardo" a passar por aqui, um fôlego de grande ópera italiana) ou em mestre Sirk (a transcendência da história banal através da encenação arrebatada e gloriosa), mas o que é notável em "Eu Sou o Amor" é que Guadagnino consegue marcar a distância dos mestres, criar o seu próprio modo de os actualizar e modernizar, sem medo de correr riscos e sem se retrair para não parecer ambicioso. Fá-lo com a preciosa ajuda da divina Tilda, a comprovar como é uma das maiores actrizes contemporâneas, e de um elenco impecável onde encontramos o actor e encenador Pippo Delbono e os veteranos Gabriele Ferzetti e Marisa Berenson (é impossível não recordar "Morte em Veneza"...), como quem sublinha que a estrutura rígida do melodrama exige o tal corpo estranho para rebentar por todos os lados e construir algo de novo que se insere numa tradição e a reinventa sem pruridos.

"Eu Sou o Amor" é uma obra-prima.
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Jorge Mourinha, Público


Não é Visconti quem quer e o milagre de "Sentimento", disseminando o pathos operático pela História e pela complexidade romanesca, não se repete facilmente, de tal modo reflecte uma visão fascinante e irrepetível do mundo. E, no entanto, "Eu Sou o Amor" entendeu a lição do mestre e não se limita a repetir estereótipos decadentistas e neo-barrocos, com a saga familiar de "O Leopardo" em mente, a voz magoada e langorosa de Maria Callas nos ouvidos, e o grande melodrama cinematográfico no olhar - de Visconti a Stahl ou Douglas Sirk, passando pelo quase sempre esquecido De Sica de "O Jardim dos Finzi-Contini", adaptado de Giorgio Bassani, uma referência literária tão incontornável em Luca Guadagnino como Lampedusa. O que faz deste filme uma sedutora revisão (é a palavra) da tradição melodramática é a sua improbabilidade narrativa, a noção da passagem do tempo, da inutilidade do "pastiche". "Eu Sou o Amor" faz todo o sentido, porque sabe que já aparece fora de moda, que se dirige a um paradigma morto, que se compraz num fim de mundo em que tudo mudou e nada muda. Por isso, Tilda Swinton se revela tão magnífica na contradição de uma personagem impossível, presa a uma sensualidade feita de esplendorosas ruínas fílmicas. Como diz David Thompson de "Amar Foi a Minha Perdição" de John M. Stahl, é um filme para se ver em estado febril e, acrescentamos, em melancólico êxtase. De outro modo, arriscamo-nos a uma reacção racional que "Eu Sou o Amor" não comporta.
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Mário Jorge Torres, Público


Eu sou o Amor é um banquete da aristocracia milanesa, daqueles que anos depois ainda se pensa: comi tão bem naquele dia. Àqueles que se perguntam, por onde tem andado o cinema italiano de Rosselini e Visconti, de que nem Moretti nem Benigni são sucessores, aqui têm uma boa resposta. Eu sou o amor é um filme eminentemente viscontiniano, a começar pelo ambiente aristocrata em que a história se desenlaça e a acabar pelo magistral domínio do movimento da câmara de Luca Gudagnino. É um filme de uma sumptuosidade rara, com a espessura psicológica de um romance clássico russo e a temática universal do amor. Sobretudo da explicação de um amor impossível e impassível perante as atrocidades da vida. Tilda Swinton (O curioso caso de Benjamin Button), que faz de russa que se casou com um aristocrata rico, cumpre um dos melhores papéis da sua carreira. O realizador já lhe tinha dedicado o documentário The Love Factory (2002), e aqui fá-la brilhar, inclusive quando a actriz inglesa finge que não sabe inglês. O percurso da personagem é de tal forma rico, que esta começa no pomposo e luxuoso almoço de família no seu palacete em Milão e acaba nua numa gruta na estrada de San Remo. A ascensão e queda dos Recchi.
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Manuel Halpern, Visão


Título Original: Io sono l'amore
Realização: Luca Guadagnino
Argumento: Luca Guadagnino, Barbara Alberti, Ivan Cotroneo e Walter Fasano
Direcção de Fotografia: Yorick Le Saux
Montagem: Walter Fasano
Música: John Adams
Interpretação: Tilda Swinton, Flavio Parenti, Edoardo Gabbriellini, Alba Rohrwacher,
Pippo Delbono, Diane Fleri, Maria Paiato, Marisa Berenson
Origem: Itália
Ano: 2009
Duração: 120’
Classificação: M/12



só mesmo nós para poder mostrar este filme: COMPRÁMO-LO! uma obra feita de trabalho artístico sobre a LUZ. aqui, bem aqui na nossa Ria Formosa.

Ciclo OLHARES FORASTEIROS - O Algarve num certo cinema

Museu Municipal (Sala audiovisual da Exposição Algarve Excêntrico, Utópico e Visionário, no r/c), 21h30, entrada livre

3ªf, Dia 12
NAS CORRENTES DE LUZ DA RIA FORMOSA

Jon Jost
EUA, 1999, 104'

(filme igualmente em exibição, no mesmo local, entre 13 e 31 Outubro, em sistema de sessões contínuas entre as 10 e as 16h, entrada livre)
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A purely visual documentary of a small beach and fishing village on the coast of Portugal's Algarve.
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site do realizador. aconselhamos! afinal, trata-se de um dos mais importantes documentaristas e artistas da actualidade!
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DECLARAÇÕES DO REALIZADOR
Nas Correntes de Luz da Ria Formosa (In the Rays of Light of Ria Formosa) is a kind of documentary shot over a period of 3 months in summer of 1997 and then edited over the next 2 and a half years. It utilizes the aesthetic nature of DV, and in this case of the particular quality of a specific DV camera, the SONY DX700, a camera which was withdrawn from the market quickly owing to apparent complaints about its focusing system. LUZ willfully uses this “problem” as the basis of its aesthetic: it is all a little to very much out of focus, which with this camera also produces a kind of aura or bloom in areas with brighter light. I liked this quality very much and shot about 12 hours of material in the small town of Cabanas, Portugal, and a bit in nearby Tavira. The work is a spiritual portrait of a place and time. It is, as is Cabanas, willfully slow, meditative, passive. It has no evident narrative, though I hope I was able in my editing and other choices to impart a kind of slowly developing momentum which functions vaguely like a narrative, or like the melodic line in a piece of music. Finally LUZ is about light, and philosophically about life, and our place on this planet, and its place in the universe.



Nas Correntes de Luz Ria Formosa is a tour de force in which Jost employs a defective camera for a sublimely distracted variation on the city symphony film. The defective camera yields a range of out-of-focus images which emerge in the film as semi-abstract landscapes with blurred lines and edges. The images look more like paintings than photos, although movement, sound, a sense of off-screen space, and the sensation of stray, suspended moments in time contribute to a multi-dimensional effect that seems to transcend both painting and photography. Human figures pass through some of the images, but they play only transient and marginal roles in the overall narrative. The scenes and shots are evocative of city life, but with soft outlines that suggest settings of an entirely different sort. The implied author of these images seems caught up in a distracted gaze, one that is both averted and diverted – turning away from both the familiar and the dramatic, and finding a curious kind of peace in a sort of domesticated strangeness.
Peter Hogue (totalidade do artigo, com análise da filmografia do realizador)



1997-1999 Digital Video Color Sound 112 minutes

Camera, edit, and concept : Jon Jost

Music: Carlos Paredes, guitar, very much altered on computer.

Shown at Rotterdam 1999, Festival dei Popoli, Florence


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História do filme, pelo próprio:

«Querida Clarinha,

(...) Nós ficámos o Inverno em Londres, e no fim da Primavera fomos um mês para a Escócia onde efectuei pesquisa sobre um filme e fui convidado a fazer uma exposição de arte na Alemanha, a Dokumenta. Nesse Verão em 1995, regressei a Portugal, passando um mês ou mais em Cabanas, mudando-me depois para Lisboa, onde a tua mãe continuou a trabalhar no argumento do seu filme. Honestamente não me lembro bem da ordem das coisas nesta altura, mas creio que a tua mãe e eu ficámos um mês em 1996 em Cabanas onde filmei o meu primeiro filme em DV, Nas Correntes de Luz da Ria Formosa, e nesta altura a tua mãe ficou grávida de ti. Lembro-me de comprar um teste de gravidez para ela verificar, e de ver a pequena faixa de papel vermelha transformar-se em azul. E lembro-me de nós os dois em conjunto gritarmos: yes! Mudou as nossas vidas, e acrescentou a tua. Mudámo-nos então para Lisboa, para morar num sitio encantador em Alfama, com um largo pátio onde eu pintava e Teresa trabalhava ainda em Os Mutantes [sim: Teresa Villaverde]. Passei muitas horas a passear e filmar na área enquanto aguardava a tua chegada. Só agora, este ano, edito o material que filmei nesse ano, um retrato de um pequena parcela de Lisboa, no ano do teu nascimento. Espero terminar no fim deste ano esse trabalho, em conjunto com outro, Piccolli Miracoli, sobre ti e mim, a tua vinda a este mundo e os outros 3 anos e meio que estivemos juntos. Espero de facto terminá-lo neste ano. (...)

Amo-te
O teu pai, Jon»

(na íntegra aqui)

(jon jost tem, assim, um blog dedicado à filha: páginas para clara - letters to my daughter)


Last Tango in Paris

Last Tango in Paris

O mais fascinante, interpelativo, inteligente e original filme estreado em 2010: SHIRIN de Kiarostami. 2ªf, dia 11, 21h30, IPJ

Cento e catorze actrizes iranianas e uma actriz francesa: espectadoras mudas da representação teatral Khosrow e Shirin, um poema persa do século XII, encenado por Kiarostami. O desenvolvimento do texto – que sempre apaixonou os espectadores na Pérsia e no Médio Oriente – permanece invisível para o espectador do filme. Toda a história é contada pelos rostos intensos e belos das mulheres que assistem ao espectáculo. Um mapa de ricas e pungentes emoções. É um trabalho “fora de campo” levado ao limite.


Homenagem absoluta ao rosto feminino: um fascinante exercício do cineasta iraniano.
O que interessa Kiarostami são unicamente as mulheres. Elas constituem um retrato composto de Shirin. Mas são ao mesmo tempo um manifesto político. Uma tal acumulação de rostos femininos tem qualquer coisa de subversivo num país tão patriarcal como o Irão. Mas o que mais nos interessa é o mistério destes olhares, que acabam por nos criar uma vertigem. Este filme tem algo de profundamente perturbador: estas mulheres não são apenas o retrato colectivo de uma história de amor, e por isso da mulher iraniana em todo o seu esplendor heróico, e erótico, mas o retrato também do espectador de cinema em geral. O espectador é o realizador último do filme, são os seus olhos que o fazem existir. Sublime demonstração do cineasta iraniano.
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Vincent Ostria, Les Inrockuptibles

É este o convite de "Shirin": espectadores de cinema, venham ver outros espectadores de cinema. Que é feito de nós, espectadores de cinema? E lembramo-nos do que dizia Serge Daney, que vamos ao cinema para que o filme nos veja? Em primeiro lugar, "Shirin" é isto: um olhar - apetece dizer: "elegíaco" - sobre essa espécie que todos os relatórios dão como estando em vias de extinção, o espectador de cinema; e um filme que se põe no lugar do filme, como um plano subjectivo do próprio ecrã, no momento em que olha para os seus espectadores. Por outras palavras, é este o convite de "Shirin": espectadores de cinema, venham ver outros espectadores de cinema. É um resumo muito simples do filme? É. Mas é importante preservar essa simplicidade, porque também é dela que Kiarostami está à procura.

Olhos nos olhos, ou quase; questão de ângulos, a câmara deambula perante a plateia, em movimentos laterais, mas é raro que apanhe alguém a olhar directamente para ela, antes um pouco mais para o lado ou um pouco mais para cima, para o lugar do suposto écrã, onde está ser exibido um suposto filme baseado numa velha lenda persa sobre um amor de perdição (é a heroína dessa lenda, Shirin, que dá nome ao filme). O efeito especular não é, em rigor, total, mas a sua sugestão é fortíssima - e é por isso que a sua dinâmica conceptual pede que o filme seja visto em sala de cinema, em situação "clássica", pesem embora todas as vezes em que já lemos essa mesma dinâmica conceptual de "Shirin" ser comparada a uma "instalação", assim menorizando o sentido que o filme faz em condições tradicionais de recepção (sentido que, parece-nos, só nestas condições é pleno).


Isto é o geral, passemos aos pormenores, sobretudo a este, fundamental: a plateia é composta essencialmente por mulheres, cento e tal actrizes iranianas de todas as idades, no meio das quais Kiarostami sentou ainda a bem conhecida Juliette Binoche - e o efeito de reconhecimento de cada vez que ela aparece em campo é estranho, quase uma interrupção da "suspension of disbelief" ou coisa parecida, mas nada nos garante que Kiarostami não a convidou justamente em busca desse efeito. No seu segmento para o "A Cada um o seu Cinema" (o filme de conjunto promovido pelo Festival de Cannes) Kiarostami já ensaiara o caminho de "Shirin", e há uma sequência parecida com este dispositivo (usando, no caso, uma representação de teatro Nô) no "Pont des Arts" do tão vilipendiado Eugène Green. Não é, evidentemente, a "originalidade" que é importante, mas a sua transformação numa experiência contemplativa de fundo, que progressivamente converte a sua simplicidade poética numa crescente ambiguidade - "Shirin" é um filme sobre o rosto feminino, feito numa sociedade islâmica teocrática - e num novelo artificioso que no fundo é o mesmo de todos os filmes de Kiarostami. Contrariamente às evidências, as mulheres não estão a ver filme nenhum, nem é seguro que estejam a ouvir o que nós ouvimos (o som e os diálogos do suposto filme): olhamos para elas sem saber o que é "reacção" e o que é "representação", o que é "espontâneo" e o que é "encenação". Razão para suspeitar, ou mais do que isso, para afirmar, que "Shirin" é a mais sofisticada "mise-en-scène" do olhar que alguma vez alguém fez. Seguramente, a mais bela.
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Luís Miguel Oliveira, Público


Nunca se poderia imaginar que um só rosto de mulher, mudo, parado,simplesmente a olhar, pudesse conter em si tanta acção. Nunca se poderia imaginar que uma lágrima a extravasar de um olho e a percorrer uma face fosse todo um ensaio sobre a nostalgia feminina. Nunca se poderia imaginar que Abbas Kiarostami, o genial realizador iraniano, fizesse do seu filme Shirin este ensaio de homenagem às mulheres, colocando seus rostos na mais imaculada das visibilidades, num país em que muitas vezes andam vendados de censura e prepotência. E que as colocasse em primeiro plano, quando as conjunturas patriarcais e cruéis da religião as arredam lá para trás. Na humilhação das retaguardas.

É um filme de "fora de campo". Algo que já foi feito por Bergman, quando filmou as caras de quem assistia à ópera mas não a ópera em si. Ou mesmo por João César Monteiro quando colocou o célebre casaco em cima da câmara, em Branca de Neve - mas no caso de Kiarostami sem um pingo de provocação ou de intenção experimentalista. Uma actriz francesa (Julliette Binoche)e 114 actrizes iranianas, com belos olhos oblíquos (Machado de Assis chamar-lhes-ia "olhos de ressaca", com os de Capitu), magnificamente debruados por sobrancelhas que traçam aquele arco perfeito (como só têm as mulheres orientais), assistem na obscuridade da sala de cinema a um filme. Que é uma história de amor, de Shirin, uma princesa arménia enamorada pelo rei da Pérsia- poema persa do século XII, uma história tão famosa e matricial no Médio Oriente como o Romeu e Julieta para a cultura ocidental. Nós ouvimos a acção do filme a decorrer, os diálogos, as batalhas, tilintares, risos, prantos, cascos de cavalo, relinchares, arfares, música, restolhares de água, ondas, pingos ou as espadas a cravarem-se nas carnes. Mas todas as emoções são-nos dadas através das expressões (sobretudo dos olhos) destas mulheres que assistem. É uma espécie de transferência, como se fossemos atacados por um género de cegueira especial e nos estivessem a fazer uma tradução em simultâneo das paixões da alma através de uma linguagem não verbal. Que é esta dos olhos e das suas nuances e metamorfoses, e das suas águas que se esgueiram devagar e escorrem pela face, dos pequenos esgares, dos mínimos movimentos destas sobrancelhas perfeitas, dos sobressaltos, dos sorrisos nunca abertos, nunca desbragados, nunca sonoros e daquele subtil ajeitar do lenço, gesto lesto e tão típico das mulheres islâmicas. As mãos também fazem parte dos rostos, quando repousam no queiXo ou deslizam pela zona da testa. Também há homens nesta plateia, mas Kiarostami retira-os do enquadramento, corta-lhes a cabeça, só para mostrar a irrelevância da sua presença.

Alguns rostos são maravilhosos. A iluminação é extraordinária, às vezes parece que as actrizes têm aqueles véus de gaze que se usava na objectiva para dar um ar mais etéreo às estrelas e esconder as imperfeições e outras injúrias nos close ups, nos tempos do cinema mudo. O é importante é invisível aos olhos, diz uma frase famosa. Mas o que é importante pode ser visível no fundo destes rostos, canais directos para alma e o coração. E o fora de campo torna-se dentro outra vez através destes olhos que em vez de pupila preta têm o lampejo de brilho projectado pela tela. Através da banda sonora formam-se as imagens, criam-se em cada um de nós os protagonistas que dizem frases como "o amor aquece os homens as mulheres queimam-se". E neste efeito espelho, neste voieurismo sobre o voieurismo há um abismo sem margens, só com precipícios.
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Ana Margarida de Carvalho, Visão



sobre Abbas Kiarostami

“Numa sala de espectáculos, a arte sai dos espectadores” Henri Langlois

Era uma vez uma princesa. Tão bela, tão livre, tão disposta a seguir o seu desejo. Foi amada por um rei, Khosrow, e um trabalhador, Farhad. Amou um e outro. Foi infeliz e sincera, livre e destroçada. Chamava-se Shirin, a sua história é inspirada em personagens reais – o rei Khosrow II Parwiz (590-628) e a rainha da Arménia que deu nome a uma cidade hoje entre o Irão e o Iraque, Qasr-eChirin. Os amores de Shirin foram cantados pelo grade poema épico persa O Livro dos Reis, e depois, no século XII, o poeta Nezâmi dedicou à história sensual e trágica a sua obra Khosrow e Shirin, tornando-a tão célebre no Irão como na Europa o são Romeu e Julieta e Tristão e Isolda.

Era uma vez um artista de cinema. Explorou até aos confins a sua arte. E, no início da sua carreira, Abbas Kiarostami definia-se como artista e pedagogo e por isso descobriu muito cedo que a arte do cinema podia ajudar a compreender melhor o mundo e a fazê-lo compreender melhor. Realizou curtas-metragens que mostram práticas do quotidiano (Duas Soluções para um problema, Com ou sem ordem), e foi, enquanto cineasta, testemunha precisa da Revolução iraniana, como nenhuma outra revolução terá cronista, foi testemunha e analista (Caso 1, Caso 2), estudou, sempre graças à realização, os sistemas de ensino (Trabalhos de Casa) e de justiça (Close-Up) ou os comportamentos cívicos (O Concidadão). Havia nestes trabalhos de pesquisa mais beleza e graça que em tantos filmes auto-proclamados obras de arte, e sobretudo esta beleza e esta elegância afiguravam-se como os meios necessários para cumprir a
tarefa. Desde o início (O Pão e a Rua, a primeira curta-metragem, Traje de Casamento, a primeira média, à primeira longa-metragem, O Viajante), os filmes de ficção têm também esta marca desta forma de ver o mundo, sabendo filmá-lo com elegância.


Kiarostami afirma há muito tempo que nenhuma obra digna desse nome é dada terminada ao público, que assim seria reduzido ao estatuto único de consumidor, mas sim que só teria sentido se permanecesse aberta, para ser terminada por cada um. É no olhar e no coração dos espectadores que a obra fica terminada e que a sua tarefa é abrir apenas o mais possível o espaço em que cada um pode entrar. Não foi o primeiro a dizê-lo e a colocá-lo nas suas obras, mas são raros os que o tenham feito com tanta consistência e talento. Mas é o primeiro a empurrar esta lógica de inteligência na arte ao limite, filmando os espectadores para mostrar como os rostos e os corpos manifestam o que experimenta o espírito e os corações devante uma proposta artística. A primeira tradução concreta desta inversão foi o espectáculo Tazieh, em que Kiarostami filma em grande plano e mostra em grandes ecrãs os rostos (separados) de homens e mulheres que assistem, comovidos, a uma representação de uma peça religiosa que comemora todos os anos no Irão o massacre de Kerbala.

Belo como a paixão de Joana d’Arc de Dreyer, e constitui-se sobre o mesmo princípio, toda a emoção se joga nos rostos.
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Jean-Michel Frodon



Título original: Shirin
Realização: Abbas Kiarostami
Direcção de Fotografia: Mahmoud Kalari
Montagem: Abbas Kiarostami, Arash Sadeghi
Interpretação: Mahnaz Afshar, Pegah Ahangarani, Taraneh Alidoosti, Juliette Binoche...
Origem: Irão
Ano: 2008
Duração: 92’
Classificação: M/12


Óscar de Melhor Filme Estrangeiro - O SEGREDO DOS SEUS OLHOS é 2ªf dia 4 no IPJ. 21h30.



O vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro é uma pequena surpresa - um filme "mainstream" como Hollywood já deixou de saber fazer há muito tempo.

Há um problema muito sério a encimar qualquer abordagem a "O Segredo dos Seus Olhos": foi a este o filme que a Academia de Artes e Ciências de Hollywood atribuiu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, no ano em que concorriam à estatueta "Um Profeta", de Jacques Audiard, e "O Laço Branco", de Michael Haneke. Como é possível, perguntar-se-ão os mais atentos, que dois dos mais extraordinários filmes europeus recentes, entre eles uma Palma de Ouro em Cannes, tenham sido negligenciados em favor de um filme argentino que vinha apenas com a reputação de ser o maior êxito comercial da história do cinema local?


Obviamente, tal "escândalo" só o é se partirmos do princípio de que os Oscares premeiam a qualidade acima de tudo o resto - coisa que já por repetidas vezes compreendemos não ser verdade. Mas este é um caso em que vale a pena deixar de lado os preconceitos. Mesmo se assumirmos que o Oscar foi roubado a "Um Profeta" ou a "O Laço Branco", "O Segredo dos Seus Olhos" é uma pequena surpresa. Primeiro, pela elegância e pela inteligência com que abrange e entrelaça géneros muito diferentes (o melodrama romântico, o filme policial, o "thriller" político) num todo plenamente satisfatório. Segundo (e principalmente), pelo facto de este ser um filme exemplar de um tipo de cinema "mainstream" inteligente, adulto, sóbrio, que Hollywood produzia em tempos desembaraçadamente mas que hoje abandonou por completo. Este podia perfeitamente ser um dos "thrillers" liberais dos anos 70, dirigidos por gente como Alan J. Pakula ou Sydney Pollack - e, nem por acaso, o filme passa-se de facto nos anos 70, na transição da Argentina liberal para a época peronista da repressão política e dos "desaparecidos", só que vistos a 30 anos de distância, pelos olhos de um antigo investigador judicial que recorda o crime que mudou a sua carreira e decide escrever um romance nele inspirado.

Oscilando entre o presente em que Benjamín recorda e o passado em que procura resolver quem violou e matou uma jovem na sua própria casa, Juan José Campanella constrói um elaborado quebra-cabeças onde a história se desenrola em três tabuleiros simultâneos. O mistério policial clássico com laivos de film noir, com o investigador no papel do "incorruptível" desencantado metido em cavalarias demasiado altas, desdobra-se ao mesmo tempo no melodrama de amores desencontrados que dá ao filme o seu centro emocional, e nas discretas alusões políticas que lhe dão um aroma simultaneamente histórico e claustrofóbico. Os acontecimentos de um nível reflectem-se nos outros de modos distintos mas constantes, com Campanella a não fazer mais do que uma adequadíssima gestão dos vários níveis em função do que a história lhe pede e do que o espectador precisa de saber.


Mais do que um "autor" como Audiard ou Haneke (as únicas notas de autor que se podem sentir em "O Segredo dos Seus Olhos" acabam por minimizá-lo: os planos "descentrados" algo óbvios e a única sequência de acção do filme, um longo plano-sequência trucado com câmara à mão que parece ter sido enxertado de um outro filme), Campanella está aqui do lado dos grandes funcionários de Hollywood que se moldavam àquilo que o filme lhes pedia e, no processo, construiram um modo de pensar o cinema com inteligência e lealdade que se perdeu completamente. "O Segredo dos Seus Olhos" não será a obra-prima que o Oscar faria pensar. Mas é, por onde se quiser ver, um exemplo de um cinema "mainstream" que não toma o espectador por parvo e que anda a fazer demasiada falta. Se o Oscar levar as pessoas a vê-lo, já não se terá perdido tudo.
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Jorge Mourinha, Público



Quando O Segredo dos Seus Olhos conquistou o Óscar para Melhor Filme Estrangeiro, em Março deste ano, muita gente torceu o nariz em reprovação e/ou desconfiança pela escolha da Academia. Eu, admito, fui um deles. Não apenas como ‘adivinhador’ dos vencedores, como todos somos um pouco, mas acima de tudo como forte defensor de O Laço Branco que era e sou. A surpresa foi, portanto, compreensível, apesar de ter alertado, na minha antevisão desta categoria, para a possibilidade da Academia ir contra as expectativas. A verdade é que O Segredo dos Seus Olhos venceu mesmo e deixou a dúvida no ar, em todos aqueles que não haviam visto o filme, se havia ‘merecido’ ou não. Dois meses e pouco depois estreia finalmente em Portugal e essa dúvida pode ser tirada: a resposta é sim.

É sim por várias razões, mas a principal é o facto de ser um filme capaz de transmitir mil e uma coisas, de colocar na mesma tela, na mesma cena até, o melhor e o pior do que significa ser humano. Examinando e desconstruindo os conceitos de justiça e vingança, no seu significado mais lato versus a sua verdadeira natureza, o filme centra-se na figura de Benjamin Esposito (Ricardo Darín), um federal de justiça de Buenos Aires reformado, ainda assombrado por um caso por resolver, ocorrido 25 anos antes, em 1974. Ao decidir escrever um romance baseado nesse caso (em que uma jovem de 23 anos havia sido brutalmente violada e assassinada), Esposito depara-se com a necessidade de tentar resolver o caso uma última vez, ao mesmo tempo que redescobre o seu amor por uma mulher (Soledad Villamil) a quem nunca revelou os seus verdadeiros sentimentos.


Construído como thriller-crime convencional, contado através de flashbacks, O Segredo dos Seus Olhos é, efectivamente, um mistério cuja força propulsora se concentra no puzzle que se vai formando e na necessidade de descobrir o que, e como aconteceu. Mas essa é apenas a primeira de várias camadas de um filme complexo e exigente; debaixo dela escondem-se muitas mais. Como nos grandes filmes da era noir do cinema americano, o crime funciona como o elemento mais visível, escondendo-se atrás dele uma belíssima, mas subtil história de amor, um estudo sobre a memória, um olhar sobre a sociedade Argentina dos anos 70, sobre a justiça, a corrupção e a vingança.

É, no fundo, a sua dedicação ao estudo da condição humana que faz de O Segredo dos Seus Olhos um filme poderosíssimo e capaz de encapsular temas com os quais qualquer pessoa consegue facilmente identificar-se, independentemente da sua origem geográfica ou social. Enquanto que O Laço Branco e Um Profeta se concentravam em temas e lugares muito específicos, recorrendo também a técnicas muito próprias, o filme de Juan José Campanella dedica-se essencialmente à análise do homem pelo que ele é, do que faz da humanidade a humanidade: amor, paixão, ódio, inveja, fraqueza, luxúria, amizade, arrependimento, maldade, etc. É tudo isto e muito mais que nos define, quer recuemos ou avancemos no tempo, ou viajemos a qualquer ponto do planeta.
As personagens, e a forma como são interpretadas, ajudam igualmente a reforçar esse sentimento de empatia e identificação. Ao longo do filme não há um único momento em que pareçam nada menos que reais, o que provém tanto dos diálogos naturais de Campanella como das sólidas interpretações do elenco. Darín, interpretando o que são no fundo duas personagens diferentes – o Esposito jovem e optimista, que sorri frequentemente e manda piropos a qualquer mulher bonita, e o de 25 anos depois, desgastado, solitário e permanentemente invadido pelo sentimento de uma vida perdida – é fantástico, conseguindo fazer essa separação na perfeição. Villamil complementa-o, fazendo da sua personagem uma mulher forte, independente, dividida entre as suas obrigações e desejos. Destaque também para a fenomenal interpretação de Pablo Rago, como o marido da vítima, que nos mantém em constante dúvida sobre a sua natureza, e Guillermo Francella, como Sandoval, colega e melhor amigo de Esposito, responsável por grande parte do humor com que Campanella vai regando a película.


Complementando o elenco está o trabalho de Campanella por detrás da câmara que, nunca sendo exagerado, consegue manter o filme a um ritmo quase sempre perfeito, com opções estéticas que fazem dele visualmente atractivo, mas obtendo sempre um raro equilíbrio entre o que vemos e o que ouvimos, já que O Segredo dos Seus Olhos é em muitos sentidos um filme de diálogo.

Quando as palavras não têm destaque, a belíssima e clássica fotografia de Félix Monti assume-o, com imagens saturadas, ora estáticas ora dinâmicas, por vezes flutuantes, bem como a música de Federico Jusid e Emilio Kauderer, que reforça o ambiente a que Campanella aspira criar.

Na sequência central do filme, uma cena de perseguição ininterrupta de sete minutos, Esposito e Sandoval, após descobrirem que o autor do crime (cuja identidade é revelada na primeira meia hora) é um apaixonado adepto de futebol e do Racing Club de Avellaneda, localizam-no (de forma pouco provável, diga-se) num estádio Argentino no meio de 60.000 pessoas, seguindo-se uma perseguição a pé que se inicia nas bancadas, continua no interior do estádio, passando por uma casa de banho e acabando no relvado. Campanella e Monti fazem desta cena o ponto alto do filme ao filmá-la de forma rápida, estilística e feroz, como se de um filme de acção se tratasse, iniciando-a com um plano aéreo do estádio e descendo, claramente com assistência CGI, até ao público, furando por entre este até encontrar Esposito e Sandoval. É uma cena magistralmente pensada e executada, que se contrapõe ao tom literário e romântico de grande parte do filme e que por essa mesma razão o eleva.


O Segredo dos Seus Olhos tornar-se-á, acredito, um clássico do cinema, no futuro. Ilude em apresentar-se como mais um típico thriller baseado num romance, pois a forma como incorpora elementos de drama, noir e suspense distinguem-no como uma obra única que consegue ir buscar inspiração a Hitchcock e ao cinema americano em geral e mesmo assim manter-se distintamente sul-americano, conseguindo no entretanto agradar a Hollywood. O seu único defeito será o recurso frequente ao melodrama, que nunca ofusca o quão brilhantemente construído é, nem tão-pouco a sua extrema dedicação e atenção a detalhes, que o tornam natural e ao mesmo tempo imprevisível, qualidades insubstituíveis em qualquer thriller.

Indiscutivelmente um dos melhores filmes de 2010, até ao momento e provavelmente depois do ano terminar.
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Pedro Ponte, ante-cinema


Título Original: El secreto de sus ojos
Realização: Juan José Campanella
Argumento: Juan José Campanella e Eduardo Sacheri, a partir da novela deste último
Direcção de Fotografia: Félix Monti
Montagem: Juan José Campanella
Música: Federico Jusid e Emilio Kauderer
Origem: Argentina / Espanha
Ano: 2009
Duração: 127'
Classificação: M/16


3 SEGREDOS NÃO MUITO SECRETOS - IPJ, 21h30, às 2ªf.

Sócios 2€ *, estudantes 3,5€, restantes 4€*
*decisão da Assembleia Geral Extraordinária de 13 de Setembro


Dia 4
O SEGREDO DOS SEUS OLHOS

Juan José Campanella

Argentina/Espanha, 2009, 127’, M/16

O vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro é uma pequena surpresa – mesmo se assumirmos que o Oscar foi roubado a "Um Profeta" ou a "O Laço Branco". Primeiro, pela elegância e pela inteligência com que abrange e entrelaça géneros muito diferentes (o melodrama romântico, o filme policial, o "thriller" político) num todo plenamente satisfatório. Segundo (e principalmente), pelo facto de este ser um filme exemplar de um tipo de cinema "mainstream" inteligente, adulto, sóbrio, que Hollywood produzia em tempos desembaraçadamente mas que hoje abandonou por completo. Este podia perfeitamente ser um dos "thrillers" liberais dos anos 70, dirigidos por gente como Alan J. Pakula ou Sydney Pollack - e, nem por acaso, o filme passa-se de facto nos anos 70, na transição da Argentina liberal para a época peronista da repressão política e dos "desaparecidos", só que vistos a 30 anos de distância, pelos olhos de um antigo investigador judicial que recorda o crime que mudou a sua carreira e decide escrever um romance nele inspirado.
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Jorge Mourinha, Público




Dia 11
SHIRIN
Abbas Kiarostami

Irão, 2008, 92’, M/12

No Irão deve-se baixar os olhos perante uma mulher. Em SHIRIN, Abbas Kiarostami põe-nos a olhar, durante hora e meia, para 114.

Em SHIRIN está o império do feminino – e um império dos sentidos. Durante cerca de hora e meia, os rostos – o olhar – de 114 mulheres, actrizes iranianas de várias gerações (uma europeia entre elas, Juliette Binoche), que observam o que se passará num palco: a representação de um poema persa do século XII, “A História de Khosrow e Shirin”, sobre os amores de uma princesa arménia pelo rei da Pérsia e sobre o triângulo de paixões que se forma quando Shirin conhece Farhad.

Elas (e este será um retrato de senhora multiplicado por 114) reagem, choram, riem – o que vêem está fora de campo para nós. E Kiarostami, voyeurista assumido, já que gosta de olhar para quem está a ver, observa-as. Nós estamos com ele. E imaginamos o que elas podem estar a imaginar. Ou seja, estamos numa caixa de ressonância onde a fantasia e a nossa memória de espectadores (e somos espectadores daquelas espectadoras…) estão a ser constantemente alimentadas, excitadas.

E sempre dentro e fora, mergulhados na emoção, subjugados perante 114 mulheres.
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Vasco Câmara, Público


Dia 18
EU SOU O AMOR

Luca Guadagnino

Itália, 2009, 120’, M/12

Tilda Swinton é sublime num filme gloriosamente operático que reinventa o melodrama clássico e a saga familiar para um tempo em que eles já não existem. Atente-se na "chave" que dá título a este grandíssimo filme: Maria Callas, ela própria, interpretando a ária da "Mamma Morta" de Giordano, na banda-sonora do "Filadélfia" de Jonathan Demme, que Tilda Swinton vê uma noite na cama à beira de adormecer, antes de o marido chegar e mudar de canal sem sequer lhe perguntar o que está a ver. A frase que Callas canta é "Io sono l'amore" - "eu sou o amor" - e é nesse momento em que o marido a ignora como mera presença utilitária que a divina, gloriosa Tilda toma perfeita consciência do seu papel na poderosa família milanesa. Ela é a verdadeira "mamma morta" (aliás, mais tarde, alguém lhe dirá "tu não existes"), até o amor lhe cair do céu, numa noite de Inverno, na pessoa de um visitante inesperado que nem sequer fica para tomar café.

É complicado explicar o que se passa em "Eu Sou o Amor" sem correr o risco de menorizar a terceira ficção de Luca Guadagnino, porque o que eleva o filme ao estatuto de obra-prima é a abordagem operática, virtuosa, formalista, estilizada, hiper-romântica e pós-modernista com que o cineasta siciliano encara o melodrama clássico e a saga familiar, o modo como ele instala no classicismo do género um corpo estranho através de Tilda Swinton. “Eu Sou o Amor” é uma obra-prima.
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Jorge Mourinha, Público