MINHA MÃE, N. Moretti | dia 5, JAN 2016 | IPDJ | 21h30

 MINHA MÃE, Nanni Moretti. IT, 2015. 106' (M/12)

FICHA TÉCNICA
Título Original: Mia Madre
Argumento e Realização - Nanni Moretti
Fotografia - Arnaldo Catinari
Montagem - Clelio Benevento
Interpretação: Margherita Buy, John Turturro, Giulia Lazzarini, Nanni Moretti
Origem: Itália
Ano: 2015
Duração: 106’

FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Cannes 2015 – Selecção Oficial, Em Competição, Prémio do Júri Ecuménico
Prémios David di Donatello 2015 – Melhor Actriz e Melhor Actriz Secundária







CRÍTICAS
Continuar a viver
A inesperada maturidade de Nanni Moretti num melodrama de enorme elegância.
Charles Trenet cantava em tempos “o que ficou dos nossos amores”; Nanni Moretti pergunta-se o que fica da nossa vida quando ela chega ao fim neste soberbíssimo melodrama de enorme e elíptica elegância, acompanhando a crise de consciência de uma realizadora a quem o mundo parece cair em cima no exacto momento em que a mãe é diagnosticada com uma doença terminal.
É uma obra de uma maturidade inesperada, que faz eco não apenas de O Quarto do Filho (2001, ainda o nosso Moretti preferido) mas também do Caos Calmo (2008) de Antonello Grimaldi onde o cineasta foi “apenas” actor e co-argumentista. Todos são filmes sobre continuar a viver quando tudo parece deixar de fazer sentido, todos são filmes francamente mais complexos e elaborados do que dão a entender à primeira vista, todos são filmes com aquela truculenta capacidade de arrancar um sorriso de reconhecimento que durante muito tempo foi apanágio do melhor cinema italiano.

A grande depressão
Nanni Moretti retoma um dos temas fundadores do seu cinema.
Nanni Moretti sabe algumas coisas sobre a depressão. Pode nem ser a tecla mais batida quando se analisa a sua obra, mas a depressão, a depressão psicológica, habita quase todos os seus filmes. De Ecce Bombo a Habemus Papam, passando pela Palombella Rossa ou por O Quarto do Filho, é possível descrever todos estes filme como histórias de homens (ou mulheres) deprimidos. Psicoterapia e psicanálise, de forma mais séria ou mais jocosa, espreitam quase sempre, e num dos primeiros filmes de Moretti (os Sogni d’Oro de 1981) o próprio Freud aparecia como “personagem”.  
Vem esta introdução para dizer que Minha Mãe talvez seja o filme de Moretti mais concentrado na depressão. Em sentido estrito, através da evolução das suas personagens principais (nomeadamente a de Margharita Buy, a assumir aquilo que, isso sim, é raro em Moretti: uma protagonista feminina); mas também em sentido figurado: socialmente, politicamente, e até artisticamente (a protagonista é uma realizadora em plena rodagem de um filme sobre uma greve numa fábrica), Minha Mãe é um filme sobre uma grande depressão, uma depressão total.
Não é errado, mas é curto, ver Minha Mãe como um espelho de O Quarto do Filho. Esse era um filme sobre o luto dos pais, sobre a perda súbita e inesperada. Este é um filme sobre a perda anunciada, sobre o luto dos filhos — ou mais correctamente, sobre a sua antecipação, visto que a senhora (Giulia Lazzarini, um prodígio de delicadeza enxuta) está viva durante praticamente todo o filme. A personagem da mãe não sai diminuída com isso, o olhar de Moretti sobre ela é sempre inteiro, mas o centro do filme e das suas preocupações não é tanto a velhice (pelo menos da mesma forma como em Habemus Papam), é mais aquele momento da meia idade em que a velhice passa a estar à vista. Na complexa teia emocional de Minha Mãe, e sem prejuízo do que se joga na relação entre mãe e filhos (e neta), o papel decisivo da senhora é representar esse capítulo final, fazer as outras personagens confrontarem-se com ele, e assim desencadear a crise, ou a grande depressão. É o filme que Buy está a fazer que avança mal, a realizadora cheia de dúvidas sobre o seu retrato de um conflito laboral (questão “lateral” mas que não deixa de estar presente e é obviamente uma preocupação morettiana: como abordar hoje, com justiça, sem a “retórica” que “cansa” como diz a personagem, os assuntos de política laboral); é ela que se descobre num impasse, numa espécie de vala subitamente visível a afastá-la de todos os outros — da mãe, do irmão (Moretti ele mesmo), da filha, dos ex-maridos ou ex-namorados. Esta solidão, caída como um nevão de que não se estava à espera, é o verdadeiro motor do filme, que pode, a partir dela, desenhar os contornos pouco definidos entre a realidade tangível e a realidade “interior”: os sonhos, a descrição dos sonhos, sempre na maneira mais correcta e eficaz de os filmar, ou seja, sem distorções nem sinalizações oníricas, sempre tão realistas como qualquer cena quotidiana, com o despertar e a revelação do que afinal era sonho a nunca estarem mais longe do que um simples corte e mudança de plano. Por vezes trazem mistérios, como aquela cena belíssima (ao som do Famous blue raincoat de Leonard Cohen) em que a protagonista se descobre anos atrás, numa fila enorme para um cinema onde se projecta — percebemo-lo pela alusão no cartaz, mas nunca explicitada — As Asas do Desejo de Wim Wenders. Para além de um “outro tempo” — o tempo em que os adultos iam ao cinema —, o que traz essa referência (ainda implícita num diálogo da velha senhora) ao filme de Moretti? Não é certo, e não é nada de certo, mas é algo que fica a pairar, assim como um “clima”, assim como, de resto, as palavras de Cohen naquela canção, talvez os mais desconsolados versos de abertura de qualquer canção (“são quatro da manhã no fim de Dezembro”), e tudo concorre para que este seja também o “tempo” do filme de Moretti.
Mas o mais arriscado talvez seja a inclusão da personagem de John Turturro, na pele de um actor americano que vem interpretar um papel no filme de Buy. Está sempre fora de tom, incapaz de encontrar o perfil justo, no “filme dentro do filme”, mas por inerência também sempre em “dessincronia” com o filme de Moretti, ou como um peixe fora de água — e isso atribui à personagem dele uma qualidade solitária, que se estranha primeiro e depois se entranha, como se ele fosse o reflexo bufão da personagem de Margharita Buy e acabasse por haver, no reconhecimento desse reflexo, uma possibilidade de entendimento. Também contribui para Moretti dizer algumas coisas sobre o cinema, num filme obcecado por uma ideia de justeza (e Turturro é tão mais “justo” quanto mais “falso” ou “artificioso”, num milagroso paradoxo conseguido por Moretti), mas que talvez também evoque aqueles tempos em que era frequente ver actores americanos a trocarem o aquário de Hollywood pelas “selvagens” terras italianas (Broderick Crawford no Bidone de Felllini, Steve Cochran no Grito de Antonioni, Orson Welles na Ricotta de Pasolini, e outros).
Nos seus modos “benigni-escos”, Turturro é a expressão da inquietação que a personagem de Buy abafa e interioriza. E se, para o final, está reservada a cena mais pacífica de todo o filme (a velha senhora a ajudar a neta nos trabalhos de latim — e o latim sempre como um eco profundo), essa inquietação não se resolve: Minha Mãe fecha-se entre a paz da morte e o desassossego da vida, sem um sorriso nem uma saída.



Nanni Moretti filma a vida na companhia da morte, João Lopes DN, 06 DE NOVEMBRO DE 2015





ENTREVISTA
 Como mudança radical acho que não; como maior serenidade também não; como maior tolerância, acho que sim Augusto M. Seabra, Público, 13/11/2015       










MONTANHA, de João Salaviza | 15 DEZEMBRO | IPDJ | 21H30

MONTANHA

João Salaviza
Portugal/França, 2015, 92', M/14

FICHA TÉCNICA
Realização a Argumento: João Salaviza
Montagem: Edgar Feldman e João Salaviza
Música: Norberto Lobo 
Interpretação: David Mourato, Maria João Pinho, Ema Tavares, Rodrigo Perdigão, Cheyenne Domingues
Origem: Portugal/França
Ano: 2015
Duração: 92'

FESTIVAIS
Festival de Veneza - Semana da Crítica
Festival de San Sebastian – Zabaltegui
Festival Manaki Brothers – Prémio Melhor Fotografia
Corto Circuito Compostela
Festival de Montpellier
Festival de São Paulo



ENTREVISTA AO REALIZADOR
Este é o território de João Salaviza: a adolescência, as assombrações que não se conseguem nomear, o desejo, a morte. E em Montanha, estreia na longa-metragem do realizador de 31 anos, tudo isso está próximo de uma raiz mitológica.
Montanha, primeira longa-metragem de João Salaviza, retoma com outro fôlego vários elementos que já conhecíamos das suas curtas-metragens, Arena (2009, Palma de Ouro em Cannes) ou Rafa (2012, Urso de Ouro em Berlim): o olhar sobre a adolescência, mas também a sua articulação com o espaço urbano, com a descoberta da cidade, num confronto entre a imanência daquelas presenças - as humanas, como os miúdos ou a personagem da mãe - e as assombrações que naquela idade ainda não se conseguem nomear - a morte, as primeiras manifestações do desejo.
É um filme construído num balanço entre um máximo de preparação e premeditação e uma abertura ao improviso, ao acidente, à energia que nasce durante a rodagem. Durante a conversa que mantivemos com ele, Salaviza, mesmo não se declarando um "cinéfilo", trouxe diversas vezes outros filmes e outros realizadores ao contexto - como se para ele fosse dentro do cinema que se pode encontrar o que se deve fazer e o que não se deve fazer, e uma aprendizagem de realizador seja também uma aprendizagem de espectador. O que é algo que está em Montanha: na maneira como o filme "vê" e como "ouve", é obra de um realizador interessado em explorar o encontro entre o aparato do cinema e uma determinada realidade, dada ou construída. À despedida, quando o entrevistador lhe dizia esperar pelo menos não o ter obrigado a repetir as mesmas coisas das várias entrevistas que já deu, replicou: "O que eu já não suporto são perguntas sobre prémios, 'qual a sensação de ganhar um prémio em Berlim ou em Cannes, isso só é importante por causa deste sistema em que trabalhamos, mas não é para isso que faço filmes".

Até que ponto é que as suas curtas-metragens foram conscientemente um ensaio, um laboratório, para a primeira longa? Talvez não seja verdade para Arena nem para Cerro Negro (2012), mas Rafa tinha uma respiração de longa-metragem, podia ser uma sequência extraída a um filme que não existiu.
Houve qualquer coisa que mudou a partir do Rafa, de facto. Nos meus primeiros filmes penso que essencialmente explorei um prazer, muito lúdico, de fazer cinema. São filmes em que eu estava a descobrir a prática do cinema e são muito marcados por essa descoberta. Num certo sentido, são muito mais filmes sobre as minhas ideias de cinema do que sobre outra coisa qualquer. A partir do Rafa comecei, de modo muito consciente, a procurar outra coisa.

O que Montanha tem em comum com Rafa é centrar-se numa relação com a cidade, de modo que quase se diria sensual ou sensorial: os sons, as vistas, os ambientes.
Aproximei-me duma noção mais precisa daquilo que realmente me interessava fazer e explorar, e foi muito clara a vontade de me concentrar nisso. Há um filme do Abbas Kiarostami que é muito importante para mim - aliás o Kiarostami para mim é uma referência máxima. É o Mossafer [um filme de 1974 conhecido em português pelo título O Viajante], onde todo o contexto narrativo não é mais do que um pretexto para o filme se construir em torno da relação entre um miudo e a cidade. No Rafa já foi disto que me aproximei, mesmo em termos de construção do filme, que passa muito pela relação entre o Rafa ele mesmo, ou o actor que o interpreta, e os cenários da cidade, e isto tem precedência sobre a narrativa. Aliás, percebi que era possível fazer isto com muito poucos elementos narrativos, que podia despir o filme de muita ganga narrativa sem que esta situação essencial perdesse força.

E depois há o tema da adolescência, ou do fim da adolescência e da passagem à idade adulta, que até é um tema clássico das primeiras obras do cinema português...
Pois, Os Verdes Anos [1963], O Sangue [1989]...

E mais ainda, por exemplo, Joaquim Pinto, Joaquim Sapinho, Vítor Gonçalves...
O [Miguel] Gomes... Mas não sei se isto é uma coisa exclusiva do cinema português, se calhar há algo de natural no acto de fundar os primeiros filmes numa despedida da infância ou da adolescência...

Com certeza que não é, mas digamos que é um tema que tem uma incidência extraordinária quando vemos as primeiras obras do cinema português... No seu caso, é importante a autobiografia? Há elementos autobiográficos?
No sentido em que não me interessa reproduzir factos da adolescência, ou a da minha adolescência, não. Mas claro que me interessa aproximar-me de uma raiz mitológica da adolescência.

O momento em que sai de casa sozinho, por exemplo. Todos os seus filmes partem deste princípio: há alguém que está em casa...
...e depois sai. Sim, é verdade, costumo filmar pessoas que saem do seu habitat, no momento em que o fazem. Mas interessa-me construir esse movimento, integrá-lo e encontrá-lo dentro duma estrutura de cinema, não fazer só uma reportagem, andar atrás de alguém com uma câmara ao ombro. Não procuro factos da minha adolescência, mas procuro reencontrar sensações da adolescência. Eu cresci na Avenida de Roma, num prédio habitado essencialmente por militares. Era o único miudo no prédio, e naquele bairro não havia muito mais gente da minha idade. O bairro parecia-me tão vazio como o resto da cidade me aparecia como alguma coisa perigosa e nova, entusiasmante. Havia aquilo que eu sentia como uma espécie de opressão da arquitectura sobre um corpo que ainda era frágil, e esta era uma das sensações que me interessava procurar.

Pensa muito na questão do ponto de vista? Em Montanha o olhar nunca se plasma, nunca é "o ponto de vista do adolescente", mas também não se coloca numa exterioridade absoluta.
Preocupa-me encontrar a distância certa. Que acho que não pode ser nem demasiado perto nem demasiado longe. Em termos etários, estas personagens estão a meio caminho de mim. Têm quinze anos, eu tenho trinta. Acho que é um momento certo, justo, para as filmar, e para as compreender sem lhes impôr uma perspectiva artificial. Detestaria que me acontecesse o que aconteceu ao Larry Clark. Quando vejo o Kidsnoto um olhar que ainda é justo sobre os adolescentes. Mas desde então parece-me que esse olhar foi sendo substituido por outra coisa, que se tornou mais a projecção duma ideia dele, mais ou menos romantizada, sobre a adolescência, sobre o que os adolescentes são. Eu penso que, nesta idade, ainda estou próximo o suficiente para captar a adolescência como um processo de transformação e não como algo estático. Quando andava na escola de cinema havia uma tendência a que eu chamava "os filmes do avozinho". As pessoas faziam o curso e depois iam fazer um filme sobre o avô. Nunca quis e nunca farei.

Porque precisa de outro tipo de fricção, de atrito?
Preciso que aquilo que filmo ofereça alguma resistência. Neste caso, no Montanha, o miúdo [David Mourato] nunca se deixava apanhar. E eu não queria aquele falso naturalismo que se vê por exemplo n' A Vida de Adèle (2013), do Kechiche, de que não gostei nada. Corta a espontaneidade toda. Por exemplo aquela cena de sexo é horrível, é falsa, parece só a materialização duma fantasia masculina, ver duas miudas na cama. A minha preocupação era encontrar a espontaneidade dentro duma estrutura definida.

É tudo muito preparado?
Muito preparado. Há uma capa ficcional trabalhada de modo relativamente clássico, que é importante para evitar cair numa simplificação extrema. Mas por baixo dessa capa há uma quantidade de energia e de tensão que tem que ser aproveitada. Havia uma tensão enorme durante a rodagem, também nas relações entre os actores, por exemplo, e o filme devia conservar, e acho que conservou, alguns ecos disso.

O tema da morte, com o avô moribundo no hospital, parece surgir sobretudo como uma espécie de mola para uma tranformação interior, o primeiro passo para a entrada na idade adulta.
Acho que não preciso, nenhum de nós precisa, de psicanálise para encontrar um momento decisivo na adolescência que marque uma passagem a partir da qual as coisas deixaram de ser como eram. Um momento em que se dá uma explosão qualquer. Quando se é muito novo pensa-se na morte como uma coisa abstracta, mas chega a altura em que se adquire uma consciência da mortalidade e a morte deixa de ser uma abstracção. Isso muda muita coisa. Claro que depois isso não gera sempre o mesmo efeito, há muitas reacções possíveis, pode ser a clausura, pode ser a violência.

Há pouco usou a palavra "clássico"...
..lembro-me de uma coisa em o Vítor Gonçalves insistia muito nas aulas na escola de cinema e que na altura talvez nenhum de nós percebesse bem, se calhar porque, de maneira até um bocadinho parva, não tínhamos muita paciência para os clássicos. Ele insistia muito na ideia de que, para perceber o que era a intensidade dramática, a maneira de a construir e de a trabalhar, estudar os clássicos era fundamental.

E hoje, sente-se mais próximo de quê? Dos clássicos ou dos modernos?
A minha tendência tem sido ir para trás, cada vez mais para trás. Em direcção aos clássicos. Nunca fui bem um cinéfilo, ou pelo menos nunca fui um rato de Cinemateca. Mas quando vejo filmes do Nicholas Ray, ou do Robert Bresson, ou do Elia Kazan... vi há pouco o Wild River [Quando o Rio se Enfurece, de 1960] que é prodigioso, percebe-se que é fundamental ter uma relação com o cinema, uma consciência do que já foi feito. Ou cai-se num virtuosismo oco, em filmes sem ponto de vista. E sobretudo aprende-se a não ter medo da mise en scène.

A mise en scène, que é esse conceito que a geração dos anos 50 franceses elevou ao máximo estatuto. E que era tudo, não era só o trabalho específico com a posição da câmara e os movimentos dos actores. O Truffaut dizia que mesmo a escolha dos actores, ocasting, já era mise en scène. Identifica-se com esta ideia de totalidade?
Plenamente, sim. Gosto de pensar no cinema como craft, como uma coisa que se fabrica, que se constroi, que produz objectos. Os clássicos tinham esta noção de modo perfeito. Estive a ler aquele livro do Nicholas Ray, I Was Interrupted, que reune textos e conversas daquele período final em que esteve a dar aulas, e fez aquele filme [We Can't Go Home Again, 1973] com os estudantes. E uma coisa que impressiona é ele falar dos filmes como se fosse objectos feitos à mão, assim como um sapateiro falaria dos sapatos que faz.

E no Ray também há, como persistência temática, a questão da adolescência ou do fim dela...
Isto dito assim pode parecer risível, mas eu acho que no David há qualquer coisa de James Dean, acho que pertencem à mesma classe de presenças. Que eu definiria como actores que dizem sempre a verdade mesmo quando estão a mentir. Que há sempre qualquer de real, de verdadeiro, de genuíno, que transmitem mesmo numa situação de pura representação, de pura mentira.

Puxou muito por ele durante a rodagem?
De certa maneira os limites foram estabelecidos por ele, era ele que impunha, ou sugeria, até onde se podia ir. Mas precisava muito de ser dirigido. Eu falo muito durante cada take...

...ah, como se fazia no tempo do mudo...
Sim, limpar a minha voz na pós-produção do som depois é uma das tarefas principais. Mas assim ajuda a que cada plano tenha uma vida própria e se decida conforme o que está a acontecer nele. E sobretudo na relação com os actores. Há aquela cena em que ele está deitado e tem que se levantar, mas estava estafado e deixou-se ficar deitado mais tempo do que eu estava à espera, e então gritei-lhe "levanta-te quando quiseres".

O trabalho sobre o tempo interno de cada plano é bastante singular.
Eu acredito em cenas e em planos que "ressuscitam". Parece que estão a esmorecer, que não vai acontecer nada, e então passa-se qualquer coisa que volta a arrebitar. Gosto de trabalhar isto, gosto de parêntesis dentro dos filmes, gosto de cenas que contêm outras cenas dentro delas.

O som em Montanha, aquele rumor da cidade, também é um som cheio de mise en scène...
O som é fundamental, até porque eu não sei usar música, não ponho música nos filmes a não ser que seja música diegética, nem sou muito melómano.

Mas é um som muito "construído", é daqueles cineastas que tira e acrescenta e não se limita ao som registado durante a rodagem de cada plano?
Eu não acho que o som directo seja necessariamente mais verdadeiro. Trabalhei com o tipo que faz as misturas de som para os filme do Garrel e perguntei-lhe por uma coisa que me intrigou muito no último filme dele, La Jalousie (Ciúme), de que gostei muito. Aquele momento em que, sem nenhuma relação directa com a acção ou com a narrativa, a banda de som é tomada pelo barulho de uma ambulância que passa na rua. E ele respondeu-me que com o Garrel "o que lá está é o que fica". Eu não sou assim, não me importo de tirar coisas que lá estavam e acrescentar outras que não estavam. Nas cenas dentro de casa ouve-se frequentemente o som de cães a latir lá fora. Esses cães não estavam necessariamente lá.

E como é que lida com os acidentes? Há uma bela fórmula do Jean-Claude Biette que divide os cineastas em dois grupos. Os que gritam "corta" se uma borboleta entrar inesperadamente dentro do enquadramento e os que continuam a filmar. Em qual dos dois grupos se incluiria?
No segundo, claramente. Eu quero é que apareçam mil borboletas... O Arena está cheio de acidentes desses - a velhota que aparece no fim da cena com a bicicleta e fica a olhar, por exemplo. E no fim aquela pomba que levanta voo. É curioso que eu tinha pensado usar muitas pombas, tinha tudo acertado com uma sociedade columbófila e pensava num plano cheio de pombas. Depois achei de mais e no entanto, inesperadamente, ficou uma pomba. Muito melhor do que eu imaginava. Temos que resistir à tentação de pôr muito "sal e pimenta" nos filmes. A maior parte das vezes, se estivermos atentos e disponíveis, aparece exactamente aquilo que é preciso.

Luís Miguel Oliveira, publico.pt


CRÍTICA
Nos filmes de Salaviza os rapazes partem à conquista da luz e da cidade. Mas em Montanha David transporta a sua escuridão. É esse o habitat de um jovem em busca do sopro épico que nunca lhe acontece.

Entre mãe e filho, no início de Montanha, no escuro de um quarto:
– Onde é que andaste ontem à noite?
– Por aí.
Entre mãe e filho, no fim de Montanha, no escuro de um quarto:
– Que horas são?
– Ainda é cedo. Dorme.

Nos filmes de João Salaviza, os rapazes partem dos quartos para conquistar a cidade, para tomar o que acham que lhes pertence. Carloto Cota, na curta-metragem Arena (2009, Palma de Ouro de Cannes), foi, talvez, o mais olímpico desses corredores de fundo (no seu caso, era mais um gladiador): parecia romper as grades para ter direito, enfim, à luz – “parecia”, porque era duro, acre, o final dessa potente estreia cinematográfica de Salaviza, não sendo claro, por serem tão agressivamente claras essas sequências, se Carloto, mesmo dominando do alto a cidade, atingira de facto algum pódio.
Em Rafa (2012, Urso de Ouro em Berlim), as luzes e as sombras iam deixando marcas, à vez, no percurso de Rodrigo Perdigão – parecia mais claro que o jovem, que acabava com o peso de um bebé nos braços, não ia nunca conseguir soltar-se para afrontar uma narrativa épica.
Em Montanha, o habitat já é mesmo a sombra – é o que fere menos, a luz define de forma implacável, cruel, as linhas modernas do bairro dos Olivais.
Montanha é a estreia de João Salaviza na longa-metragem. Começa logo por ser singular o facto de o filme não abrir para uma etapa diferente – como podia acontecer, se fosse necessário marcar de algum modo uma “promoção”, a duração maior como uma conquista. Não, Montanha segue-se naturalmente aos filmes anteriores e fecha-os. Em Setembro, numa entrevista ao Ípsilon à beira da participação no Festival de Veneza, o realizador dizia: “Se calhar filmei pela última vez esse desejo de cruzar adolescência e Lisboa. Assinalava, então, como que um paralelismo entre dois finais de adolescência: o das personagens dos filmes que fez até aqui e o seu próprio como realizador.
Salaviza pode até voltar a fazê-lo — isto é, pode voltar a filmar a adolescência. Dificilmente o fará na linha de continuidade que se estabelece entre as anteriores “curtas” e a presente “longa” (entre aspas, porque se trata, afinal, do mesmo filme; porque se pode dizer que cada curta já continha um desejo de longa, não de a fazer no futuro, mas fazendo-a já cada uma à sua maneira – Montanha confirma-o, aliás, retrospectivamente).
É que Montanha traz em si uma síntese final – para àquele território não mais voltar. Momento de elevação, coisa abstracta – não é de ter medo da palavra – que transcende os circunstancialismos que, por exemplo, definiam socialmente as personagens dos filmes anteriores (até podemos não encontrar sinais de uma qualquer “actualidade” neste filme), é uma obra de um esplendor muito rarefeito. É um filme que se respira, mais do que se agarra. Que faz do seu plot minimal, o momento na vida de David/David Mourato, mãe ausente, avô a morrer, as possibilidades a esgotarem-se, matéria a experimentar e moldar através da luz e das sombras. É, de todos, o filme de Salaviza com coração mais expressionista – e não é para acusar o peso da palavra ou recear por um qualquer exercício árido.

David é de novo um (anti-)herói de um épico que nunca (lhe) acontece, um desses jovens que viajam dos quartos para o exterior, para se descobrirem já derrotados: ficaram adultos sem o saberem. Não é por acaso que o filme abre e fecha no quarto, da vaga promessa de uma aventura pela(s) cidade(s) restando o recolhimento, a sombra, apenas um suspiro – como no final. Talvez seja a diferença entre a personagem de David Mourato face às de Carloto Cota e de Rodrigo Perdigão: David já prefere caminhar acompanhado e confortado pela sua derrota. Nenhum movimento leva a algum sítio – todos os travellings em que as personagens andam de mota, aliás, são experimentados como impossibilidade de deslocação, falso movimento, como se nunca conseguissem, nunca quisessem, nunca pudessem, abandonar o seu casulo (a câmara de facto não os deixa descolarem-se, ao contrário do que ainda fazia em Rafa). A excepção é a cavalgada de David pelos Olivais: um resquício de uma potência olímpica (como em Arena, do qual sobra também uma ventoinha...). Sendo a mais fulgurante sequência do filme, corresponde sobretudo a uma projecção, a um desejo que não se concretiza, mais do que a uma verdade da personagens. Porque é nas zonas de sombra que David se conforta. É aí que mãe e filho comunicam. Relação profunda, e tão profundamente escondida, em Rafa, é retomada em Montanha, dando-se a ver, mas mantendo-se na zona dos não-ditos. Em mais uma prova do sereno esplendor com que este filme se nos entrega, tudo entre David Mourato e Maria João Pinho, filho e mãe, acontece dentro de carros, dentro de quartos: o desejo dele de ser continuamente embalado, a dificuldade dela em fazê-lo – tudo literal, como na sequência em que David se embala sozinho..., e tudo muito sereno, serenando-nos.
Há memória adquirida no cinema de Salaviza, não acumulação cinéfila. É uma capacidade de respirar os tempos e as formas do classicismo – e há conforto em poder habitar esse mundo. Este filme parece olhar para cima, para os picos que foram as sínteses do cinema mudo. Aos 31 anos, este prince of darkness já é dos mais “antigos” dos cineastas.
Vasco Câmara, Público

EM DEZEMBRO CINEMA NO ATRIUM - BAIXA DE FARO

PROGRAMAÇÃO EXTRAORDINÁRIA

ESPECIAL NATAL
entrada livre & gratuita para público em geral
Uma oportunidade para a família!

Durante o mês de Dezembro, o Cinema estará de volta ao Atrium na Baixa de Faro, com a seguinte programação:








DIA 12 - 11H00
A OVELHA CHONÉ – O FILME

Mark Burton e Richard Starzack, Reino Unido/França, 2015, 85’, M/6










DIA 13 – 15H00
A QUIMERA DO OURO
Charles Chaplin, EUA, 1925, 95’, M/6









DIA 18 - 15h00
O PREÇO DA FAMA
Xavier Beauvois, França, 110’, M/12








DIA 21 - 14h 
O DIA MAIS CURTO
A Grande Festa da Curta-Metragem 
programa: Contos à Sombra das Árvores
M/4
duração : 49'


O CANTO DOS 4 CAMINHOS, Nuno Amorim, Portugal, 2014, 11'
ÉTER, Jorge García Velayos Espanha, 2013, 5’

SONHOS FELIZES, Dinko Kumanovic, Croácia, 2015, 12’

A LUVA, Clémentine Robach, França-Bélgica, 2014, 8'
ZEBRA, Julia Ocker, Alemanha, 2013, 3'
A LAGARTA E A GALINHA, Michela Donini e Katya Rinaldi, Itália, 2013, 10’







DIA 22 - 15h
O HOMEM DEMASIADO AMADO
André Téchiné, França, 2014, 116’, M/14










DIA 23 - 11h
AS NUVENS DE SILS MARIA
Olivier Assayas, França/Suíça/Alemanha 2014, 124’, M/14












DIA 24 - 11h
O ESTRANHO MUNDO DE JACK
Tim Burton, EUA, 1993, 76’, M/6

CANÇÕES DO 2º ANDAR | 8 DEZEMBRO | IPDJ | 21H30

CANÇÕES DO SEGUNDO ANDAR

Roy Andersson
Suécia/Noruega/Dinamarca, 2000, 98’


FICHA TÉCNICA
Título Original/Internacional: Songs From The Second Floor/ Sånger från andra våningen
Realização, Argumento e Montagem: Roy Andersson
Fotografia: István Borbás, Jesper Klevenås, Robert Komarek
Interpretação: Lars Nordh, Stefan Larsson e Bengt C.W. Carlsson
Origem: Suécia/Noruega/Dinamarca
Ano: 2000
Duração: 98'

FESTIVAIS E PRÉMIOS
Prémio do Júri - Festival de Cannes





CRÍTICA

ONDE O DRAMA E A FARSA SE ENCONTRAM COMO SE FOSSEM VELHOS AMIGOS
Dois anos atrás, a hipnoticamente divertida comédia absurdista CANÇÕES DO SEGUNDO ANDAR foi apresentada no Festival de Cannes, e cenas desse filme continuam a vir-me à cabeça. (O filme recebeu um Prémio Especial do Júri do festival).
O argumentista e realizador Roy Andersson usa o écrã panorâmico para compor planos glacialmente belos, e prende a câmara ao chão enquanto a ação, muitas vezes bem-humorada, tem lugar.
Essa quietude ligeiramente incomodativa e os enquadramentos estáticos dão a estes quadros cómicos a força da arte, e isso reforça o humor: é uma combinação de Bergman e Feydeau. Ou, para aqueles com sensibilidades pop, Jacques Tati revisto pelo cartoonista Gary Larson, criador da tira “The Far Side”.
Toda a ação decorre dentro do enquadramento estático, numa série de episódios aleatórios. O filme evita a narração convencional, preferindo explorar, ao longo de momentos discretos, a revelação horrivelmente hilariante que o Destino não poupa ninguém.
Nas cenas onde um homem desesperado que não quer perder o emprego se agarra aos tornozelos do seu chefe que joga golfe, estamos praticamente à beira do melodrama insuportável. Mas Andersson compreende como a linha entre a comédia e o pathos tem a espessura de uma membrana.
Cria tensão com o seu enquadramento, sabendo que a mesma lenha que cria drama ao arder também pode dar energia à comédia. A sua decisão de garantir a secura do humor – a câmara fica a ver tudo como um observador passivo ou charrado – é uma opção de um realizador astuto que usa a contenção como um ato deliberado. A compulsão de Andersson manter sempre a câmara à mesma distância e capturar cada ato num take único dá ao filme a ressonância fantasmagórico de um sono inquieto.


Damos por nós a admirar a determinação de Andersson. O próprio espectador pode sentir-se angustiado com a recusa insistente de mudar de ângulo durante um engarrafamento enlouquecedor e calamitoso. Cenas como esta, dirigidas à distância, dão ao filme uma sensação de acaso quase pós-apocalíptico.
O tom mordaz e quase fúnebre do filme sugere Odin a observar os fracassos da sociedade moderna – e os seus efeitos alienantes na raça humana – através de um globo de neve. Ninguém aqui é capaz de comunicar: Andersson laminou o seu elenco, e o selo antisséptico que os impede de gerar a fricção que torna a vida digna de ser vivida coloca cada um deles a viver numa bolha de plástico.
... CANÇÕES DO SEGUNDO ANDAR, exemplo de um género insuficientemente discutido, é um clássico menor, pensativo e comovente, obra de um artista genuíno e singular.
Elvis Mitchell, New York Times