PEDRO, O LOUCO. Os primeiros Almodovar são às 5f, em Agosto, n'Os Artistas. À borla!

QUINTAS DE CINEMA

AGOSTO | ESPLANADA D'OS ARTISTAS
22H | ENTRADA LIVRE


Pedro, O Louco



Os
irreverentes-hilariantes-provocadores-rebeldes

primeiros filmes de Pedro Almodóvar


porta-voz cinematográfico da MOVIDA MADRILENA



Dia 4
Pepi, Luci, Bom e Outras Tipas do Grupo (1980, 82’)

A primeira longa-metragem de Pedro Almodóvar representa de forma clara o espírito inicial do seu universo - personagens completamente absurdas, mas com senso de humanidade, por um lado,e os dramas femininos por outro.
O filme criou um enorme culto, sobretudo entre os grupos que constituíam o movimento pop “La Movida”, no qual se inseria Pedro Almodóvar, que soube como ninguém retratar em diversos filmes as suas cores berrantes e o seu glamour. Madrid, inícios dos anos 80. Pepi é uma mulher que foi violada pelo seu vizinho do lado, um polícia, que aproveita o facto dela ter um vaso com marijuana à janela para poder abusar dela. Pepi decide vingar-se, apelando à ajuda dos seus amigos punks, que, por engano, dão uma tareia no irmão gémeo do polícia violador. Mas Pepi, de seguida, apresenta Bom, um amigo seu cantor, a Luci, a mulher masoquista do polícia que julga estar apaixonada quando é sexualmente humilhada por Bom e decide deixar o marido. No entanto, o polícia apanha Luci a sós, dá-lhe uma tareia e ela regressa ao lar.


Foi ótimo ver que um dos meus cineastas preferidos já começou sua carreira acertando e que, desde o início da carreira, ele criou seu universo escandaloso, nonsense, sensual e irônico.

O filme é de 1980 e, se no fim da década de 70 e o início de 80 a moda era puro exagero, imaginem em um filme de Almodóvar? De chorar! Uma das personagens é meio punk, mas cheia de acessórios de plástico coloridíssimos, meias listradas, lembrando uma mistura dos clubbers (Jesus, lembram? Eu cometi esse equívoco visual) com jovens japonesas e Mary Moon quando apareceu. A maquiagem e os cabelos são outro show à parte – de novo, a garota punk se supera.

Engraçado também ver a transformação da personagem de Carmen Maura, a Pepi do título: de mocinha que quer leilor a virgindade, de trancinhas e suéter largo, à publicitária moderna e exótica. O visual da festa (maiô de paetê azul com óculos de grau amarelo) é demais. Aliás, quem puder ver o filme, reparem na participação do próprio Almodóvar (cabeludo e com bigode) como juiz de um concurso hilário.

Márcia Mesquita



Dia 11
Labirinto de Paixões (1982, 100’)

Madrid, anos 80. Uma cidade incómoda, selvagem e divertida.
Neste segundo trabalho, Almodóvar segue o seu estudo irreverente, recorrendo desta vez ao universo underground da época também nas cenas musicais. Trata-se de uma comédia cheia de caricaturas, como Fábio (Fany McNamara) que rouba a cena logo no início do filme. Almodóvar ainda faz uma participação notável no filme, como o director da novela em que Fábio actua.
Nela decorre uma história de amor invulgar, entre uma jovem ninfomaníaca e o filho homossexual de um imperador árabe. Ela, membro de um violento grupo musical, e ele, mais preocupado com os cosméticos e com os homens, são o fio condutor de uma série de relações entre as personagens mais diferentes que se podem encontrar.
Música, violência verbal, perseguições, paixão, sexo... e acima de tudo o amor e as suas dificuldades.


O rompimento da barreira da exibição restrita do curta-metragem em super-8 aconteceu em Pepi... e se refletiu na proposta do filme seguinte, Labirinto de Paixões – que procura retratar, numa trama chanchadesca e repleta de personagens, aquele certo período em que era concebido. Abrindo-se a ser um registro euforicamente sentimental de uma época, Labirinto de Paixões já nos apresenta Cecilia Roth numa personagem chamada Sexilia (como Pepi já havia apresentado Carmen Maura) e Almodóvar se registra como participante daquele período – como um diretor de foto-novelas e cantor de uma banda de rock performática. Não poderia ser mais pessoal – estava registrando a banda a que pertencia de fato, cantando músicas suas, fazendo performances bizarras no seu próprio longa-metragem. Molecagem bacana, com certeza. Laberinto de Pasiones, mesmo tendo evidentes problemas narrativos (ou, sendo mais claro, tendo uma trama sem importância e sem pé nem cabeça), tem um charme único, é o tipo de filme que poucos podem fazer, que tem algo a mais do que simples idéias, consegue sugerir um certo espírito de vida próprio de um momento. Talvez, sob certo aspecto, seja seu filme mais rico e corajoso. Traz, além disso, um interesse recorrente nos seus filmes: aqui aparece o fascínio pela paixão obsessiva.

Daniel Caetano




Dia 25

Negros Hábitos (1984, 114’)

Fugida da polícia, Yolanda Bell (Cristina Pascoal), refugia-se no convento das Irmãs Humilhadas Arrependidas, um convento muito pouco ortodoxo que recolhe mulheres da rua e onde as freiras mergulham nas sensações da carne de forma a libertar o espírito. Neste convento, a Madre Superiora (Julieta Serrano) droga-se com heroína e cocaína, as Irmãs têm nomes tão sugestivos como Irmã Esterco (Marisa Paredes), Irmã Rata De Rua (Chus Lampreave) ou Irmã Víbora (Lina Canalejas) e dão-se a actividades tão diversificadas como devaneios platónicos lésbicos ou cozinhar sob o efeito de LSD.

Sabida a sua pouca estima pela religião, especialmente a católica, o realizador dá a conhecer uma outra faceta de um grupo de freiras, com as suas vidas duplas e negros hábitos. Numa vida de convento, mostram-se outras dependências que não apenas as de Deus. Estreado no início da década de 80, o que teríamos sobretudo a destacar deste Negros Hábitos será a irreverência e originalidade do autor em retratar de uma forma assim tão descabida, mas ao mesmo tempo tão humana e realista a vida de um grupo de freiras, que antes de o serem, são mulheres com defeitos e fraquezas.

O estilo do realizador evidencia-se desde logo, com um contraste divertido entre a cor negra dos hábitos das freiras e as cores garridas dos seus costumes e dependências. Uma junção improvável de personagens exuberantes que surpreendem numa mistura de terços, rosários, drogas e livros eróticos. A estética de Pedro Almodóvar é a habitual: os tons vivos, os ângulos arriscados e exactos e o surrealismo espreitam entre cada cena do filme.

Tiago Ramos


Co-organização Os Artistas / Cineclube de Faro
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TOURNÉE o que é? 4ªf, 22h - «uma orgia de carne e espírito, uma alegria para os olhos e para o coração, um gesto louco, poético, divertido, alegre...»

CLAUSTROS DO MUSEU MUNICIPAL

Sócios - 2€ (caderno de 5 senhas, 10€)
Não-Sócios - Estudantes 3,5€ / Restantes 4€


Muito boa gente, nestes dias, jura que, acerca do cinema francês, o melhor é rezar dois padre-nossos e uma mancheia de ave-marias pelo seu estado clínico, a ver se Deus-Pai, lá do céu, lhe dá um bocadinho mais de energia e de originalidade, porque em larga parte os filmes já não se aguentam. De vez em quando, todavia, há um assomo de diferença que vale a pena notar.

Acontece agora com "Tournée - Em Digressão", o filme que valeu a Mathieu Amalric o prémio de realização do último Festival de Cannes e uma receção da crítica francesa quase apoteótica. Ator muito conhecido a tentar passos seguros por detrás da câmara, Amalric consegue, assim, um primeiro triunfo.

Diz o cineasta que o bigode que ele usa neste filme é uma homenagem a Paulo Branco. E há quem veja na história de Joachim Zand (papel de Amalric), um produtor francês que volta dos Estados Unidos com um espetáculo teatral de New Burlesque, uma piscadela de olho ao destino arrojado e trágico de Jean-Pierre Rassam e Humbert Balsan, dois homens do cinema francês que jogaram tudo e acabaram mal. É que a hiperatividade do personagem central de "Tournée", sempre a tentar correr mais depressa, a atender telemóveis, a desatender afetos, a ver se a vida não o apanha, tem qualquer coisa de patético, mas também de heróico, porque, se calhar, bom senso e parcimónia são qualidades para guarda-livros e pequenos comerciantes de bairro, mas não para empreendedores do mundo do show business.

A história é, deste modo, assaz simples, pela estrada fora, de teatro em teatro, de pequeno hotel em pequeno hotel, com situações avulsas, episódios pícaros, cenas de bastidores e alguns fugidios momentos do espetáculo em tournée que o realizador, no entanto, nunca filma francamente, preferindo olhá-los de través, dos bastidores, não deixando que o New Burlesque tome conta do filme. É que Mathieu Amalric não quer o glamour, mesmo em tom grotesco - quer o calor e o desencanto de uma trupe em viagem, a aflita humanidade por detrás do folguedo.

Há algo de profundamente triste que se destaca do riso destilado pelas atuações das intérpretes americanas de New Burlesque que neste filme vão em digressão pela França fora - sempre na esperança de poder chegar a Paris. É verdade que é tudo sexy e escancaradamente sublinhado, os seios são tão descomedidos como as ancas volumosas das drag queens de "Hairspray", nada é para levar a sério naquela carnalidade exuberante, como nos exploitation movies de Russ Meyer. Ou, então, é tudo para levar à letra, como descobre um desgovernado amante de passagem de uma das divas hiperoxigenadas. É que há, naquele excesso circense, qualquer coisa de profundamente agreste, porventura agressivo, como se estivesse a acontecer uma exigência de alegria e de prazer e uma severa autoridade nos convocasse para ela sem que, da nossa parte, pudesse ocorrer desalinhamento. Há um elemento de medo ali a circular, no palco e fora dele, e é esse elemento que mais distingue o filme. O seu jogo foge, assim, do que é lugar-comum - nada a ver com aqueles filmes de circo em que há um palhaço que faz rir na pista e tem o coração em desespero. Nada de melodrama nem de fado com choradinhos à guitarra. Não que haja no melodrama (ou no fado bem chorado, já agora) qualquer malformação a que fugir, mas a postura de Amalric é outra e a vida que ele enfrenta não se circunscreve a sentimentos simples.

Dispensam-se fanfarras e despropósitos: no país de Resnais e Cocteau, de Renoir e de Sacha Guitry, Amalric é um profissional com mérito, mas só isso. Quanto a "Tournée", é um filme generoso e sensível - que vale a pena conhecer.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso


Um grupo de artistas de "burlesque" e o seu empresário. Selvagem e melancólico. E vampírico. A ficção bebe a energia do documentário.

Um grupo de "strippers" generosas e o seu empresário. Como se ele, interpretado por Mathieu Amalric, tivesse posto bigode para poder estar à altura delas, sonho de menino a fazer-se homem com raparigas grandes, com exemplares do "burlesque" americano que dão pelo nome de Mimi Le Meaux, Kitten on the Keys, Dirty Martini... Pensem em Dita Von Teese, pode ser, mas a generosidade de formas, aqui, tem menos a ver com o design escultural, é mais rebelde...

Um pouco, ou muito, de "The Killing of a Chinese Bookie", de Cassavetes - naquela forma de alguém estar metido com a sua vertigem, com a sua perda, com a fuga (não se sabe se corre para algo ou se foge de si mesmo, uma genealogia que recentemente desembocou, por exemplo, no "Go Go Tales" (2007) de Abel Ferrara.)

Algo de Renoir, ou seja, uma generosidade no olhar e na(s) forma(s) - este é o "French Cancan" de Amalric.

E Fellini, porque não?, naquela maneira de Joachin (o nome da personagem de Amalric) estar numa infância eterna, atraído por criaturas de seios grandes, de carne e de luz.

Amalric interpreta este empresário de um show de "burlesque" que regressa a França com as suas artistas, recrutadas nos EUA. Está disposto a vencer em casa. Que abandonou, escorraçado pelo novo showbusiness (é de um tempo que terminou e dos que nele insistem e perdem que fala, obviamente, este filme.) Ali quer regressar, ambicionando acabar a tournée do "american cancan" por hotéis esquecidos com um espectáculo que faça dele vencedor em Paris - onde nunca chegará, aliás, porque a vingança de Joachin está como ele: cansada.

(Parêntesis: Joachim esteve para ser interpretado pelo produtor português Paulo Branco, forma de Amalric homenagear criaturas que o fascinam, os produtores de cinema, "a sua loucura e a sua coragem", como disse numa entrevista; e sobretudo um certo tipo de personagem que se mantem como "príncipe" mesmo "não tendo reino nem, sobretudo, poder").

O resultado está em trânsito entre o documentário e a ficção, é selvagem, é melancólico. Amalric faz de "Tournée" um filme em "tournée". Desde logo porque os shows de "burlesque" foram filmados com público a assistir, em "tour" pela costa francesa, coreografia das próprias artistas. Depois, pelo movimento entre a ficção esquálida e terminal (Joachin, o seu bigode, a sua palidez), a precisar de se alimentar, coisa vampírica, e a generosidade documental daquela "troupe".

É um movimento sensualíssimo que se evidencia logo nos planos de abertura, naquelas entradas de corpos, naquelas intromissões e esperas, naquele retrato de grupo que se forma, que se atrai. É um pequeno teatro do que vem a seguir, que se expande a seguir: a expectativa de Joachim/Amalric a pedir que o acolham e a vitalidade delas - "Tournée" desvia-se e ao mesmo tempo alimenta-se da base, a que regressa como quem procura o conforto e segurança.
O que quer que signifique o grito rock'n'roll final, ele sinaliza, antes de tudo, o "tour de force" de um cineasta.
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Vasco Câmara, Ípsilon


ENTREVISTA A MATHIEU AMALRIC

De onde surgiu a inspiração para TOURNÉE – EM DIGRESSÃO?
Para dizer a verdade, de Laetitia Gonzalez e Yaël Fogiel, os produtores, que quando a montagem de “La Chose Publique” ainda nem estava terminada (ainda em 2002!) me disseram: “E agora, qual é o próximo?”
Assim, totalmente esgotado mas muito sensibilizado pelo interesse deles, parti durante vários dias com Marcelo Novais-Teles, um amigo com quem gosto de trocar ideias. E foi um texto de Colette, “The Other Side of Music-Hall”, que transportei comigo durante muito tempo, que acabou por vir à superfície.
Consiste em notas feitas durante uma digressão, escritas para um jornal que as publicou em fascículos, esboços sublimes da sua vida enquanto actriz, uma pantomima um tanto ou quanto escandalosa (Colette tinha então entre 33 e 39 anos), perdida na província: “Corremos para o hotel, para o camarim sufocante, e para as ofuscantes luzes da ribalta. Corremos, impacientes, tagarelando, cacarejando como galinhas, em direcção à ilusão de viver rápido, de sermos calorosas, trabalhar, pensar muito pouco, de carregar dentro de nós nem lamentos, nem remorsos, nem lembranças…”
Procurámos equivalentes contemporâneos; no striptease, na vida nocturna, em qualquer lado. Mas nada surgiu, não conseguíamos encontrar este fascínio pelo movimento, o gosto de Colette pela provocação a rebentar de energia, como uma declaração de independência através do corpo. Só nos chegaram histórias de necessidade, de prisioneiros.

Foi aí que pensou nas raparigas do New Burlesque?
Na verdade foi graças a um artigo do Libération que fazia uma avaliação contagiante da sua
apresentação numa noite no Zèbre, um cabaret parisiense. Em duas páginas havia fotografias de Dirty Martini, a mais felliniana, e Kitten on the Keys, a que toca piano. E de repente, tivemos a sensação de que Colette estava ali, nesta lúdica e tórrida sensualidade, nesta afirmação íntima e política da beleza potencial de cada corpo, independentemente da idade e do quão não-conformista podem ser. O perigoso prazer de actuar, a timidez, a bravura física, a tentadora fragilidade.
Isso foi o início. Mas nessa etapa, baseada apenas em pedaços de papel e algumas fotos, permitiu que a imaginação brotasse. Ou seja, não as queria conhecer pessoalmente naquele momento. Eu queria ter a história em primeiro lugar. E foi nessa altura que Humbert Balsan, o produtor francês independente, se suicidou. Isto abalou-me devido à percepção da possibilidade do fim das nossas vidas mortais. O que se faz quando uma força de resistência como ele desaparece?

Esses são, aparentemente, dois acontecimentos sem relação.
Claro, mas muitas vezes é a colisão de dois elementos que origina a história. Ténue ao início, mas que te deixa obcecado e quase se alimenta de si própria, e depois de tudo. Eu e Marcelo sempre explorámos outro caminho: o meu fascínio por produtores, a sua loucura e a sua bravura. Onde é que eles encontram a força para continuar?
E então encontrámos a ligação. A história de um homem que luta contra a sua melancolia. Um antigo produtor de TV que encena um regresso momentâneo graças a estas raparigas que ele quer vaidosamente apresentar no seu país, como uma prova orgulhosa da sua ressurreição, do seu regresso.
Que quer permanecer, à sua desagradável maneira, um príncipe, custe o que custar. Mas sem um reino, e acima de tudo sem poder – sem ser, claro, o inútil poder da sua liberdade. Um homem sem um lar, que já não sabe se resistir significa saber quando deixar o palco (o que ele fez) ou saber quando se manter na ribalta (o que os seus amigos fizeram).


E quando viu o espectáculo pela primeira vez?
Em Nantes, no Banana Hangar, graças a Kitty Hartl, programadora de dança no Teatro Lieu Unique que, de certa forma, é o modelo para Joachim. Conheci as raparigas com Philippe Di Folco, que se juntou para terminar de co-escrever o guião; ele é um escritor e um curioso por tudo, apaixonadamente erudito. Três dias e noites intensas para transpor, com sorrisos na cara, as nossas intuições para a realidade. Depois disso, assisti a alguns festivais com 150 espectáculos em três dias, em São Francisco, Nova Iorque, Nápoles, entre outras. E criei a minha própria trupe, passo a passo durante pelo menos 2 anos.

O New Burlesque ganhou uma maior aceitação dos especialistas nos media através de Dita Von
Teese.
As actrizes no TOURNÉE – EM DIGRESSÃO são as responsáveis pelo reavivar do New Burlesque. No início, era um movimento lésbico, que começou em 1995 com um grupo chamado The Velvet Hammer.
Estas raparigas têm política nos seus corpos, uma resistência aos físicos formatados que não necessitam de palavras. Hoje em dia, New Burlesque tem sido um pouco apropriado pelo cânone de Las Vegas, com os seus corpos mais conformistas.

“Mange ta soupe” foi um filme sobre a sua família. “O Estádio de Wimbledon” mostrou a mulher
que amava. Pela primeira vez, dirige-se a si mesmo em Tournée. É um passo em direcção ao autoretrato?
Não sei, não pensei muito sobre isso. Eu não queria aparecer em Tournée. Toda a gente, excepto eu, parecia saber que ia acabar por fazê-lo. Tornou-se uma piada que não me dava vontade de rir porque eu estava genuinamente à procura de alguém. E então sim, três semanas antes da rodagem, apesar das minhas dúvidas, e protestando no início, acabei por ser eu.

O facto de estar a representar no filme ajudou-o a abordar a realização de forma diferente?
Sim, foi bastante prático, tenho de admitir, e criou uma cumplicidade divertida. Pude orientar o
movimento, gerar surpresas, recebê-las. Dentro do enquadramento, apercebemo-nos do momento em que o drama deve vir à tona. Durante a cena no comboio, por exemplo, no início do filme, eu disse: “OK, tu gostas de Ophüls, e como em “O Prazer”, gostarias de ver todas estas mulheres adormecidas e lascivas no compartimento. Mas isso não faz uma cena!” Por isso peguei no telefone e comecei a gritar.
Um actor sente se há algo que devemos fazer, se há uma cena que tem de ser representada. E imediatamente, as raparigas e o esplêndido Roky entraram no jogo.
Entretanto Cristophe Beaucarne, o director de fotografia, e eu estávamos preocupados apenas com uma coisa: esforçarmo-nos para que o espectador acompanhasse as personagens e não se preocupasse com quem estava a fazer o filme. Foi quase uma obsessão que se traduziu em algumas questões específicas sobre realização: a distância certa, discrição, o conforto, fluidez de movimento, e também o som captado directamente.

A questão do documentário e do drama surgem repetidamente em TOURNÉE – EM DIGRESSÃO.
Sempre. A questão surgiu na fase de escrita, depois durante a pré-produção – que, por acaso, acho cada vez mais difícil de dissociar da realização. Decidir onde se gasta o dinheiro já faz parte do processo de realização; é aí que o filme fica realmente definido, de facto.
Depois tivemos a intuição de que para preservar a energia espontânea que é vital para os espectáculos, tínhamos de montar uma verdadeira digressão. Pensámos que a câmara não seria suficiente para as raparigas. Elas precisavam de salas esgotadas. E teríamos de dormir nos hotéis onde filmaríamos.
De Le Havre até Rochefort, passando por Nantes, colocámos de pé um espectáculo gratuito a todos aqueles que assinaram uma autorização. Nunca poderíamos pagar a tantos figurantes! Só tivemos duas horas e meia para filmar cada cena, mesmo aquelas com diálogos, mas isso criou uma necessidade urgente, uma precisão que paradoxalmente reforçou o drama. Porque os números tiveram sempre público, foram vividos por uma das personagens e a realização foi construída sobre isso.
Claro que aconteceram alguns momentos extraordinários, tantos que a primeira montagem tinha três horas e 15 minutos. O que se seguiu, com a montadora Annete Dutertre, foi uma luta entre drama e documentário. E sem surpresas – apesar de em alguns momentos com remorsos terríveis – o drama e as personagens tornaram-se a força central.


O filme mostra lugares que apenas conhecemos de passagem, como as cadeias de hotel. Porque quis filmar nestes locais “neutros” na província?
Colette falou muito destes lugares onde não se vê nada. Isso é o que se sente em digressão: Estás em algum lado, sem realmente estares lá. E descobri que havia um mal-entendido divertido: Joachim está a fantasiar sobre a América, enquanto as raparigas fantasiam sobre França e Paris. Mas não vêem quase nada disso, ou então apenas esse lado.

Há uma cena inquietante, num posto de abastecimento na auto-estrada, entre Joachim e a mulher na caixa.
Isso ecoa a canção “Les Passantes”, de Georges Brassens: apenas uma troca de olhares, ver quem podia ter amado… Eu gosto do conceito de digressões e circos que andam de cidade em cidade, e do encontro entre habitantes e aqueles que apenas estão de passagem. Segredos guardados, secretíssimos flutuam em redor de cabinas e auto-estradas. E depois há a incrível actriz, Aurélia Petit.
E todos aqueles uniformes também: empregadas de caixa, hospedeiras de bordo, os staff do hotel, as obrigações sociais, a obediência obrigatória…

Por mais estranhos e vazios que pareçam, os hotéis em TOURNÉE – EM DIGRESSÃO tornam-se locais de alegria e abandono. O filme é realmente uma comédia!
Comédia, isso depende do momento. Joachim é tão tenso. Mas claro, as raparigas do New Burlesque têm o dom de transformar cada sítio numa festa. Elas nunca ficam a queixar-se. Adoro actores histriónicos, pessoas que gostam de pôr uma mesa cheia de pessoas a rir, que vão longe demais, mas que ainda assim precisamos de ter por perto. Tenho sempre medo de que eles se afundem no desespero. Com as raparigas na companhia é a mesma coisa. Não precisavam de revelar o seu passado; as suas caras e corpos contavam a sua própria história. E, ainda assim, elas conseguem transformar uma aborrecida cadeia de hotel num local de desejo.

Joachim sente que está “rodeado de bruxas”. Mas quem é ele realmente?
Aha! Regressamos ao impenetrável mistério da figura do produtor que, como o produtor Jean-Pierre Rassam costumava dizer, tem a responsabilidade de assumir a irresponsabilidade, a qualquer custo. E um produtor também é um actor caso queira sobreviver, encantar, assustar, sonhar. De repente lembro-me do Matamore de Corneille: “Quando quero aterrorizar, e quando quero encantar”. O cigarro, o brilho, os trajes extravagantes, são apenas chamarizes, ferramentas de negócio, armadilhas. No filme, como tributo ao veterano produtor Paulo Branco, usei um bigode. Que Mimi, depois de fazerem amor, parece julgar ser um adereço. Naquele momento, Joachim é apenas um homem a dormir, finalmente.

Há um manual de instruções para filmar mulheres a representar entre si?
Eu não acredito em realizadores que supostamente sabem aquilo que vai no interior da cabeça das mulheres. Em vez disso, vamos abraçar o facto de que o cinema nos permite acordar o rapaz
adolescente que há em nós e que fantasia sobre os quartos das raparigas. Recordo-me de um momento durante as filmagens, aquele no terraço quando Mimi está a contar a Dirty a sua aventura na casa de banho. Filmámos muitos takes, elas andaram por ali, a personagem de Mimi um pouco envergonhada e taciturna, mas tornando-se mais amigável enquanto falava com a amiga; aquela era a cena planeada.
Tudo bem. Estávamos prestes a mudar de cena quando tenho um impulso: “Mimi, porque não contas à Dirty [Martini] o que acabou de aconteceu?”. Mimi voltou a contar, nas suas próprias palavras, e então Dirty reagiu, representando (porque, mais uma vez, enquanto show girls, estão sempre a “dramatizar”). E ali estou eu, atrás da câmara, com os auscultadores postos, e, graças à sua generosidade e diversão, entrei no quarto das raparigas.
O próprio facto de filmar estas mulheres torna-se um acontecimento. Elas têm tanto carisma!
Admito que a acrobacia narrativa de trazer estas raparigas americanas até França me salvou de uma certa vulgaridade, isso de certeza. Tudo se tornou interessante e fresco, de repente. Partilhámos fantasias comuns, trocámos os nossos territórios.

Quando usa a palavra território, voltamos a uma visão de um homem entre mulheres…
Eu e o Philippe diríamos: em primeiro lugar, o poder do grupo. Joachim, de início, não olha para elas individualmente, depois seguem em frente como um só. Sorte ou destino, o que preferir, conspiram para que eles se juntem e algo acontece. O que de facto o traz de volta, alivia-o, no interior do grupo. É o conjunto das mulheres que o “adopta” no final.

NEW BURLESQUE
New Burlesque é uma versão renascida e actualizada de um género cujas raízes estão firmemente alicerçadas na tradição do music-hall inglês e americano.
Originalmente, os espectáculos Burlesque eram uma mistura de sátira social, números musicais e insinuação, e tornaram-se uma parte importante da cena teatral americana durante as décadas de 1920 e 1930.
Gradualmente, o género foi diminuindo para se transformar simplesmente em nudez em cima de um palco, tornando-se sinónimo de striptease.
A partir dos anos 90, o renascimento do Burlesque, conhecido como Neo ou New Burlesque, inspirou-se nestes dois períodos, partindo do elemento striptease e reintroduzindo teatro, coreografias, glamour, humor, sátira e uns salpicos de desordem.

MIMI LE MEAUX
A californiana Mimi Le Meaux é uma das fundadoras da dupla Dis Dress, um projecto na origem do renascimento do Burlesque em meados dos anos 90. Descendente directo dos grandes números de striptease dos anos 50, o seu trabalho tem uma ligação muito forte com a música garage e punk-rock (ela chegou a actuar com os The Damned) e com a qualidade estética visível em filmes de culto ou série B. Como Ben Vaughn canta, “When she shake her moneymaker / you better call the undertaker / She’s like a good bad dream / She’s a real scream”.

KITTEN ON THE KEYS
Kitten canta. Kitten faz piadas. Kitten sorri de forma afectada. Kitten toca piano, ukulele e acordeão. Kitten agita as suas penas e depois rasga-as. Kitten põe de pé um óptimo espectáculo. Kitten dá a conhecer cada um dos seus múltiplos talentos. Kitten on the Keys lidera, vivamente, o Cabaret como mestre-de-cerimónias, abrilhantado com canções como “Hole in my Head”, “Kitty Muffins” e “My Girl’s Pussy” onde inúmeras insinuações estão longe de ser… insinuadas.

DIRTY MARTINI
Dirty Martini, Miss Exotic World em 2004, é uma das mais conhecidas e amadas artistas do New Burlesque. Não há aqui qualquer vaidade na palavra artista. A sua magistral interpretação de coreografias clássicas de Burlesque (balloon pop striptease, leque oriental ou a dança dos sete véus) é abrilhantada duplamente pela sua incrível elegância. O seu número em que encarna uma figura que se liberta das suas roupas e vai descobrindo cada vez mais dólares escondidos é hilariante e pungente. Imprescindível.


JULIE ATLAS MUZ
As actuações de Julie Atlas Muz estão na fronteira entre o Burlesque e a dança contemporânea, um espaço inventado que transporta as preocupações da Arte para o burlesco e os apelos e tormentos da carne para a Arte. Os seus trabalhos vão desde uma sereia num aquário gigante até ao Ballet (“I am the Moon and You Are the Man on Me”) e até aparições televisivas. Julie Atlas Muz é, ao mesmo tempo, a Miss Exotic World 2006 e artista convidada das bienais de Valença e Whitney. Infame na sua Nova Iorque natal e por vezes odiada pela imprensa, o seu trabalho é “Divertido. Perturbador. Magnífico. Medonho.” de acordo com a Village Voice.

EVIE LOVELLE
Cara de anjo e corpo diabólico, Evie Lovelle parece acabada de sair de um film noir da década de 40 ou 50. Rita Hayworth em “Gilda”? Jane Greer em “O Arrependido”? Jean Peters em “Mãos Perigosas”? A quintessência da mulher maldosa com menos roupa e mais leques de penas. Evie ganhou o prémio Miss Most Classic no Burlesque Hall of Fame em 2008, pelo primeiro espectáculo em cima de um palco.

ROKY ROULETTE
O Cabaret New Burlesque também é para raparigas. Roky Roulette é a única pessoa no mundo que faz striptease em cima de um cavalo de pau. O sempre saltitante Roky acaba completamente despido e desenfreado em frente a uma multidão enlouquecida. A sua impressionante performance física é um dos motivos mas, para muitos, a sua incrível energia e entusiasmo são completamente contagiosos.



Título original: Tournée
Realização: Mathieu Amalric
Argumento: Mathieu Amalric, Phillipe Di Folco, Marcelo Novais Teles, Raphaële Valbrune
Fotografia: Christophe Beaucarne
Som: Olivier Mauvezin
Montagem: Annette Dutertre
Interpretação: Mimi Le Meaux – Miranda Colclausure, Kitten on the Keys – Suzanne Ramsey,
Dirty Martini – Linda Marraccini, Julie Atlas Mutz – Julie Ann Muz,
Evie Lovelle – Angela de Lorenzo, Roky Roulette – Alexander Craven,
Joachim Zand – Mathieu Amalric, François – Damien Odoul, Ulysse – Ulysse Klotz
Cenários: Stéphane Taillasson
Origem: França
Ano: 2010
Duração: 111’
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Reservas até às 17h do dia da sessão: ccf@cineclubefaro.com (levantar até às 21h45)
Comprar para qualquer sessão (na sede ou nas sessões – bilheteira abre às 21h30)
Abertura das portas do recinto: 21h45

Aqui ama-se o cinema: ROAD TO NOWHERE de Monte Hellman, 20 anos depois! Ao ar livre, 3ªf, 22h

CLAUSTROS DO MUSEU MUNICIPAL

Sócios - 2€ (caderno de 5 senhas, 10€)
Não-Sócios - Estudantes 3,5€ / Restantes 4€



20 anos depois, Monte Hellman volta ao cinema. E volta com o espírito de um jovem realizador que quer experimentar tudo (todos os planos, todas as tecnologias), mas que para além da ambição, conta com um domínio tremendo sobre o que é fazer cinema.

Foi num blog que encontrámos há dias a melhor imagem para descrever este filme: matrioshka, as célebres bonecas russas que escondem bonecas. Pedimo-lo emprestada porque Road to Nowhere apresenta-se assim, com ideias portentosas que escondem novas ideias... que escondem novas ideias. E passamos boa parte do filme atordoados.

A sinopse fala-nos de um realizador (Mitchell Haven, que partilha as iniciais do nome com o realizador) que anda a fazer um filme sobre uma morte, que na verdade pode muito bem ter sido uma encenação. Começamos o filme precisamente a olhar para um DVD com Road to Nowhere escrito a marcador preto. O DVD é inserido no portátil e a câmara centra-se no pequeno ecrã. Parece uma porta para outra dimensão.

Lá dentro, neste filme dentro de um filme, temos uma actriz escolhida para um papel principal, que pode muito bem ser a tal mulher da história “verídica” que está a ser filmada. O que é real? O que é ficção? A dada altura deixa de importar. Faz de conta que é tudo um sonho. Faz de conta que Monte Hellman faz dele próprio, num sonho que poderia ter nascido num qualquer recanto do cérebro de David Lynch.

Road to Nowhere é coisa labiríntica, densa; algo alienígena. Um objecto estranhíssimo que reclama atenção a cada detalhe. Há filmes que apetece ver várias vezes. Já sabemos o que se vai passar mas estamos mais interessados em revisitar personagens, em rever cenas marcantes e, com sorte, cravar um par de diálogos na memória. E depois há filmes que não nos deixam a cabeça até novo visionamento. Aqui temos este segundo caso, qual combate de boxe em que queremos voltar para um novo round – e fazemos todos os possíveis para evitar um KO. Embora parte da nossa consciência ainda esteja a tentar racionalizar o que acabou de acontecer, há que respirar fundo e aceitar que queremos mais disto, seja lá o que isto for.
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Pedro Filipe Pina, vousair


Objecto vindo de lugar nenhum, autêntico "monólito negro" na paisagem do cinema americano contemporâneo.

"Two Lane Blacktop", a obra-prima de Monte Hellman, um dos grandes filmes americanos dos anos 70, e o "road movie" que por si mesmo consagrou o género como uma metafísica da apatia, ou coisa parecida, terminava com a película a arder. A última coisa que se via era um fotograma incendiado, o filme a desfazer-se à nossa frente - como se fosse a única maneira de acabar com aquilo, porque "a estrada não tem fim" (como dizia o título português de "Two Lane Blacktop") e assim sendo é uma estrada para lugar nenhum, uma "road to nowhere".

Quase quarenta anos depois, e perante um filme chamado, justamente, "Road to Nowhere", é inevitável pensar que Monte Hellman brinca aos encadeados: da película de "Blacktop" ao DVD que está no centro do primeiro plano deste filme, um DVD onde o título do filme está escrito a caneta (como num vulgar DVD pirata) e que é posto a rodar num computador portátil. Primeiro sinal labiríntico. Depois, a câmara de Hellman mergulha em zoom sobre o ecrã do portátil, até que as margens do enquadramento do filme e do filme no filme sejam coincidentes - e a partir desse momento o labirinto é mais do que um sinal, é o território, bifurcado, incerto, especular, sem saída, que "Road to Nowhere" habita até ao fim (e desta vez há um "fim", embora tudo possa sempre voltar ao princípio: ao último plano do filme, podia suceder-se o primeiro, a rodela a ser inserida no leitor, e tudo a começar outra vez). As primeiras imagens do "filme no filme" (ou será, apenas, do "filme") são um longo, longuíssimo, plano de uma rapariga sentada na cama a secar o cabelo, enquanto na banda sonora passa uma canção melancólica sobre "ajuda para passar a noite". É fabuloso - dávamos um doce a quem provar que nos últimos anos viu um filme a entrar desta maneira. Se "Road to Nowhere" acabasse no fim desse plano com o secador já tinha minutos que bastassem para que só tivéssemos vontade de bater palmas.

E esses minutos, como um daqueles "sumários" ao género dos que Hitchcock gostava de fazer, condensam a matéria que "Road to Nowhere" tem para explorar: a componente reflexiva, de filme sobre o cinema, sobre o cinema como ele se faz e se vê hoje (os ecrãs eletrónicos, os aparelhos de vídeo, etc) e sobre o cinema como ele sempre foi (coisa abissal, mergulho sobre o ecrã, fascínio e perdições, espelhos e reflexos); e, não negligenciemos isto, uma infinita paciência para seguir, registar, deixar-se hipnotizar, pelos mais ínfimos e anódinos gestos da actriz principal, Shannyn Sossamon, ora luz ora sombra, quer dizer, actriz em "chiaroscuro" (o "casting", o "casting" e o "casting" são as três tarefas mais importantes de um cineasta, diz o realizador do filme no filme, que se chama Mitchell Haven e tem, caso não se note, as mesmas iniciais que Monte Hellman). Nesse ponto, o filme e o filme no filme tocam-se: são ambos dominados pelo inexorável fascínio por uma mulher, dúplice e misteriosa. "Le cinéma, c''est faire des jolies femmes faire des jolies choses", não foi Monte Hellman que o disse mas podia ter sido.
Objecto vindo de lugar nenhum, autêntico "monólito negro" na paisagem do cinema americano contemporâneo, "Road to Nowhere" só pode ser comparado com algum Lynch (o de "Inland Empire", mas sem o sobrenatural e sem a psicanálise), na sua relação/reinvenção com uma mitologia hollywoodiana (e mais do que hollywoodiana: até Bergman é explicitamente citado), e pelo seu lado vertiginosamente reflexivo e terminal (tudo acaba com um movimento de câmara a perder-se dentro dos contornos negros de um poster da protagonista), como o "Cigarette Burns" de John Carpenter. Ou seja, com os grandes filmes americanos sobre a cinefilia no século XXI. E parece uma coisa imensa: Monte Hellman disse algures que "não bastava vê-lo duas vezes" e é capaz de ter razão. Assim como assim, depois de escrito este texto ainda o vamos ver uma terceira vez.
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Luís Miguel Oliveira, Ípsilon



INCLUI DECLARAÇÕES DO REALIZADOR

Estamos em setembro de 2010, é fim de semana em Veneza. "Road to Nowhere - Sem Destino", de Monte Hellman, corre pelo Leão de Ouro. É o filme mais apaixonante a concurso. Encontramos o cineasta num terraço do Hotel Excelsior vazio. Monte não realiza uma longa-metragem há 23 anos, desde "Iguana". Tem 78 anos de vida, 52 de carreira. Cartões de visita? Símbolo do cinema independente americano. O homem que lançou Jack Nicholson. O autor do sublime "Two-Lane Blacktop - A Estrada Não Tem Fim" (1971), filme de todos os cultos. O produtor que permitiu a Tarantino realizar "Cães Danados". And so on. Monte recebe-nos ao lado de Steven Gaydos, argumentista de "Road to Nowhere". No dia seguinte, deixará Veneza com um Leão de Ouro à carreira.

É que, no filme de Hellman, há outro filme lá dentro e outra rodagem. E a atriz que vemos interpreta outra atriz, que por sua vez está a interpretar outra personagem, noutro filme, na mais extraordinária mise en abîme que se viu em muitos anos e que o texto seguinte aprofunda. Digamos numa simplificação impossível que, a Monte, interessa tanto o filme como o seu fantasma. Que atrás de cada filme há sempre uma história de rodagem (um realizador a meter-se com a sua atriz? – dá outro filme). Um fantasma de cinema que nos fará duvidar o tempo todo da natureza de cada plano, gerando a ilusão da ilusão da ilusão... até que a câmara se torne uma arma. Fiquemos, para já, por aqui. Até porque o cineasta acrescenta que "é como se 'Road to Nowhere' fosse o meu primeiro filme e tudo o que fiz até aqui não passasse de um mero ensaio."

E, agora, a Monte o que é de Monte. "Não estive parado todos estes anos. Trabalhei no duro numa boa dúzia de projetos que nunca chegaram a ver a luz do dia, produzi o primeiro filme do Quentin, construí de raiz e estava pronto a filmar 'Buffalo 66' (que Vincent Gallo acabou depois por dirigir), elaborei argumentos que estão agora prontos a filmar, assinei curtas-metragens e ainda dou aulas, no California Institute of the Arts de Los Angeles. Aulas de cinema. Seguindo uma filosofia muito simples: o cinema é coisa que não nasceu para ser ensinada. A primeira coisa que digo aos meus alunos é isto: 'olhem que estão a gastar mal o vosso dinheiro.' Em Hollywood, acho que continuam sem saber quem eu sou. (...) Cada filme que fiz antes de 'Road to Nowhere' foi trabalho de encomenda. Ideias que não eram minhas. E em todos tratei de rescrever o argumento e ganhar outra liberdade, tal como aconteceu com o 'Two-Lane Blacktop”. Que de resto não era um filme sobre corridas de carros, mas sobre uma personagem em conflito entre o seu trabalho e a necessidade de manter uma relação íntima. Este é um problema que também inquieta Mitchell Haven, o realizador que 'está dentro' do meu filme e que Tygh Runyan interpreta. Ele é uma personagem por inteiro, independente, apesar de dizer coisas que eu digo às vezes. E de gostar dos mesmos filmes que eu... 'Road to Nowhere' é um filme sobre filmes e ao mesmo tempo o resultado da minha própria experiência de vida. No fundo, é um livro de memórias (...) Nos meus filmes, acho que o herói é sempre alguém que, por qualquer motivo, se descobre incapaz de comunicar o suficiente com o que ama. Por outro lado, acho que nos meus filmes os atores e as personagens criam uma relação especial que ultrapassa sempre o que está escrito no argumento. Eu passo o tempo a dizer-lhes: 'o vosso trabalho não é transformarem-se nas personagens. Porque as personagens têm que ser vocês'. Acho que é tudo uma questão de casting que depois opera com o subconsciente num processo evolutivo. A Shannyn compreendeu isso perfeitamente. (...) Cinema independente? Bom, sem¬pre me senti mais próximo de Hollywood do que dessa definição. A minha verdadeira inspiração continua a ser a mesma: os clássicos americanos dos anos 40."
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Francisco Ferreira, Expresso


No final de "Two-Lane Blacktop" (1971, "A Estrada Não Tem Fim"), o som desaparece e a película desacelera até pegar fogo, como se tivesse ficado presa e o calor da lâmpada de projecção a queimasse. Quando isso acontecia, no final de uma viagem sem destino nem regresso pela América dos anos 1970, era como se o cinema se desintegrasse - como se não fosse possível ir mais longe e o que restasse fosse apenas o nada em que, alguns anos antes, a "Máscara" de Ingmar Bergman (1966) nos deixara no seu final igualmente abrupto. Um limbo onde tudo se interrompia, à espera que a película voltasse a correr.

Quarenta anos depois, a viagem interrompida retoma-se, já não em película mas agora em digital, numa "road to nowhere" que não invocará tanto a canção dos Talking Heads como as "estradas perdidas" de David Lynch. Mas quem está ao volante volta a ser Monte Hellman, 79 anos, "o professor do cinema americano que nunca se deixou engolir pela indústria" nas palavras de Fabio Testi.

"Road to Nowhere - Sem Destino" é apenas a sua longa número onze numa carreira iniciada em 1959 com "The Beast from Haunted Cave". É a sua primeira longa em vinte anos, e chega esta semana às salas (numa inversão digna de nota num país onde o cinema de autor chega cada vez mais aos solavancos, Portugal é o primeiro território europeu a estrear o novo filme, uma semana antes de França). Mas é também, como Hellman faz questão de dizer sempre que lhe perguntam, e como reitera ao Ípsilon por e-mail de Los Angeles, "o meu verdadeiro primeiro filme. O único onde estive envolvido no processo desde o princípio" .

No papel, é uma variação sobre os temas do filme negro ambientada no meio do cinema, escrita por Steven Gaydos, jornaIista da revista "Variety" e colaborador criativo do realizador há quarenta anos: um director (Tygh Runyan) que está a rodar um "fiIm noir" baseado num caso verídico dei¬xa-se levar até à obsessão pela actriz (Shannyn Sossamon) que contratou para o papel, e as fronteiras entre a realidade e a ficção começam a diluir-se à medida que as rodagens avançam. No seu e-mail, Hellman diz ao Ipsilon que a história começou "como um desejo de documentar 40 anos da nos¬sa experiência a fazer filmes sem orçamento. Combinámo-la com uma história clássica de filme negro, do género que preferimos. E depois ganhou vida própria, com os actores e os exteriores, de modo muito tangível, a tornarem-se co-autores do filme. "

Mas uma coisa é o papel, outra coisa é o filme acabado. E as questões são inevitáveis: este olhar desencantado sobre uma Hollywood que - nas palavras do realizador - não mudou grandemente ao longo das décadas ("excepto no que diz respeito à disponibilidade de novas tecnologias") é um reflexo da própria experiência de HeIlman numa cidade que parece nunca o ter ttatado bem?
Ele esquiva-se. "Quaisquer mensagens que se leiam nos meus filmes são certamente projecções do especta¬dor, porque sempre segui o conselho [do produtor] Samuel Goldwyn: se se quer mandar uma mensagem, manda-se um telegrama."

Um pouco, então, dessa experiência. Hellman começou na fábrica de Roger Corman em finais dos anos 1950, como tantos contemporâneos que fizeram a história da "nova Hollywood" que tomou conta dos destinos da Meca do Cinema na transição dos anos 1960 para os anos 1970. Mas, talvez por ser mais velho que os colegas, nunca conseguiu o reconhecimento que merecia.

O tratado de Peter Biskind sobre essa geração da qual faziam parte Coppola, Bogdanovich, De Palma, Lucas, Scorsese, Rafelson & etc., "Easy Riders, Raging Bulls", ignora-o - excepto para explicar que "Two-Lane Blacktop", o filme que de modo mais preciso alinhou a carreira de Hellman com a "nova Hollywood" , recebera luz verde da Universal quando o estúdio embarcou no comboio de "Easy Rider" (1969) e foi despejado sem promoção nas salas quando ficou pronto, já a onda tinha passado.

Ao "New York Times", há menos de um ano, Steven Gaydos dizia que "se Robert Altman não tivesse tido 'M*A*S*H', nunca teria podido fazer todos os outros grandes filmes que fez. E Monte nunca teve um 'M*A*S*H"', em referência à sátira de 1972 cujo sucesso crítico e público colocou Altman no mapa. Hellman descarta a questão. "Acho que o Steve estava a falar de sucesso de bilheteira e não de qualidade... Se eu teria gostado de ter tido um "M*A*S*H'? Absolutamente. Tudo teria sido muito mais fácil. "

No entanto, nunca esteve parado. Entre "Two-Lane Blacktop" e "Road to Nowhere", dirigiu quatro longas-metragens que, à imagem das seis anteriores, foram rodadas com orçamentos mínimos (em alguns casos, na melhor tradição de Roger Corman, filmando "dois pelo preço de um" ao mesmo tempo) e não foram vistas, nem sequer no seu próprio país. Todos esses filmes foram encomendas. "Fiz o melhor que pude com o que me coube em sorte. Tive no geral o luxo de poder criar coisas novas para ou refazer completamente o material que me era proposto. Mas todos começaram como ideias de outras pessoas."

Pelo meio, realizou para televisão, montou filmes de outros (“Assassinos de Elite", 1975, para Sam Peckinpah), ajudou a produzir a estreia de Quentin Tarantino ("Cães Danados" , 1992) e - sobretudo - faz parte do corpo docente do California Institute of the Arts, onde ensina cinema. No interregno mais longo da carreira - vinte anos entre "Silent Night, Deadly Night 3" (1989), sequela que aceitou por motivos alimentares, e "Road to Nowhere" - nunca lhe "passou pela cabeça que não estava a realizar, porque estava constantemente a trabalhar em direcção a isso. O tempo passa a correr quando nos estamos a divertir. Além do mais, vivi muitas coisas que me permitiram reunir o material e a experiência que possibilitaram “Road to Nowhere”.

O titulo do novo filme - "estrada para lugar nenhum" - é apropriado quando compreendemos que Hellman é um daqueles cineastas que dá razão ao velho adágio que "ninguém é profeta no seu próprio pais". Seis meses depois da apresentação em Veneza 2010, "Road to Nowhere" ainda aguarda data de estreia nos EUA. Em Veneza, Steven Gaydos dissera que o filme havia sido "feito fora de HolIywood e fora do cinema independente americano actual, e isso perturba algumas pessoas." E o orçamento (superior aos que Hellman tinha nos anos 1960, mas ainda assim inexistente pelos padrões contemporâneos - "fazer um filme de baixo orçamento hoje em dia é muito difícil porque é quase impos¬sível obter retorno sobre o investimento sem ter nomes fortes no elenco") tomou a rodagem numa luta constante.


(Shannyn Sossamon disse ao "New York Times" nunca ter trabalhado num filme onde "até os produtores se queixavam de não termos dinheiro nenhum". Mas não foi, no entanto, a falta de dinheiro que levou o realiza¬dor a optar por rodar em digital – já “convertido” ao formato enquanto fotógrafo, "foi uma escolha minha para garantir maior controlo na imagem".)

Por mais que os observadores vejam Hellman como um cineasta enraizadamente americano, os seus filmes não tiveram exposição na América ("'Road to Nowhere' é o meu primeiro filme a ter um distribuidor americano empenhado"), e é na Europa que o seu cinema tem sido melhor recebido. ''Já me chamaram um realizador americano e um cineasta transatlântico...As minhas raízes estão em [Alfred] Hitchcock, [Howard] Hawks, ([John] Huston e [George] Stevens, mas não pude evitar ser influenciado pelo neo-realismo italiano, pela Nouvelle Vague francesa e pela psicanálise sueca" .

Essa conjugação de influências clássicas e modernas é visível em "Road to Nowhere". O filme cita "O Espírito da Colmeia" (1973) do espanhol Victor Erice mas também "As Três Noites de Eva" (1941) de Preston Sturges, nome maior da comédia americana clássica que foi esquecido pelas novas gerações. E quando lhe sugerimos que há um forte travo de "Vertigo" , a célebre "Mulher que Viveu Duas Vezes" (1958) de Hitchcock, no novo filme (a personagem de Shannyn Sossamon seria uma espécie de gémea invertida de Kim Novak), os pontos de exclamação traem o entusiasmo. "Se houve um filme que esteve sempre na nossa cabeça enquanto rodávamos, foi 'Vertigo'."

Em Veneza 2010, "Road to Nowhere" foi recebido com perplexidade - e o realizador puxou de uma velha citação que o tem acompanhado desde sempre, de Jean Cocteau, como uma obra de arte deve ser "de colheita difícil", referindo que gostava da definição que um amigo tinha dado do seu filme que "não podia ser visto apenas duas vezes". No e-mail, precisa: "acredito que um filme que não vale a pena ser visto várias vezes não vale a pena ser visto de todo". Mas, retomando a citação do esteta francês, "Cocteau queria dizer que uma obra de arte deve revelar os seus tesouros com múltiplas visões. Concordo plenamente. Mas não creio que seja algo que procuro conscientemente."

Hellman rejeita qualquer "deliberação" no seu método, explicando que trabalha "primordialmente através do uso de sonhos, emoções, subconsciente", o que implica grande confiança com o elenco. Na conferência de imprensa de Veneza, Steven Gaydos explicava que "a relação com os actores para o Monte é muito importante, porque houve muita coisa resolvida com eles, no momento. A confiança e o conforto com os actores propulsionaram o filme." No seu email, o realizador esclarece que tenta "criar um ambiente que reforce a confiança do actor, o encoraje a experimentar sem ter medo de falhar, sabendo que vai estar protegido. Não exijo 'resultados' . Espero que isso leve à nossa incapacidade de distinguir entre a personagem e a pessoa, entre a representação e o ser." Tudo com um objectivo: "Para parafrasear Griffith, o que estou a tentar conseguir é fazer o espectador sentir. E descobri um fenómeno interessante: quanto mais cerebral for a audiência, tanto menos apreciarão ‘Road to Nowhere’...”
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Jorge Mourinha, Público




Título original: Road to Nowhere
Realização: Monte Hellman
Argumento; Steven Gaydos
Fotografia: Josep M. Civit
Montagem: Céline Ameslon
Música: Anastasia Brown (supervisora)
Interpretação: Shannyn Sossamon, Dominique Swain, Tygh Runyan, Cliff de Young, Waylon Payne
Origem: EUA
Ano: 2010
Duração: 121’
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Reservas até às 17h do dia da sessão: ccf@cineclubefaro.com (levantar até às 21h45)
Comprar para qualquer sessão (na sede ou nas sessões – bilheteira abre às 21h30)
Abertura das portas do recinto: 21h45

2ªf, 22h, ao ar livre. POTICHE - «Deliciosa comédia liderada por uma Catherine Deneuve hilariante. A não perder!»

CLAUSTROS DO MUSEU MUNICIPAL

Sócios - 2€ (caderno de 5 senhas, 10€)
Não-Sócios - Estudantes 3,5€ / Restantes 4€



O novo filme de François Ozon é várias coisas ao mesmo tempo. Uma adaptação da peça homónima de Pierre Barillet e Jean-Pierre Grédy, os reis da comédia de boulevard em França entre as décadas de 50 e 80. Uma homenagem às comédias de Louis de Funès, por via de personagens como a do “funesiano” patrão tirânico e colérico Robert Pujol (Fabrice Luchini). E ainda uma actualização da peça que lhe está na origem com uma “mensagem” política e para-“feminista” dirigida à França contemporânea (embora o enredo se passe em 1980), através de Susanne Pujol (Catherine Deneuve), que começa o filme na pele de uma “tia” de província rica e desocupada, e a meio já assumiu a direcção da fábrica do marido e dominou quer as forças do capital, quer as do trabalho. Há ainda um fogacho de romance entre Suzanne e Babin, o presidente da Câmara, comunista dos quatro costados (Gérard Depardieu), confusões envolvendo o filho e a filha dos Pujol, e um “deslize” de juventude que emerge do passado.

Apesar desta história tão atarefada e de ter acrescentado coisas à peça original, sobretudo o elemento da emancipação feminina, Ozon não perde o controlo do leme cinematográfico nem dá fífias na recriação das decorações, cores, sons e atitudes dos anos 80. E é sempre um gosto ver juntos Deneuve e Depardieu, o par “histórico” do cinema francês, desde que contracenaram pela primeira vez em O Último Metro, de François Truffaut. Precisamente em 1980.
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Sérgio Abranches, Timeout


Com "Minha Rica Mulherzinha", Ozon fala a brincar de coisas sérias e dá a Catherine Deneuve um papel deliciosamente efusivo.

François Ozon passa a vida a dar guinadas numa carreira que parece apenas conduzida pela sua vontade de fazer um filme diferente do que fez antes, mesmo que se detectem no seu cinema dois temas centrais que ressurgem repetidamente (o papel da mulher na sociedade contemporânea, e o confronto quotidiano com a família). Não devia, por isso, ser uma surpresa vê-lo a abraçar a alta comédia em "Minha Rica Mulherzinha", adaptação de um grande êxito do teatro de boulevard de 1980, a seguir ao melodrama de "O Refúgio" e à fantasia surreal de "Ricky".

Nem vê-lo a introduzir essas suas marcas registadas na história de uma dona de casa provinciana que, forçada a assumir o lugar do marido, patrão tirânico, na fábrica familiar, se torna numa patroa exemplar e descobre que a sociedade não está forçosamente interessada em reconhecer o seu valor. Ozon aproveita, ao mesmo tempo, para lançar o seu proverbial olhar entomológico sobre uma sociedade que não mudou assim tanto nos trinta anos que passaram desde a criação da peça, e para exultar com a oportunidade de devolver algumas cartas de alforria a uma comédia francesa que há muito não víamos tão descontraída.

É inevitável pensar nas "8 Mulheres" que fizeram de Ozon um dos jovens cineastas franceses mais em vista, e de facto "Minha Rica Mulherzinha" partilha com essa comédia algum ADN de artifício deliberado, mas sente-se aqui uma outra gravidade e uma elegância mais reservada onde o anterior era um filme muito mais sulfuroso e ácido. Filmado de modo abertamente "seventies", mas sem nostalgia serôdia e sempre com uma piscadela de olho meta-referencial que pede a cumplicidade do espectador, simultaneamente irónico e afectuoso, o filme procura transcender as limitações da peça que lhe está na origem sem por isso negar o prazer de desfrutar das suas convenções a um nível puramente epidérmico. E o prazer enorme de ver Catherine Deneuve numa performance deliciosamente efusiva, recordando como a diva icónica do cinema francês também pode ser uma actriz de comédia de primeiríssima água, já chegaria para recomendar "Minha Rica Mulherzinha".

Mas este é um filme muito mais esquivo do que parece, que esconde ainda uma sátira política inspirada pelo confronto eleitoral entre Nicolas Sarkozy e Ségolène Royal e um retrato de mulher que se decide a tomar o seu destino nas mãos pelo meio de uma comédia muito mais séria do que o primeiro embate pode dar a entender.
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Jorge Mourinha, Ípsilon


DECLARAÇÕES DE FRANÇOIS OZON

NO PRINCÍPIO…
Desde há muito tempo que eu queria fazer um filme sobre o papel social e político da mulher. Quando há dez anos atrás assisti à peça POTICHE – MINHA RICA MULHERZINHA de Barillet e Grédy, ocorreu-me imediatamente que ali havia material para um filme. Mas demorei muito tempo a apropriar-me do texto, a perceber como iria adaptá-lo e a dar-lhe actualidade. Senti que conseguiria dar-lhe o tom das comédias excêntricas, mas não queria acabar a fazer um filme voltado para o passado, desligado da realidade.

Existiram dois catalisadores para que o projecto avançasse. Primeiro, conhecer os irmãos Altmayer, produtores, que me propuseram que fizesse um filme político sobre Nicolas Sarkozy, à semelhança de A Rainha, de Stephen Frears. Segundo, as eleições presidenciais francesas em 2007, durante as quais eu acompanhei a candidatura de Ségolène Royal com interesse.

ADAPTAR A PEÇA
Rapidamente percebi que o trabalho de adaptação desta peça iria ser muito diferente do que tinha feito nas duas anteriores peças que adaptei. Ambas as anteriores tinham lugar em cenários muito confinados, por isso a minha abordagem foi intencionalmente teatral. GOUTTES D’EAU SUR PIERRES BRÛLANTES era sobre constrangimentos e a prisão emocional de um casal. OITO MULHERES foi a oportunidade de colocar um grupo de mulheres – actrizes – numa jaula e observar o comportamento delas.

POTICHE – MINHA RICA MULHERZINHA é uma história de emancipação. É sobre libertar Suzanne da sua jaula de forma a ela poder percorrer o mundo lá fora. O filme foi filmado maioritariamente em exteriores, ao contrário dos outros dois que tinham sido filmados totalmente em estúdio. À medida que ia trabalhando na adaptação fui-me apercebendo que bastava ajustar pequenos detalhes já existentes na peça e conseguiria estabelecer paralelos com a sociedade e o ambiente político actuais. Nos dias que correm, há mais mulheres na liderança de empresas, mas muitos dos problemas e atitudes que têm de enfrentar não mudaram muito nos últimos trinta anos. A peça termina com Suzanne a assumir o comando da fábrica e a afastar-se do marido e do amante. Eu acrescentei uma terceira parte, na qual o marido volta a conseguir o comando da fábrica. A humilhação e frustração de Suzanne desperta-lhe um sentimento de vingança que a faz entrar no mundo da política. A ideia de uma carreira política é sugerida na peça, quando a um determinado momento ela diz em tom de desafio: “Um dia vou concorrer a um cargo político, eu dirigi uma fábrica, certamente posso dirigir França!”

Durante a adaptação da peça reuni-me regularmente com Pierre Barillet, e ele foi lendo as diferentes versões do que eu ia escrevendo. Apoiou-me muito, deu-me muitas ideias e foi flexível às minhas mudanças na peça. Ficava contente ao ver a peça ganhar nova vida. Nunca me fez sentir que eu estava a trair o trabalho dele.


MANTENDO O AMBIENTE DOS ANOS 70
Ao mantermos a acção a desenrolar-se nos anos 70 conseguimos um distanciamento que nos permitiu fazer referências à actual crise económica com humor, o que era importante para mim. Centrar a acção no presente teria feito com que o filme ficasse muito mais pesado. E deixaria de fazer sentido a força da personagem do Babin: na França dos anos 70 o Partido Comunista reunia 20% dos votos. E a sociedade francesa estava, na altura, bastante mais dividida. As pessoas de direita nunca se misturavam com as pessoas de esquerda, e vice-versa. Eram dois mundos separados, especialmente nas províncias. Naquela altura, se a mulher de um empresário dormisse com um comunista, isso era considerado um acto supremo de traição.

Além disso, foi muito engraçado recrear aquele período. Eu era uma criança em 1970, por isso foi muito divertido brincar com as minhas memórias. Mas não queria cair em nostalgias ou clichés como calças à boca de sino, cor de laranja psicadélico ou a revolução sexual.

Quis criar uma visão relativamente realística dos anos 70. Sobretudo tendo em conta que a história se desenrola numa cidade pequena, e as pessoas que vivem em meios mais pequenos demoram mais tempo a adoptar novas modas e atitudes. A imagem da Suzanne é, de facto, mais dos anos 60, ou mesmo 50.

DO TEATRO DE BOULEVARD AO MELODRAMA
Quando eu li a peça achei-a muito engraçada, mas o que me tocou mais foi a quase trágica relação entre Suzanne e Babin. Tem um forte potencial melodramático: a passagem do tempo, o envelhecimento, a desilusão de amor, uma certa melancolia.

Adoro a cena em que o Babin propõe à Suzanne que fiquem juntos, mas ela diz que eles já são velhos demais para isso. Eu achei que aquela cena sairia melhor se tivesse um tom menos irónico, menos cómico, mais sério. A peça era essencialmente para fazer brilhar a actriz de comédia Jacqueline Maillan e ela desempenhou o seu papel de acordo com isso. As pessoas iam para a ver e para rirem, por isso a sua Suzanne tinha sempre um lado cómico e nunca se chateava muito quando o seu marido ou a sua filha eram maus com ela. Ela tinha sempre a última palavra.

Mas para o filme eu senti que a personagem deveria sentir a dor e a humilhação da agressão verbal e psicológica, por isso a actriz deveria agir em conformidade com isso.

Assim, as primeiras cenas do filme – que fizeram as pessoas rir às gargalhadas na peça – são muito mais cruéis no meu filme. Conseguir essa crueldade mais do que ter apenas uma piada tem os seus custos à medida que o filme avança e Suzanne se liberta dos seus grilhões. Eu queria que os espectadores se identificassem, e se deixassem tocar por esta dondoca que se recusa a continuar na sua concha”. POTICHE – MINHA RICA MULHERZINHA é um filme feminista nesse sentido: ele leva muito a sério a jornada pessoal da personagem principal. Como espectadores gostamos dela, torcemos por ela e ficamos contentes quando ela floresce, como numa história de sucesso americana. Em França o théâtre de boulevard é um género que se caracteriza por muita luz, histórias que são muitas vezes comédias de ultraje. Por regra todas as possíveis transgressões são exploradas – sociais, familiares, emocionais, politicas – mas no final, toda a gente volta à realidade. Os espectadores da classe média querem rir de tudo o que é interessante ou assustador, mas querem também que no final tudo volte ao normal.
Na minha adaptação eu tentei sacudir as coisas de forma a ficarem mais reais: enquanto mulher Suzanne encontra um lugar legítimo na sociedade, alterando a ordem patriarcal instituída, e a um determinado momento pensa-se que o seu filho está a ter uma relação incestuosa, que é aceite.


CATHERINE DENEUVE COMO UMA DONDOCA
Mais do que tentar uma imitação da actriz Jacqueline Maillan decidi fugir ao protótipo e ofereci o papel a Catherine Deneuve, que, como eu já sabia da minha própria experiência com 8 MULHERES, saberia como encarnar a personagem e dar-lhe a profundidade necessária para que os espectadores se identificassem.

Catherine é uma actriz prática, ela faz as situações parecerem reais e cria empatia com a personagem. No início, Suzanne é uma caricatura, tal como são os outros personagens. É a boa mulherzinha do patrão de uma fábrica, numa cidade pequena. Mas gradualmente ela liberta-se e passa por uma série de transformações que resultam numa nova mulher. Usando a personagem como ponto de partida, quis explorar a mulher e depois terminar o filme com a actriz, na cena final. Foi realmente muito agradável voltar a trabalhar com Catherine. Em OITO MULHERES tinha havido alguma tensão, como era uma peça conjunta eu impus-me uma certa neutralidade: ela era apenas uma das oito. Não tivemos oportunidade de estabelecer uma relação. Mas em POTICHE – MINHA RICA MULHERZINHA fomos cúmplices como ladrões, desde o início. Encontrei-me com ela no início do projecto, numa altura em que ainda nem sequer tinha produtor. Perguntei-lhe “gostaria de interpretar uma mulher dondoca?” Ela disse logo que sim. Era importante para mim ter o seu acordo tácito antes de começar o projecto. Ela acompanhou as
diferentes etapas: escrita, produção, escolha de actores. Investiu muito tempo na Suzanne, que adorou. Divertimo-nos muito nas rodagens.

OS HOMENS DE SUZANNE
Para acompanhar Suzanne, precisava de dois pesos pesados, dois homens fortes, capazes de se enfrentarem, dois actores franceses que representam dois estilos de representação diferentes. Quando pensamos num amante cinematográfico para Catherine Deneuve naturalmente vem-nos à cabeça Gérard Depardieu. Eles já representaram como casal tantas vezes que eu sabia que ia funcionar. Há uma espécie de química mágica entre eles. Eu sabia que eles iam gostar de trabalhar juntos e os espectadores iam adorar revê-los juntos, agora como velhos amantes.

Babin é uma das minhas personagens preferidas. É um romântico inveterado, ancorado ao passado e casado com as suas convicções políticas. Ao mesmo tempo é a personagem mais pungente. Ele quer mudar de vida, ser pau, estar com a Suzanne, usufruir dos confortos da classe média: “Não posso ser feliz também?” Não consigo imaginar outro actor a encarnar esta personagem forte, homem rude com um lado vulnerável e sentimental. Gérard rapidamente entrou na pele de Babin. Para o seu cabelo inspiramo-nos no famoso corte à tigela do sindicalista francês Bernard Thibault.

Fabrice Luchini foi uma escolha natural para o papel de Robert Pujol. Pensei que seria arriscado, mas interessante fazer dele o par de Catherine Deneuve. Eles são tão diferentes na maneira como trabalham, na sua aproximação à representação, e nos filmes que fizeram. Eles são um casal improvável, tal como o são Robert e Suzanne, e eu achei que isso ia resultar em algo cómico. Na peça, Robert é o típico marido e patrão escroque. É reaccionário, desonesto e tirano com os seus trabalhadores e com a família, como as personagens que Louis de Funès representou nos anos 70. Mas eu gostei de lhe dar um outro lado, mais infantil. Mais no final do filme, este homem que representa uma autoridade fria e repressiva e um certo chauvinismo masculino, transforma-se num rapazinho, que é protegido pela mulher, quando entra no quarto dela e implora por um beijo. Sabendo o quanto eu tinha gostado do seu trabalho nos filmes de
Eric Rohmer, o Fabrice inicialmente ficou surpreso quando lhe ofereci o papel de Robert Pujol. Mas rapidamente se apropriou da personagem e deu-lhe todo o seu frenético e louco estilo de representação. Ele é um actor destemido que encontra humor no mais ínfimo dos pormenores.

OS FILHOS DE SUZANNE
As outras três personagens – os filhos e a secretária – não eram muito desenvolvidas na peça e não tinham força em si mesmas. Por isso, tive de criar histórias para os enriquecer. Tal como nos filmes de Douglas Sirk, quis mostrar como os filhos podem por vezes ser mais conservadores que os pais. Especialmente na personagem da filha Joëlle que não evolui muito, mas que se revela. No início, esta filhinha do papá acha-se muito moderna e critica a mãe por ser antiquada. Contudo, à medida que a mãe se vai libertando na segunda parte, Joëlle sai do trilho e percebe que ela é que é a conservadora, uma prisioneira das convenções, incapaz de se divorciar ou de fazer um aborto, incapaz de enfrentar a sua própria liberdade. Judith Godrèche rapidamente percebeu que a Joëlle precisava de ser uma verdadeira pirralha, capaz de fazer o mais cruel dos comentários com um sorriso na cara. Ela não estava preocupada em fazer a personagem parecer simpática, sabendo bem o valor de representar a vilã. Ela gostou muito também da transformação física da personagem, divertiu-se com o facto de se tornar numa reencarnação de Farrah Fawcett, com os seus cabelos loiros e sorriso ultra luminoso. Por fora Joëlle parece ser a mais moderna das personagens, mas no seu interior ela é a mais conservadora de todas.

O filho, Paul, é o tipo de personagem que se encontra nas comédias de Molière. Numa tradição que Jacques Demy perpetuou nos seus filmes, os jovens envolvem-se de forma inocente em relações incestuosas, até que um deus ex machina quebra a tensão. Não estava inicialmente previsto que o Paul fosse homossexual, mas eu achei que seria uma boa reviravolta final, levantando a questão: continua a ser incesto se não há o risco de terem filhos? A reviravolta não é o facto de ele ser homossexual – penso que isso até é óbvio desde o início – mas sim o facto de ele se ter envolvido com o seu meio irmão, sem ter consciência disso.

Foi fantástico voltar a trabalhar com Jérémie Renier dez anos depois de LES AMANTS CRIMINELS (1999). Fui seguindo a sua carreira e admiro o seu trabalho como actor. Neste filme eu quis que a personagem dele fosse alegre, jovial e sensual, por oposição aos papéis mais sombrios que ele normalmente desempenha. O seu cabelo louro e a sua figura esbelta eram perfeitos para o seu look anos 70.

A SECRETÁRIA
Karin Viard achou que a sua personagem também devia libertar-se e ganhar consciência política, não estar ali apenas para tirar fotocópias, como na peça. A secretária começa por ter um patrão e depois passa a ter uma patroa, e vai-se modificando à medida que o filme avança: “Aprendi que não é preciso abrir as pernas para subir na vida!” O seu discurso, “Tu serás uma secretária, minha querida”, inspirado no poema de Rudyard Kipling “Se”, tinha-o visto numa reportagem sobre escolas de secretariado, no programa de televisão “Aujourd’hui Madame”. Até à montagem do filme eu não tinha a certeza se iria usar essa cena. É surrealista, não tem lógica narrativa – exceptuando o facto de que aborda a posição da mulher na sociedade – mas a Karin interpretou tão bem essa cena que decidi mantê-la. Ela não tem medo de representar estereótipos, ela transcende-os com profundidade e emoção. Ela é a actriz perfeita para este papel.


A MÚSICA E AS CANÇÕES
Não vi qualquer motivo para transformar a peça num musical, mas quis dar destaque àquela época usando música e canções daquela altura. Para a música original pedi ao Philippe Rombi que se inspirasse nas comédias dos anos 70 e nos temas de Vladimir Cosma e Michel Magne, e para desenvolver duas vertentes: uma cómica, ligada a Robert Pujol, e uma mais sentimental, para ilustrar a história de amor de Suzanne e Babin.

O filme move-se em duas direcções: a de Fabrice Luchini e a de Gérard Depardieu. Catherine Deneuve está no meio, alternando entre a comédia e o melodrama.

A música de Michèle Torr “Emmènemoi danser ce soir” foi top de vendas em França em 1977-78. É sobre uma mulher que pede ao marido para olhar para ela como costumava olhar, que é exactamente o que Suzanne sente no início do filme. Quando a Catherine dança e canta na cozinha, tenta manter-se ligada á realidade da personagem, enquanto continua a fazer as suas tarefas domésticas. Eu quis que os espectadores sentissem que, apesar de tudo, aquela mulher era feliz na sua cozinha. Quando terminamos de filmar aquela cena, depois de já ter esvaziado a máquina de lavar loiça uma dúzia de vezes, a Catherine disse-me: “Isto fez-me lembrar a cena do bolo do amor em PEAU D´ÂNE”. Eu não percebi a relação, mas ainda assim gostei do reparo dela.

Para a cena da dança no Badaboum, Benjamin Biolay sugeriu uma música que eu não conhecia Viens faire un tour sous la pluie, de um grupo chamado “Il était une fois”. A música tinha a vantagem de ser da época e de ter dois registos diferentes, um lento e outro mais ritmado, bem ao género Bee Gees. Esta dança entre a Suzanne e o Babin é uma celebração do lendário par Deneuve/Depardieu. É intencionalmente artificial. Eles olham directamente para a câmara. É um momento em que o tempo pára, um pouco mágico. Naquele momento não procuro nenhum realismo, queria apenas captar a essência daquelas duas pessoas a partilharem um momento de grande ternura.

A música que a Suzanne canta no final do filme C´est beau la vie foi escrita em 1960 por Jean Ferrat, para Isabelle Aubret que tinha sobrevivido a um grave acidente de carro. Usar a música num contexto político – na última etapa da corrida, depois de termos acompanhado a Suzanne no seu caminho para a liberdade – dá-lhe outra dimensão. Tanto eu como o Benjamin Biolay queríamos que a voz da Catherine sobressaísse, natural, com toda a sua fragilidade e sinceridade. O argumento não tinha a cena em que Babin ouve Suzanne na rádio, mas improvisei esta cena com o Gérard no final das filmagens. Eu queria voltar a colocá-lo no ecrã depois da conversa telefónica deles, por isso pus a música e deixei-o improvisar. Vendo-o ouvir a voz da Catherine e a cantar com ela foi um dos momentos mais tocantes da rodagem.



ENTREVISTA COM CATHERINE DENEUVE

François Ozon convidou-a para POTICHE – MINHA RICA MULHERZINHA numa fase muito inicial do projecto.
Sim, tal como já tinha feito com OITO MULHERES. Eu estive envolvida no projecto desde o princípio até ao fim. Eu gosto de entrar nos projectos logo no início, compreender mesmo o filme, dar a minha opinião, discutir ideias. Eu tentei seguir as orientações do François. Ele é muito bom a mostrar aquilo que quer fazer. Alguns actores preferem começar a trabalhar apenas quando o argumento está terminado, mas eu gosto de começar um pouco antes. Preciso de ter informações diversas para que a personagem vá ganhando forma, não consigo criar a personagem sozinha. Tenho uma ideia de como ela será, claro, mas não lhe consigo dar vida se me mantiver sempre no abstracto.

Como foi a sua primeira reacção ao projecto?
Eu conhecia o trabalho de Jacqueline Maillan, mas não conhecia a peça de Barillet e Grédy, a qual aliás ainda não li ou vi. Mas quando o François me falou da peça e da sua intenção de a adaptar, eu achei fantástico.
Primeiro por ser ele: ele tem um talento único para desconstruir e eu sabia que ele iria dar-lhe a forma certa, uma abordagem irónica e moderna a esta peça “boulevard”, termo que não considero nada pejorativo. Eu conseguia facilmente antever o que ele ia fazer. E depois havia o prazer de voltar a trabalhar com ele. Ele escreveu um argumento que mostra o verdadeiro papel da mulher na sociedade actual. Obviamente que as coisas mudaram nos últimos trinta anos, mas essa mudança em alguns aspectos não é assim tão grande. A peça tem lugar em 1970, mas grande parte do que nela acontece continua actual: greves, patrões que são feitos reféns, as mulheres não tendo muito poder, pelo menos quando comparadas com os homens… Essa luta está longe de terminar.

Quando a sua personagem se envolve na política, vem-nos à memória Ségolène Royal.
Eu tinha uma série de imagens e exemplos em mente ao longo do filme, conforme as situações.
Exemplos de pessoas que conheço, imagens simbólicas, nomes que não revelo porque se o fizesse isso poderia distorcer ou tornar banal a mensagem. Mas uma coisa é certa: pensei em muitas pessoas diferentes.

Esteve bastante envolvida no movimento feminista nos anos 70, nomeadamente quando assinou o Manifesto das 343 pelo direito ao aborto.
Não pensei nisso enquanto trabalhava neste filme, mas claro que isso faz parte de mim. Quando a Joëlle, a minha filha no filme, me diz que não vai fazer um aborto, isso leva-me de volta a esse tempo. Estar grávida, não querer ou não poder fazer um aborto, não ser capaz de deixar o marido… lembro-me de como eram comuns estes dilemas. As mulheres mais jovens sempre tiveram esse direito, elas nem têm ideia de como as coisas mudaram nos últimos trinta anos. Devo dizer que tudo isto aconteceu de forma incrivelmente rápida.

Como é que foi o seu reencontro com o François Ozon?
O facto de já termos trabalhado juntos tornou tudo muito mais fácil. Eu conhecia-o e ele conhecia-me e isso fez-nos poupar muito tempo. Foi muito bom, porque eu estava um pouco apreensiva com o mapa de rodagens e com o facto de eu estar em quase todas as cenas. De facto foi uma rodagem em ritmo acelerado, reflectindo o ritmo do filme. O François nunca perde tempo, com ele nunca se fica à espera que as coisas avancem. Ele é rápido, intenso, claro, incisivo, efervescente. E ao mesmo tempo é muito meticuloso. Senti que estávamos a trabalhar em sintonia. O filme estava muito bem estruturado no argumento, mas dentro dessa estrutura o François deu muita liberdade aos actores. Senti-me muito por dentro do projecto e do filme. Senti sempre que estava a ser valorizada. E depois havia ainda o facto de estarmos a rodar na Bélgica. É sempre melhor filmar fora de Paris. Está-se com os outros muito mais do que quando a seguir às filmagens cada um vai para sua casa, isso cria um melhor espírito de equipa. A rodagem foi muito intensa e alegre. A equipa belga era fantástica. Sentimo-nos muito tristes quando tivemos de nos despedir. O ambiente nas rodagens é sempre imprevisível, depende muito do realizador e da equipa, mas é crucial para o sucesso de um filme, sobretudo se estivermos a falar de uma comédia. É necessário que haja uma certa leveza e alegria em tudo. No entanto, quando terminei a rodagem e olhando para trás o ritmo a que trabalhamos pareceu-me brutal.


É impressionante a sua capacidade de tornar reais as personagens.
Divertimo-nos e, ao mesmo tempo, sentimo-nos tocados pela personagem da Suzanne.
Sim, há uma mistura de comédia e emoção. Eu queria realmente ser sincera, encarnar a personagem e as situações de forma natural. Eu e o François discutimos isso demoradamente. Eu queria evitar ser demasiado teatral, ser o mais genuína possível, criar empatia com a personagem, mostrar o quanto ela era oprimida pelo seu autoritário marido. Dessa forma, quando a Suzanne tem sucesso nós gostamos desse volte face, ficamos felizes por ela ter
conseguido a sua vingança.

O guarda roupa de Suzanne vai evoluindo ao longo do filme. Isso ajudou-a a entrar na personagem?
Sim, sem dúvida. Senti isso também no filme PRINCESSE MARIE, de Benoit Jacquot. Quando há um grande cuidado com a indumentária, alguma coisa acontece com a personagem a um nível subconsciente, a roupa conduz as atitudes. Pascaline Chavanne é uma óptima designer. Ela é uma mina de ouro, faz pesquisas incríveis e depois propões um leque variado de opções. Gradualmente o estilo da personagem começa a ser visível, o que ajuda muito quando se está a desempenhar um papel muito diferente do tipo de personagens que costumamos representar, como me acontece em POTICHE – MINHA RICA MULHERZINHA. Não havia nada pré-definido, mas durante as provas tudo começou a fazer sentido, percebemos que cores e cortes funcionavam. A ideia era adequando o guarda-roupa à época em que o filme se desenrola descobrir o estilo da personagem. A roupa precisava de ser ao mesmo tempo engraçada e credível.

A roupa mais improvável é o fato de treino vermelho que Suzanne usa no inicio do filme, quando ainda é a boa dona de casa burguesa.
Esse fato de treino foi feito usando um molde e materiais usados nos anos 70. Esta indumentária direcciona a personagem para a mudança que ela vai sofrer, mas neste momento ela ainda tem os rolos no cabelo! Os rolos foram ideia minha, para contrariar o lado mais moderno que o fato de treino lhe dá. Se ela tivesse usado uma fita na cabeça pareceria uma burguesa liberal, coisa que naquela altura ela ainda não era. Precisávamos de algo subtil para que aquela primeira cena marcasse logo o tom do filme.

Como foi o reencontro com Gérard Depardieu?
Ao longo dos anos fomo-nos reencontrando diversas vezes. E de todas as vezes foi sempre muito
natural. Eu gosto dele e admiro-o muito. Ele é um actor que é muito solícito e caloroso com os colegas. Além disso é muito engraçado e… muito impaciente. Ele não gosta de ensaiar, gosta de gravar, tem tendência a querer apressar as coisas. Felizmente, o François é igual. Eu acho que o Gérard se divertiu muito no papel de sindicalista. Ele estava muito à vontade no papel, as cenas fluíram naturalmente. François aproveitou o enorme carisma de Gérard. Ele sabia que ao tê-lo a desempenhar o papel tudo o resto correria bem.

Por outro lado, esta é a primeira vez que trabalha com Fabrice Luchini.
Gérard é instintivo e muito directo na forma como trabalha, enquanto que o Fabrice passa bastante tempo a preparar-se. Quando chega ao cenário já desenvolveu totalmente a personagem. Ele é acima de tudo um actor de teatro. Com Gérard pode mudar-se tudo em cima da hora. Com o Fabrice isso é mais complicado porque a sua forma de trabalhar é oposta à do Gérard. Ele é brilhante e hilariante no papel. Consegue dar a Pujol toda a sua irascibilidade e nervosismo, e depois transforma-o numa personagem simpática quando Pujol percebe finalmente que ninguém é indispensável, nem mesmo ele. Ele não é nenhum Cidadão Hearst!

OITO MULHERES e POTICHE – MINHA RICA MULHERZINHA eram ambos originalmente peças de teatro, mas muito diferentes uma da outra.
Sim, para mim, os dois filmes estão em extremos opostos. Antes de mais OITO MULHERES foi rodado num único cenário, ao passo que POTICHE – MINHA RICA MULHERZINHA foi rodado em diferentes cenários e locais. Não são o mesmo género de história e, sobretudo, havia muito menos emoção em OITO MULHERES. O filme baseava-se noutras coisas: a cumplicidade entre as actrizes, a relação mãe-filha. O tom era mais alegre.

Não faz teatro, mas não tem medo de desempenhar papeis teatrais no cinema.
Certo, porque o cinema e o teatro são completamente diferentes. Actuação teatral em cinema continua a ser cinema. O que me assusta no teatro é a unidade do espaço, o facto de que tudo tem de ser planeado e decidido à priori, tudo está preparado, está-se sempre a fazer a mesma coisa. Eu não lido bem com isso, nem com o medo do palco, assusta-me ser o centra das atenções de uma plateia. Continuo a não conseguir imaginar-me a trabalhar em teatro.



Título original: Potiche
Realização: François Ozon
Argumento e adaptação livre de François Ozon da peça homónima de Barillet & Grédy
Fotografia: Yorick Le Saux
Som: Pascal Jasmes
Guarda Roupa: Pascaline Chavanne
Montagem: Laure Gardette
Interpretação: Catherine Deneuve, Gérard Depardieu, Fabrice Luchini, Karin Viard,
Judith Godrèche, Jérémie Renier, Sergi Lopez
Música Original: Philippe Rombi - “Slow Giradschi” (Stelvio Cipriani) 1973 – CAM,
“Teen agers cha cha cha” (Stelvio Cipriani) 1973 – CAM
Origem : França
Ano : 2010
Duração: 103’
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Reservas até às 17h do dia da sessão: ccf@cineclubefaro.com (levantar até às 21h45)
Comprar para qualquer sessão (na sede ou nas sessões – bilheteira abre às 21h30)
Abertura das portas do recinto: 21h45