45 ANOS | 1 MARÇO | IPDJ | 21H30


45 ANOS
Andrew Haigh
Reino Unido, 2015, 95’, M/12


FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Berlim - Urso de Prata (Melhor Actor)
Festival de Berlim - Urso de Prata (Melhor Actriz)
Lisbon & Estoril Film Festival - Selecção Oficial



FICHA TÉCNICA
Título original: 45 Years
Realização: Andrew Haigh
Argumento: David Constantine e Andrew Haigh
Interpretação: Charlotte Rampling, Tom Courtenay, Geraldine James, Dolly Wells
Fotografia: Lol Crawley
Montagem: Jonathan Alberts
Origem: Reino Unido
Ano: 2015
Duração: 95’


CRÍTICA
Dois septuagenários, em cujos rostos reconhecemos dois dos maiores atores britânicos das suas gerações, Tom Courtenay e Charlotte Rampling, vivem no remanso do lar no pacato condado de Norfolk, longe do reboliço. O quotidiano de Geoff e Kate Mercer parece condizer, de facto, com o conforto e as pantufas de um casal que já não tem muito mais a esperar do futuro. Enquanto ela passeia o teimoso cão naquela paisagem verdejante, aproveita ele para dar umas passas no teimoso cigarro que não consegue largar. Sabemos depois que, sobretudo por iniciativa dela, o casal se prepara, no final da semana, para celebrar 45 anos de casamento, em festa que não dispensará amigos chegados nem playlist de velhos êxitos, The Platters, sim, Elton John, nem por isso. O espectador começa a ver o filme, habitua- se ao ritmo das personagens, cadenciado com uma precisão e uma eficácia de relojoeiro, e desconfia. Habitua-se porque, apriori, esta terceira longa- metragem de Andrew Haigh — ele que já havia deixado bons sinais em “Weekend/ “Amor de Fim de Semana” — parece não passar do benigno drama britânico domingueiro a seguir fórmulas batidas da BBC. Mas desconfia porque, se nesses filmes não temos o hábito de encontrar Tom Courtenay, muito menos costumamos encontrar Charlotte Rampling, que detesta papéis de ramerrame e escolhe tudo o que faz a dedo. 
“45 Anos” não tarda nada a deixar-nos inquietos quando Geoff, ainda o filme mal começou, recebe aquela carta que é coisa de assombração, quase de ficção científica. Imagine-se que, cinco décadas antes, a primeira companheira de Geoff (ainda este não conhecera Kate) morreu soterrada numa avalanche e que o corpo, caprichosamente conservado pela neve dos Alpes, só agora foi encontrado. A ideia não lembra ao diabo. Nem nos interessa saber se é ou não plausível. Aliás, é melhor nem irmos por esse caminho, que certamente faria as delícias de um John Carpenter. Certo é que Geoff, mesmo a cair da tripeça, começa a considerar seriamente meter-se num avião para a Suíça, desatando a remexer nos velhos caixotes que há muito guardara no sótão. Subtilmente, apercebemo-nos de que o seu luto nunca foi inteiramente feito. Do mesmo se dá conta Kate que, sem perceber a absurda transformação emocional do marido, se deixa engolir na espiral de angústia que o filme já pôs a girar. Para Kate, a ideia de que o homem de quase toda uma vida amou outra mulher, provavelmente mais do que ela, é simplesmente infernal. Para que se compreenda o grau de subtileza com que Haigh gere estes cordelinhos, grau esse em que certos pormenores nos podem conduzir a emoções monstruosas de um momento para o outro (“out of the blue”, disse Rampling), dou um exemplo que talvez até passe desapercebido para a maioria mas que me parece capital: é quando Kate, roída pela curiosidade, sobe ao sótão para vasculhar, provavelmente pela primeira vez na vida, a tralha do marido. Kate repara então naquela foto em que, tanto quanto parece, a ex-companheira de Geoff estava grávida quando a avalanche a levou. Sabia Kate da existência dessa namorada? Sim, sabia. Contudo, talvez não soubesse que ela estava grávida. 
Acontece que a reverberação da descoberta, 45 anos depois, deixa-a destroçada, num estado só comparável ao da cena final. Agora, o que é espantoso nem é aquele pormenor que fica a trabalhar-nos como uma bomba-relógio. O que é espantoso é que Andrew Haigh jamais vai explicá-lo (como tanta coisa neste filme ficará por explicar...), nem sequer voltará a falar dele. 
É que, no fundo, quem vai decidir o futuro daquele casai, quem vai decidir se eles se separam ou ficam juntos, somos nós, espectadores: tudo depende da nossa própria perceção das coisas, da experiência de vida que acumulámos. Tudo depende do que conseguimos engolir, como Geoff, ou do que tmos mesmo que deitar cá para fora, como Kate. Deste ponto de vista, “45 Anos” parece-me o mais generoso dos filmes que se estrearam nos últimos tempos. Tão generoso como a sua impecável dupla de atores, em duas interpretações de altíssimo nível.

Francisco Ferreira, Expresso

ENTREVISTA
O que o atraiu neste conto e como foi o processo de o adaptar?
Para mim, havia algo de devastador numa relação que fraquejava perante o sue último obstáculo. Era como se esta recordação do passado, este corpo conservado em gelo, tivesse estado à espera do momento para lançar tudo no caos, num caos interno muito sossegado. Através das fendas na terra surgem todas as dúvidas e medos, todas as coisas por dizer ao longo dos anos, emoções reprimidas e escondidas. É como se toda a relação de Kate e Geoff, desde a sua fundação, fosse subitamente posta em causa por uma mulher que já não existe.
O conto original era maravilhosamente claro e conciso, mas para ser adaptado, tinha de ser expandido. Além de adicionar a festa do aniversário de casamento, a maior alteração foi a redução da idade das personagens para sessenta e muitos, setenta e poucos anos. O conto original passa-se nos anos 90 e a história de fundo decorre durante a II Guerra Mundial. Eu queria que a história de Kate e Geoff fosse muito presente. Não queria que tratasse das escolhas duma geração mais velha, agora desaparecida, mas sim a história das escolhas que todos temos de fazer. Também decidi contar a história unicamente da perspetiva de Kate, uma alteração em relação à história original. Há muitos filmes e trabalhos de ficção que lidam com a crise existencial masculina e eu queria ter uma perspetiva diferente da história.
Pode dizer algo acerca da relação deste filme e de Amor de Fim de Semana?
Há certamente uma correlação entre ambos. Ambos os filmes abordam a complexidade da intimidade entre duas pessoas; os riscos envolvidos em expormo-nos emocionalmente a outra pessoa; a dificuldade de sermos verdadeiramente honestos acerca dos nossos medos. Estou muito interessado em como as nossas relações românticas dizem mais sobre quem verdadeiramente somos e como queremos que o mundo nos veja.
A incapacidade de comunicar emocionalmente coisas sensíveis é muitas vezes encarada como particularmente britânica – acha que há alguma verdade nisso, sobretudo agora que tem trabalhado nos EUA?
Acho que há algo cultural e politicamente conservador acerca dos Britânicos, que encoraja muita gente a enterrar os seus sentimentos de modo a manter as aparências. Esse é o caso da classe média britânica. Dito isto, acho que é muito difícil para qualquer pessoa ser realmente aberta acerca dos seus sentimentos, porque na maior parte das vezes, não fazem sentido para nós. Podemos senti-los, mas é difícil para nós articularmos o que eles são. E também há um risco ao partilharmos os nossos sentimentos mais íntimos, isso vai ser sempre sentido como um risco.
O que trouxe a Charlotte para este papel e o que ela tem de especial para si, enquanto atriz?
A Charlotte é uma atriz ferozmente inteligente. Ela sabe o que é sentido como verdadeiro e o que não é. Quando a vejo no ecrã, vejo um furacão de emoções sob a superfície, por detrás daqueles olhos. Somos convidados a ver, mas também queremos manter a distância. Isso parece-me incrivelmente verdadeiro. Há coisas que todos nós devíamos guardar só para nós.
E quanto a Tom Courtenay?
Há uma certa vulnerabilidade no Tom e no seu desempenho. A última coisa que eu queria para este filme era um homem furioso e revoltado contra o mundo. Já vi isso demasiadas vezes no ecrã. Eu queria algo mais complexo, mas sensível. Aqui temos uma personagem em conflito com a sua própria identidade, não é o vilão da paz. Espero que em 45 Anos não haja vilões, apenas pessoas a tentar perceber as coisas.
As histórias deles enquanto ícones dos anos 60 assombraram os seus desempenhos, com os apontamentos da música pop dessa década a servir de lembrete. Isso é algo que queria que o público notasse?
Sempre esperei que as suas histórias fossem sentidas de forma menor e subtil. Este filme trata em parte da sensação de esperança do passado, o potencial da nossa versão jovem e conhecer estes atores em jovem ajudou imenso. Há uma certa melancolia nisso, que me interessa muito enquanto sentimento. Acho muitas vezes que a melancolia que sentimos sobre o passado tem mais a ver com os fracassos e deceções do presente, do que com o próprio passado.
Há algo acerca da relação deles no ecrã que parece ser muito real, mas ao mesmo tempo é muito pouco convencional para um retrato de pessoas idosas. Parece que ainda estão a desenvolver-se enquanto pessoas. Tem uma noção de quanto disso está no guião, quanto disso transpareceu durante as filmagens e quanto se devia ao desempenho deles?
Essa era certamente a intenção. Não creio que as pessoas parem de procurar as respostas só porque estão mais velhas. Há esta crença de que quando chegamos aos 30 anos, já devíamos ter percebido tudo, ter descoberto quem somos. Mas tenho a certeza que para a maioria de nós, a vida não funciona assim. Estamos sempre em mudança, as nossas identidades estão sempre a evoluir e como tal, estamos sempre a fazer perguntas. Se não o fazemos, devíamos fazê-lo.
Qual é a sua perspetiva sobre a racionalidade ou sobre os sentimentos de ciúmes e rejeição por parte de Kate?
Tenho uma grande compaixão pela Kate. Há uma certa natureza irracional em relação aos seus sentimentos, e acho que ela está ciente disso, mas ao mesmo tempo, eles revelam algo mais profundo e desconcertante. É como se concentrarmo-nos na relação deles tivesse provocado uma náusea que Kate não consegue ultrapassar. Trata-se da sensação de rejeição e ciúme, mas também se trata do significado da sua vida. É como se sob o peso da inspeção, tudo o que ela construiu ao longo dos anos começa a perder o significado. Ruiu e ela não sabe se conseguirá reconstruí-la.
As referências à natureza adicionam uma dimensão poética – a terra que esconde segredos, coisas que se tornaram invisíveis, mas não desapareceram… há algo que quer juntar a isso?

Parece-me muito claro que o que acontece no nosso passado, o que fica enterrado sob a superfície permanece para sempre. E não me refiro apenas às coisas grandes, aos eventos dramáticos na nossa vida, refiro-me aos detalhes pequenos e mundanos que compõem a nossa existência. E muitas vezes tentamos ignorar isto, tentamos viver no presente, mas não é fácil; o sótão fica mais cheio e se não tivermos cuidado, as vigas podem partir-se e deixar uma grande confusão espalhada no chão do quarto.
A apresentação do filme é muito pacífica e sossegada, apesar da intensidade dos sentimentos. Pode falar-nos de algumas dessas decisões estéticas?
Era muito importante para mim que o filme começasse de forma tranquila e permanecesse assim. Não se trata de o trauma levantar a cabeça, trata-se das coisas mais pequenas. As escolhas e decisões, os sentimentos e emoções trancados, as coisas que não conseguimos expressar. Todos esses medos e dúvidas que vivem nessas pequenas fissuras e rachas. Por vezes penso que as nossas vidas giram em torno de não colocar demasiada pressão nessas falhas, esperando que o solo não se abra e não nos engula.
alambique

TRAILER


As Mil e Uma Noites Vol III, O Encantado | 23 FEV | 21h30 | TMF


AS MIL E UMA NOITES - VOL III, O ENCANTADO
Miguel Gomes
PT/FR/DE/CH, 2015, 125’, M/14


FICHA TÉCNICA
Realização: Miguel Gomes
Argumento: Miguel Gomes, Mariana Ricardo, Telmo Churro
Fotografia: Sayombhu Mukdeeprom
Som: Vasco Pimentel
Montagem: Telmo Churro, Pedro Filipe Marques, Miguel Gomes
Interpretação: Crista Alfaiat, Américo Silva, Carloto Cotta, Jing Jing Guo, Chico Chapas, Quitério, Bernardo Alves
Origem: Portugal / França / Alemanha / Suíça
Ano: 2015
Duração: 125’




CRÍTICA

Depois de dois volumes (“Volume 1, O Inquieto” e “Volume 2, O Desolado”) intensos e comoventes, retratos de um país socialmente devastado através do olhar incisivo de Miguel Gomes e o seu humor mordaz, confirma-se com o “Volume 3, O Encantado” que “As Mil e Uma Noites” é uma das obras mais promissoras do cinema português atual e a obra mais audaz de Miguel Gomes até à data. 
Ao contrário dos volumes anteriores, este terceiro apresenta uma estrutura ligeiramente diferente, focando-se em dois mundos, o de Xerazade e o de “passarinheiros” e dos seus tentilhões. Comparando com os anteriores volumes, esta terceira parte é a mais fraca, ou a menos bem conseguida, o que é normal acontecer numa trilogia, com este a ser o mais desequilibrado dos três volumes. 
O filme começa com a história da rainha Xerazade que com medo de não conseguir contar mais histórias que agradem ao Rei e para que este não a mate, foge do palácio e percorre o reino à procura de prazer e encantamento. 
A segunda parte do filme foca-se no conto “O Inebriante Canto dos Tentilhões”, onde o realizador retrata uma certa classe social, de bairros sociais de Lisboa, um conjunto de homens que tem como ocupação ensinar pássaros (os tentilhões) a cantar. Uma atividade praticamente desconhecida a que o realizador dedica quase todo o filme, cruzando pelo meio imagens de manifestações ocorridas em Lisboa, com o relato de uma imigrante chinesa que se apaixonou por um polícia. 
A história dos “passariheiros” ganha aqui uma dimensão poética, com os pássaros que cantam para lutar, para sobreviver. Cantam como se não houvesse amanhã. Se não cantarem morrem e alguns até morrem de tanto cantar. 
A mensagem que passa é a de um povo que canta. é esta a forma de luta que o realizador aparenta encontrar. Só nos resta voar (o sonho) e cantar (a arma) para combatermos esta austeridade que nos é imposta, quer pelo governo, quer pelo sistema financeiro internacional, pois “a cantiga é uma arma”. Com um país destruído, o povo encanta-se com um país diferente, com cantigas de luta e com sonhos. A trilogia termina com a ideia de que ainda se luta pelo seu país, que apesar de todo o mal, da solidão e desilusão, ainda se canta. 
Ao fim de três volumes, este é um povo que fica, primeiro inquieto, depois desolado e no final encantado. O Volume 3 é o mais pobre de ideias, isento do seu humor fantasioso característico dos anteriores volumes, ainda assim é nobre e funciona como obra solta, tal como os outros, mantendo a crítica social. 
“As Mil e Uma Noites”, um retrato único de Portugal, é a derradeira obra de Miguel Gomes e uma das maravilhas mais cativantes e ousadas do cinema português. 
Tiago Resende, cinema7arte

As Mil e Uma Noites Vol II, O Desolado | 16 FEV | TMF | 21h30



AS MIL E UMA NOITES - VOL II, O DESOLADO 
Miguel Gomes
Portugal / França / Alemanha / Suíça, 2015, 131’, M/14


Ficha Técnica
Realização: Miguel Gomes
Argumento: Miguel Gomes, Mariana Ricardo, Telmo Churro
Montagem: Telmo Churro, Pedro Filipe Marques, Miguel Gomes
Fotografia: Sayombhu Mukdeeprom
Som: Vasco Pimentel
Interpretação: Crista Alfaiate, Chico Chapas, Luísa Cruz, Gonçalo Waddington, Joana de Verona, Teresa Madruga, João Pedro Bénard
Origem: Portugal/França/Alemanha/Suíça
Ano: 2015
Duração: 131’




Festivais e Prémios
Directors’ Fortnight [France 2015]
Sydney FF [Australia, 2015]: Sydney Film Prize
New Horizons IFF [Poland, 2015]: Prémio FIPRESCI
Sevilla Festival de Cine Europeo: Girardillo de Plata, Premio ASECAN Mejor Pelicula
Prémios Fénix [México, 2015]: Melhor Montagem
Caminhos do Cinema Português [Portugal, 2015]: Melhor Actriz Secundária – Luísa Cruz, Melhor Realizador – Miguel Gomes, Melhor Argumento, original e adapatado – Miguel Gomes, Mariana Ricardo e Telmo Churro
Prémios ÁQUILA [Portugal, 2015] Melhor Actriz Crista Alfaiate



CRÍTICAS
Dos três volumes que formam “As Mil e Uma Noites”, “O Desolado” é o mais autónomo e completo. Não quero sugerir com isto que se trata do melhor. Uma das coisas que se vai compreendendo é que não faz sentido separar os episódios quantitativamente (“são três filmes e é um só”, recordou o cineasta). Aliás, o terceiro volume, “O Encantado” (que só estreia a 8 de outubro), não só recoloca toda esta aventura em perspetiva como descobre outras rimas entre a realidade e a imaginação. No entanto, neste Portugal em crise que Miguel Gomes filmou, as personagens de “O Desolado” são as que estão em maior aflição. A maternidade, a sua evocação, presença ou figura simbólica ganham peso inesperado, como noutro texto já se assinalou. A mãe é alguém que se perdeu, tal como Xerazade, saberemos no início do terceiro volume, perdeu a dela. Perante tanta fatalidade, capitulará Xerazade? As três histórias que compõem “O Desolado”, tal como todas as de “As Mil e Uma Noites”, estão ancoradas na realidade lusitana, mas só a ‘torção de ficção’ operada por Miguel Gomes as torna únicas. A primeira delas ainda há pouco voltou a fazer manchete. Crónica da Fuga de Simão ‘sem Tripas’ é um decalque livre da história de Manuel “Palito”, o homem que, procurado por assassínio, conseguiu fintar as patrulhas da GNR ao longo de mais de um mês, nas Beiras. A população recebeu-o como um herói. ‘As Lágrimas da Juíza’, ladainha de desgraças que chamam outras desgraças num carrossel surrealista e siderante (e que papel extraordinário tem Luísa Cruz), baseou-se, de facto, na história de uma juíza portuguesa que teve uma crise de nervos em pleno tribunal, não conseguindo proferir sentença. Por fim, também ‘Os Donos de Dixie’, com aquele cão tão meigo e tão ingénuo que vai passando de dono em dono, é história baseada no drama de um casal de meia idade que pôs termo à vida no seu andar, em Santo António dos Cavaleiros. Deixaram a casa arrumada e a janela aberta. Os cadáveres só foram descobertos 16 dias depois. 
E, no entanto, em “O Desolado”, se tudo é terreno, também tudo é mítico em simultâneo, como se o quotidiano e o fantástico já não se pudessem distinguir. Veja-se Simão ‘sem Tripas’: ora paga uma sandes e um sumo com uma nota de 20 euros, esperando pelo troco (note-se o detalhe!), ora tem um encontro inesperado com prostitutas que já só pode fazer parte dos devaneios da ficção. Veja-se a suicida Luísa (Teresa Madruga), que ao comprar dois maços de tabaco, um a seguir ao outro, na máquina do café do seu bairro, transforma esse gesto tão banal, tão ‘invisível’ aos nossos olhos, numa expressão dramática que raramente se encontra no cinema. Quotidiano e fantástico em simultâneo, repetimos. Esta mistura culmina no encontro de Dixie com (o que se julga ser) o fantasma do seu antepassado e torna “O Desolado” um dos filmes mais comoventes da história do cinema português. 
Francisco Ferreira, Expresso




Miguel Gomes filma o Portugal profundo no seu mais violento e no seu mais triste. A realidade, sem remissão. 
Se o primeiro “volume” de As Mil e uma Noites fazia jus ao nome — O Inquieto — com todas aquelas subidas e descidas e uma permanente imprevisibilidade, o segundo “volume” também não enverga o seu título em vão. É o episódio mais triste dos três, o que mais linearmente conserva essa tonalidade de uma ponta a outra, aquele que menos consolo oferece (para além do consolo do cinema, da ficção, se é que estas coisas ainda consolam), e aquele que mais resolutamente mergulha num universo de desolação — e aqui chegados convém esquecer “a crise”, ou pelo menos atenuar a ideia (embora o genérico inicial a continue a repetir) de um filme sobre “o momento”. O Portugal retratado neste filme é o Portugal de sempre, cinzento, estranho e sorumbático, com ou sem a troika a dar em cima. 
Nada, aliás, parece mais estranho, e mesmo mais “apolítico”, do que o primeiro episódio, a história de um criminoso em fuga por montes e vales algures no interior do país (Simão Sem Tripas, nome que esconde a sua óbvia inspiração, o tão noticiado caso de Manuel dito o “Palito”). O cenário é aquele mesmo interior que Miguel Gomes já filmara — em Aquele Querido Mês de Agosto ou no primeiro “volume” — mas que agora aparece numa espécie de negativo, desértico e pedregoso, totalmente isento de feérie (reservada meramente para o espaço dos sonhos do protagonista com festins e orgias, ainda assim sonhos singularmente... desolados), sem lugar para anedotas calorosas e cúmplices como, ainda no primeiro volume, o episódio do galo. É o Portugal “profundo” dado no seu mais árido e violento, sem remissão; e como tal, numa espécie de minimalismo a tender para o silêncio (Simão está quase sempre sozinho, quase sempre calado, a câmara a tirar o máximo partido dramático do seu rosto tão pedregoso como a paisagem — o actor é um “não-actor”, que voltaremos a ver no terceiro episódio), é a história mais dura de toda a série, aquela onde mais se sentem o tempo, a inacção, a repetição. A breve, e irónica, e distanciada, euforia final, quando as multidões aclamam Simão como um herói (afinal, apesar dos crimes, enganou as autoridades durante um ror de tempo, e isso é uma coisa que os portugueses apreciam), é mais a expressão de um reverso absurdo, de um país de pernas para o ar, do que um efeito cómico ou galvanizante — e instala o volume dois, depois da “montanha-russa” do volume um, numa linha recta. 
A segunda das três histórias deste volume é o momento central da trilogia. Pela “geometria” — é o episódio do meio do filme do meio — e pelo facto de o modo da sua construção conter, de algum modo, a lógica subjacente à totalidade do projecto: tudo se liga a tudo, causas e consequências vivem num imparável efeito-dominó, a miséria de uns gera a miséria de outros. É também o momento mais bizarro, o segmento em que o realismo, para todos os efeitos dominante ao longo da trilogia, é abandonado em abono de uma espécie de representação teatral, que leva ao cúmulo a similitude entre os espaços (e os “protocolos”) de um tribunal e de um palco teatral (o lugar central da acção é, de resto, um anfiteatro ao ar livre e nocturno). Há um julgamento a acontecer, um qualquer crime menor, mas o que esse crime menor destapa, à medida que sucessivas testemunhas vão sendo ouvidas, é uma cadeia interminável de pequenos crimes e pequenas misérias — que inclusivamente podem chegar da China, exprimindo a “globalidade” do efeito-dominó. Construído como “teatro”, aberto à vacilação dos códigos de representação (os coros, as máscaras, os figurantes alucinados), é porventura o episódio que mais começa por se estranhar e que, no fim, como que por uma magia qualquer, mais se entranhou. 
E, no tom do seu lamento final, prepara o caminho para a terceira história, Os Donos de Dixie, esta a mais triste e mais pudica de todas. Um bairro algures nos subúrbios de Lisboa, um tempo outonal apenas raramente interrompido (para os banhos de sol das “brasileiras” no terraço do edifício), um casal em que ela está doente, ou estão os dois doentes, um cão que anda de mão em mão e de dono em dono e até acaba por ver o seu próprio fantasma — essa sobreposição simples, quase arcaica, que fica como a imagem de uma outra vida (para todos, não só para o cão) que não existe. É quase uma história de “telenovela”, se as histórias de telenovelas falassem de vidas reais e dos sítios reais onde as pessoas vivem. A melancolia enxuta, dura, dos protagonistas (o casal mais velho, Teresa Madruga e João Pedro Bénard, e o casal mais novo, Joana de Verona e Gonçalo Waddington) como dos secundários
(Margarida Carpinteiro, Isabel Cardoso) é comovente — pela simples razão de que se acredita facilmente nela: acredita-se nele a ler o Record, acredita-se que todos achem que o Say you say me de Lionel Richie é a canção mais bonita do mundo. Acredita-se, ainda, que todas as histórias daquele prédio — para as quais estas personagens servem de “abre-te sésamo” — são ao mesmo tempo únicas e muito comuns, têm a ver com pessoas específicas e com uma comunidade inteira em grande escala (os despejos, por exemplo). 
E com esta reinvenção do “drama social” drenado de todos os clichés do “drama social” se chega ao fim do segundo volume de As Mil e Uma Noites. A seguir virão Xerazade, ela própria, e os passarinheiros da Musgueira. 
Luís Miguel Oliveira, público

ANTE-ESTREIA NACIONAL | 9 FEVEREIRO | 21H30 | IPDJ



LISBON REVISITED
Edgar Pêra, Portugal, 2014, 66’


VERSÃO 2D

Apresentação por Ana Soares

Ficha Técnica
Shot & Edited by Edgar Pêra
Words by Fernando Pessoa
Production Rodrigo Areias / Bando À Parte


Voices:
Keith Esher Davis – Bernardo Soares
Nuno Melo – Ricardo Reis/ Álvaro de Campos
Maya Booth – Margareth Mansell
Miguel Borges – Pessoa / Barão de Teive
Jonathan Weightman – Alexander Search
Marina Albuquerque – Ofélia/ Neera
Rui Santos – Alberto Caeiro
Amarante Abramovici – Lídia
Claudia Clemente – Chloé
Henrique Clemente Pêra – Íbis

Soundscape – Artur Cyanetto, Pedro Góis
Music – Hector Berlioz, Robert Schumann, Gustav Mahler, Kino-Orquestra Alfacinha
Harper – Ana Isabel Dias
Sound Mix – Pedro Góis, Sunflag Studios
Image Consultant – Luis Branquinho
Additional Cameras – Miguel Pereira, Miguel Tavares, Vera Marques, João Moutinho, Cláudio Vasques
Associate Producer – Amândio Coroado
Line Producer – Miguel pereira
Assistant Director – Vera Marques
Post-Production Assistant – Miguel Tavares
Letter to Fernando – Ophelia Queiroz

Pensar é estar doente dos olhos”, disse Alberto Caeiro, o mais sensorial dos heterónimos de Pessoa. Lisbon Revisited vive através desta doença, mostrando formas alternativas de ver (a cidade) e ouvir (Pessoa). O título vem de um poema do seu heterónimo futurista, Álvaro de campos. Este filme é numa cine-liturgia e um kino-exorcismo de Lisboa e dos fantasmas de Fernando Pessoa. Poliglota, polifónico e tridimensional, Lisbon Revisited é falado nas três línguas em que Pessoa escreveu: Português, Inglês e Francês." in cinequanonline




EDGAR PÊRA SOBRE O FILME


Como surgiu o projecto Lisbon Revisited?

Lisbon Revisited é um filme de investigação plástica e poética e decorre de um levantamento visual dos espaços verdes de Lisboa, no formato tridimensional, feito entre 2011 e 2014. Mal comecei a filmar em 3D, apercebi-me que era o formato ideal para filmar a natureza e as suas irregularidades, pela múltiplas perspectivas e níveis de profundidade que proporcionam. Foi a partir desses foto-diários e cine-diários 3D que comecei a imaginar um filme centrado no universo vegetal lisboeta, sem (imagens de) pessoas.

Como surgiu o universo pessoano num filme sobre a natureza?
Lisbon Revisited é uma cidade polifónica e poliglota habitada pelas múltiplas vozes e línguas de Fernando Pessoa. Não sei bem como fui parar aos textos de Pessoa, porque é uma obsessão intermitente. “Pensar é estar doente dos olhos” escreveu Alberto Caeiro, a persona mais “metafísica sem metafísica” de Pessoa. Lisbon Revisited é um filme que vive através dessa doença dos olhos: um esforço por pensar apenas com imagens e sons, uma experiência imersiva, uma percepção transmutada da realidade. E penso que não há nada melhor para habitar esse mundo fantasmático que as vozes do mais carismático poeta-fantasma de Lisboa, Fernando Pessoa. Os seus múltiplos heterónimos garantem a multiplicidade dessas vozes fantasmas.

Alguns paralelos se foram estabelecendo durante a escrita do filme: o epitáfio de Alexander Search e o cemitério dos Prazeres, as odes de Ricardo Reis e as rosas do jardim botânico da ajuda, o misterioso dragoeiro da Estrela e o Livro do desassossego, as atormentadas estátuas do Jardim Tropical e as comunicações mediúnicas entre Pessoa e espíritos do além, as suas recriminações e frustrações sexuais, o mundo dos felinos e “Regra de Vida”... E também os textos cinematográficos e divinatórios escritos em francês pelo poeta e a fantasmagoria da tragédia simbolizada pelas estátuas de grávidas e crianças do Cemitério dos Prazeres, a relação impossível entre Ofélia e Pessoa, e os cenários espinhosos do jardim de cactos do Jardim das Necessidades...

Como definiria a estética de Lisbon Revisited? Surrealista? Psicadélica?

Não me parece que sejam os termos mais adequados, embora entenda as comparações que alguns críticos fizeram - prefiro a definição de Rudy Rucker de trans-realismo: “uma percepção fantástica da realidade”. Quando filmei parti sempre do real, o processo de transformação dá-se durante a montagem do filme, e aí o som e a imagem são manipulados de um ponto de vista trans-realista. A estética foto-realista irrompe apenas à noite, nos jardins da cidade. São formas alternativas de representar o mundo, dando ao espectador uma oportunidade de olhar de outra maneira para a presença do (imprescindível) universo vegetal na sua cidade.






CRÍTICA
O filme do desencontro entre o cineasta e o poeta
Edgar Pêra filma Fernando Pessoa na colagem audiovisual Lisbon Revisited...
Prosseguindo com o 3D que começou a explorar com Cine-Sapiens, a sua contribuição para o projecto colectivo de Guimarães3x3D, Lisbon Revisited é um filme-colagem à volta da obra de Fernando Pessoa. Como o cineasta explicou na introdução à primeira das duas projecções do filme em Locarno, Pessoa é para ele o poeta que melhor define o século XX “mas também os nossos dias”, de uma contemporaneidade omnipresente.
A partir de uma selecção de escritos dos seus vários heterónimos (e de uma das cartas de Ofélia Queirós), Pêra constrói uma absorvente e inquietante paisagem sonora de vozes, fragmentos de texto, música pré-existente (Berlioz, Schumann, Mahler) e construções abstractas, o todo ilustrado por imagens de Lisboa manipuladas ao extremo.
Lisbon Revisited é imediatamente visível como mais um dos múltiplos “kino-diários” de Pêra/“homem-câmara”, outra das suas experiências formais não-lineares que têm composto a maioria da sua obra, com a sua aposta num experimentalismo sensorial amplificada pelas possibilidades da imagem em relevo. Mas esbarra num problema de raiz que não era necessariamente previsível: este parece ser, não um, mas antes dois filmes, que correm em paralelo sem nunca se encontrarem verdadeiramente. Um, sonoro, é um portento de inquietação e sugestão que pedia um trabalho de imagem que estivesse ao mesmo nível. Mas o outro, visual, não está; e rapidamente se torna cansativo e redundante, devido ao (ab)uso da imagem invertida. Não é exactamente uma surpresa que assim seja - Pêra nunca foi, apenas, um cineasta da imagem e a sofisticação do seu trabalho sonoro tem sido uma constante na sua obra. A surpresa é que, desta vez, seja pelo som que recordamos um filme do cineasta.

Jorge Mourinha, público