A DUPLA VIDA DE VERONIQUE | 28 NOV | 21H30 | IPDJ



A DUPLA VIDA DE VERONIQUE
Krzysztof Kieslowski
França, 1991, 98’, M/12

FICHA TÉCNICA



Título Original / Internacional: La double vie de Véronique
Realização: Krzysztof Kieslowski
Argumento: Krzysztof Kieslowski, Krzysztof Piesiewicz
Montagem - Jacques Witta
Director de Fotografia: Slawomir Idziak
Música: Zbigniew Preisner
Interpretação: Irène Jacob, Wladyslaw Kowalski, Halina Gryglaszewska, Aleksander Bardini, Kalina Jedrusik
Origem: França
Ano: 1991
Duração: 98´


FESTIVAIS E PRÉMIOS

Festival de Cannes 1991 – Melhor Actriz, Prémio FIPRESCI e Prémio do Júri Ecuménico
Prémios César 1992  – Nomeação para Melhor Actriz e Melhor Música Original
Golden Globes 1992 – Nomeação para Melhor Filme Estrangeiro
National Society of Film Critics, E.U.A. – Melhor Filme Estrangeiro
Festival de Varsóvia – Prémio do Público
 
  

CRÍTICA 
 Kieslowski é um cineasta polaco que a realização de Decálogo, a série televisiva sobre os Dez Mandamentos, colocou sob a sombra de Deus, pelo menos até termos tempo e oportunidade de apreciar o conjunto da sua obra (já vasta: seis longas-metragens antecedem o Decálogo, todas inéditas em Portugal). Ou, se quisermos ser mais exactos, Kieslowski é hoje um cineasta a operar sob o signo da Metafísica, entendida esta como a esfera do inexplicado que nos acompanha na vida e sem a qual as normas morais não fazem qualquer sentido.
Algures numa entrevista ao jornal italiano «L' Unità», Kieslowski declarou: «Eu não acredito em Deus mas, mesmo não acreditando, tenho uma relação com ele». É um pouco a transferência deste paradoxo para a vida quotidiana que faz a irresistibilidade de um filme como A Dupla Vida de Véronique.
Contada, a sua história parece quase uma fábula laboriosa: na Polónia e em França, duas mulheres idênticas desconhecem-se e, todavia, são iguais (física e psicologicamente), ou, mais correctamente, são dois desdobramentos da mesma entidade. A primeira parte do filme acompanha Veronika, na Polónia. Quando esta morre, o filme transfere-se para Véronique, em França, e segue a sua aprendizagem da descoberta da existência da outra. Contudo - e esse é o espanto maior deste filme que, à parte essa ideia de argumento, é filmado com rigores de realismo —, a cada momento Kieslowski é capaz de nos tornar disponíveis para o maravilhamento, o improvável, as ligações inesperadas. Tudo é uma coisa e pode ser outra. Tudo desperta caminhos e conotações. Tudo é transfigurável. Tudo é significante de uma constelação de significados. A vida deixa passar uma realidade suspensa, sussurrada, imaterial.

Tomemos plano inicial para se perceber ao que venho. Uma rapariga canta, arrebatada, num coro. O seu rosto é o do êxtase estético, do arrebatamento pela música. De súbito, uma gota de água desliza-lhe pelo rosto. Um instante que tomamos como uma irreprimida lágrima rebentada pela emoção sonora. Não é. Uma e outra gota fazem-nos descobrir que, simplesmente, começou a chover. A água arrefecerá a paixão? Não.
A rapariga continuará a cantar, o fogo interior é mais forte que a intempérie dos céus. Desfiará a última nota completamente encharcada, o rosto num paroxismo de beleza e de prazer, trans-humano, como se tivesse visto o Absoluto face a face. Não é um som, um canto, é já um orgasmo. Mais à frente descobriremos que dessa paixão se pode morrer.
Todo o filme é rasgado por este tipo de sensações, por uma espécie de polifacetação das coisas que agudiza a nossa atenção, o nosso prazer de espectador. Não que Kieslowski nos atire para um labirinto de espelhos e nos chocalhe o entendimento numa forma de desnorte em que tudo estivesse em todos e reciprocamente. Não, não é um jogo de nomeação de enigmas. É apenas um desbloqueador de probabilidades. E se?...
E se isto estivesse tudo ligado? E se Deus fosse um calmo e oculto manipulador de marionetes que multiplicou as nossas aparências porque frágil é o nosso invólucro mortal e vamo-nos gastando? E se a morte fosse um extremo voo, se a alma tivesse olhos (que outro cineasta ousaria um plano subjectivo pelos olhos da alma)? E se Deus nos tivesse feito, assim, semelhantes, apenas para que pudéssemos aprender com os erros uns dos outros (sim, este filme tem uma moral)? E se o individualismo fosse um pecado? E se os chamamentos de Deus fossem gestos de amor que, no entanto, fosse preciso decifrar, primeiro, aceitar, depois, sem fazer perguntas, por um entendimento todo feito de uma diversa comunhão? E se uma gare de comboio fosse um sítio tão bom como qualquer outro para a Revelação?
Desvario, tresleio à desfilada? O maravilhamento deste filme também é o de poder ir e voltar. De permitir uma leitura chã — e então teremos a tal fábula laboriosa; de solicitar uma leitura que abra as portas do entendimento a territórios onde o entendimento, tal como o conhecemos, deixa de ter funcionalidade — e então há uma transfiguração experimentável, de onde se sai sem palavras.
Para já, fixemos um nome: Irène Jacob, premiada em Cannes/ 91 pelo seu trabalho neste filme e, doravante, um dos (raros, raros...) rostos do cinema actual em que podemos materializar a palavra Mulher. E vejamos que é dela que emana a primeira e mais forte alavanca para amar este filme.
Mas atentemos, também no espantoso trabalho sobre a banda de som, essa raiz infinda de mistérios e sugestões (o filme põe-nos, aliás, a fazer a experiência concreta e imediata da decifração do audível), na fotografia, que Kieslowski explora até aos limites da luz e à precisa manipulação dos cromatismos (A Dupla Vida de Véronique é um filme picturalmente quente), atentemos na matéria (a rugosidade que se estabelece entre «décors» sombrios e um rosto exaltante, a complementaridade entre a limpidez de uma voz e o prazer sexual de um corpo — e que vertigem na forma como neste filme se figura o amor!).
E atentemos na esperança. Porque, quaisquer que sejam as deambulações metafísicas que esta fita pede ao nosso olhar e compreensão, a verdade dos factos é que, após uma sinuosíssima estrada, a nossa protagonista tirou as suas lições de vida: da experiência de ela-outra nos corredores da morte tirou a sábia lição de não abusar do seu débil coração; da sua disponibilidade para o mistério tirou um amor perfeito. Assim apaziguada, no corpo e na alma, há então lugar para uma merecida e vera lágrima.
Bem vistas as coisas, A Dupla Vida de Véronique é uma viagem entre a inquietude e a paz.
Jorge Leitão Ramos, Expresso, 12/set/92