VÉNUS NEGRA: «Imperdível para quem gosta de cinema.»


2ªf, 3 Out, IPJ, 21h30. Entrada sócios 2€, Estudantes 3,5€, Restantes 4€.


O terrível destino de uma jovem sulafricana exposta como um animal de feira. Kechiche assina um filme escuro e violento.

VÉNUS NEGRA é o filme mais impressionante e mais ambicioso já realizado por Abdellatif Kechiche (“La Faute à Voltaire”, “A Esquiva” e “O Segredo de um Cuscuz”).

Porquê? Porque o cineasta francês arrisca de forma inédita no cinema contemporâneo ao escolher consagrar mais de duas horas e meia a um tema e a uma personagem ingrata para o nosso cinema: uma jovem negra com um destino terrível.

Saartjie Baartman, sul-africana, foi trazida para a Europa no início do século XIX para ser exibida em feiras como uma selvagem e se tornou celebra sob o nome de Vénus Hotentote.

A ciência debruçou-se sobre o seu caso, concluindo por algumas das suas hipertrofias que ela pertencia a uma raça inferior (justificando a escravatura). Ela morreu de alcoolismo aos 26 anos, após se ter iniciado na prostituição. De seguida, foram-lhe retirados os seus órgãos genitais, e colocados em frascos. Fizeram-se moldes da totalidade do seu corpo e os resultados estiveram em exposição no Museu do Homem até 1980. Nada de muito agradável.

Kechiche evita todos os facilitismos: longe de se prender a uma hagiografia desta jovem negra explorada, não procurando provocar lágrimas, ele coloca o seu filme num ângulo singular, o desespero, e não se desvia.

Pior, ele mantém a sua protagonista à distância, recusa penetrar na sua psique e mantém-na na opacidade. Que pensa Saartjie? Que sente? Não o saberemos – mas que sabemos nós de Lola Montès no final do filme de Ophüls?

VÉNUS NEGRA é um filme de uma escuridão total mas incandescente, radical no seio de um género mainstream (o filme biográfico puramente narrativo) que não tinha resultados tão bons desde “Van Gogh” de [Maurice] Pialat. Era necessária esta inconsciência e esta fé na sua arte por parte de um cineasta francês para ousar realizar um filme como este na paisagem cinematográfica industrial do presente.
Alguns dirão que o filme é repetitivo. Sim, Kechiche filma demoradamente, até ao limite da exaustão do espectador, as cenas horríveis de espectáculo de feira, mundanos ou científicos onde Saartjie, que queria ser dançarina, tem de simular o que não é: uma selvagem, um monstro.

Mas o desespero está lá, na repetição, nas reformulações, na impossibilidade de escapar ao seu destino. Os humanistas ingleses procuram libertá-la através da lei? São derrotados, quer pela justiça quer pela mise en scène: Saartjie é prisioneira da sua imagem e da sua monstruosidade – como era o “O Homem que Ri”, romance sublime de Victor Hugo do qual nos lembramos frequentemente.

Como pode ela escapar ao seu destino? Deseja-o verdadeiramente? Que se pode fazer contra uma sociedade inteira quando se está sozinho?

São os outros, as maiorias, que decidem por ela, esse objecto de desejo, de espectáculo, renegada sem cessar para o seu estatuto de escrava sem civilização. Um cliché. Que tarefa mais nobre pode um cineasta ter do que lutar contra os clichés?

Podemos julgar que Kechiche utiliza ferramentas desproporcionais, desafiantes para um espectador já rendido à sua causa. Mas elas não fazem mais do que reflectir a vontade de convencer e a cólera que o habitam. E o espectador advertido não pode senão deixar-se levar, desde os primeiros segundos, pelo poder e precisão desta mise en scène, mas também pela sua instabilidade.

O mundo que nos mostra este artista, com um olhar aterrorizado e aterrador, sem dúvida paranóico (e com razões para o ser), onde apenas um pintor sabe ver Saartjie como ela é, uma mulher tímida, não pode deleitar-se com a rigidez, linhas de força, ou perspectiva.

O nosso mundo é móvel, instável, angustiante, repleto de mentiras, de tramas falsas e verdadeiras, de pseudo-ciências que nos tendem a ditar. Mostrar outro seria mentir.
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J.B. Morain, Les Inrockuptibles


“Vénus Noire” é uma extraordinária meditação sobre a sociedade do espectáculo, o modo como ela se alimenta da novidade, do escândalo, o modo como o olhar que se lança sobre alguém define a percepção de quem vê e de quem é visto.

Saartjie, interpretada com uma dignidade incontestável por Yahima Torrès (uma vizinha de Kechiche sem experiência profissional de actriz), era uma mulher livre para os padrões da sua época – só que ninguém acreditava nisso. Nem as actrizes que achavam que o seu espectáculo de selvagem domesticada era indigno de ser considerado representação, nem os moralistas que a queriam salvar da “escravatura” em nome da moral e dos bons costumes vigentes, nem sequer os naturalistas que queriam estudar a anatomia peculiar de Saartjie e não a consideravam capaz de vontade própria.

Ninguém é inocente nesta triste história verdadeira – nem sequer a própria Saartjie, cúmplice do seu próprio destino trágico: por trás das boas intenções ou das indignações, escondem-se preconceitos aos quais ninguém escapa. O liberalismo e o fundamentalismo têm mais em comum do que parece, afinal.
O estilo naturalista de Kechiche, que estrutura o filme de novo por quadros longos em tempo real (outros tantos actos na tragédia da Vénus negra), é perfeito para contar esta história. É graças a ele, e à entrega espantosa dos seus actores (Andre Jacobs, Olivier Gourmet, Elina Löwensohn), que somos arrastados nesta descida aos infernos, dos teatros rascas de Londres aos salões elegantes de Paris, revelando como não há assim tanta diferença entre a “plebe” e a “nobreza” quando é a natureza humana que está em jogo.

A odisseia de Saartjie raia a espaços o desconfortável, o chocante, o humilhante. Ocasionalmente Kechiche carrega em demasia no traço grosso – mas tire-se-lhe o chapéu por não ter feito de “Vénus Noire” nem o dramalhão de faca e alguidar que espreitava a cada canto, nem o panfleto de denúncia contra a exploração do homem pelo homem.

Kechiche não julga, mostra. E conta-nos uma história exemplar de uma mulher a quem nunca ninguém deu o devido valor. Talvez seja precisamente por isso que Veneza reagiu tão friamente: porque nos força a confrontar-nos com o nosso próprio olhar. Algo nos diz que “Vénus Noire” se vai tornar num grande filme maldito.
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Jorge Mourinha (em Veneza)



ENTREVISTAS

ENTREVISTA AO REALIZADOR

Abdellatif Kechiche responde aqui à maior parte das questões sugeridas pelo seu filme. Para cumprir os pressupostos deste exercício, as perguntas são formuladas como uma série de afirmações categóricas. Tal como as pessoas daquela época teriam feito julgamentos sobre a protagonista, Saartjie Baartman.

A PSICOLOGIA NÃO É SUFICIENTE PARA EXPLICAR A COMPLEXIDADE DE UM SER HUMANO
A Psicologia limita o nosso entendimento do ser humano. A aparência de uma só pessoa pode revelar mais subtilezas sobre a natureza humana do que todas as tentativas de explicações psicológicas. Quando o cinema consegue ser tão subtil quanto a vida real, é maravilhoso. A representação tem muito a ver com isso… É preciso ter sempre em conta que as técnicas cinematográficas podem ter um efeito negativo na representação e torná-la completamente inanimada…

E, por vezes, sem qualquer motivo em particular, há uma parte que permanece um mistério. Saartjie é uma pessoa muito misteriosa… foi isso que me atraiu nela em primeiro lugar… No final não sabemos muito bem o que a motivava, temos apenas alguns acontecimentos-chave: a viagem da África do Sul para Inglaterra, os espectáculos, o caso no tribunal de Londres, o seu baptismo e o tempo junto dos cientistas franceses. Tudo o resto é informação fragmentada.

São esses espaços intermédios que me interessam. Ao preservar o sentido de mistério à volta dela, nós, público, somos constantemente forçados a olhar para o nosso interior em busca de respostas.

Li tudo o que foi escrito sobre ela e apercebi-me que, frequentemente, existe uma tendência para analisar em excesso. Ou era apresentada meramente como uma escrava, algo que considero difícil de acreditar já que ela poderia ter aproveitado a oportunidade cedida pelo tribunal londrino e reclamado a sua liberdade. Mas ela não fez essa escolha. Para além disso, nas mais recentes descobertas históricas, ficámos a saber que ela também actuava na Cidade do Cabo… Ou então as histórias sobre a sua vida eram demasiado fantasiadas e ficcionadas, extraindo o mistério que a rodeia, o que pessoalmente considero
desrespeitoso.

E o respeito foi uma das primeiras coisas que Saartjie Baartman recebeu da minha parte. Este respeito não surgiu daquilo que estava escrito sobre ela, mas sim de toda a sua identidade.

Uma imagem, por vezes, revela-nos muito mais do que as palavras. Foi isso que senti quando descobri os retratos de Saartjie pelos ilustradores do Museu. E mais ainda quando vi o molde original do corpo dela que ainda se encontra em França. Fiquei incrivelmente emocionado pela sua face. Diz-nos muito mais sobre ela do que qualquer coisa que tenha lido. É claro o seu sofrimento, o rosto dela está inchado da bebida e da doença, mas para lá disso ela parece ter (quer nos desenhos quer no molde) uma qualidade etérea, uma distância quase mística…


O seu sofrimento interminável está muito relacionado com isto… o desapontamento também… Foi isso que me comoveu acima de tudo. Quando penso nela penso em desprendimento, numa abnegação completa, e em inteligência. Ela deve ter sabido muito sobre a natureza humana… Quando a vi, senti-me impelido a contar a sua história.

SER UM ARTISTA, COMO SAARRTJIE TENTOU SER, É ENTREGAR-SE POR COMPLETO AO
PÚBLICO, SEM ESCONDER NADA
Saartjie nunca se entregou por completo ao público mesmo que tenha sido constantemente violada. O que as pessoas viram não era o seu verdadeiro eu, mas sim uma caricatura: era aquilo que eles queriam ver.

Aceitar a opinião de qualquer pessoa sobre nós, quando essa opinião é degradante, é muito doloroso e complicado, e nesse sentido ela era verdadeiramente uma escrava.

Saartjie era uma artista, e isso era frequentemente escrito sobre ela: ela tocava um instrumento musical, tinha uma boa voz e dançava bem. Como uma verdadeira artista, o aspecto mais triste talvez tenha sido o facto de ela não ter sido capaz de expressar o seu verdadeiro eu porque não era isso que as pessoas esperavam da parte dela.

Ela estava lá para ilustrar uma série de crenças e para consolidar o raciocínio daquela época; era uma prisioneira das crenças de outras pessoas. Em última análise, talvez este seja o principal tema do filme, a opressão das convicções.

Identifiquei-me verdadeiramente com este aspecto da personagem. Foi assim que me senti enquanto actor quando comecei. Sofri com aquilo que as pessoas esperavam de mim, não como actor mas como homem árabe. Senti-me como numa prisão. Os papéis atribuídos aos árabes nessa altura eram muito limitados.

O PRINCIPAL PAPEL DE UM REALIZADOR É CRIAR UMA FORTE DINÂMICA DE GRUPO ENTRE AS PESSOAS COM QUEM VAI TRABALHAR.
Conseguir que uma equipa trabalhe toda na mesma direcção num projecto específico beneficia o processo de trabalho. Em cinema, tentei sempre instalar a mesma ética de trabalho rigorosa que aprendi no teatro. Isso significa, basicamente, não começar os ensaios no primeiro dia de filmagens mas começar a ensaiar muito tempo antes.
Os actores começam a conhecer-se, criam laços e, consequentemente, sou capaz de perceber melhor o potencial de cada um deles. Este conceito de formar uma trupe tem sido uma obsessão minha desde há anos. Por mais estranho que pareça, com este filme senti-me muito mais relaxado em relação a isto, mais confiante acerca da interacção que poderia acontecer entre Yahima, Olivier, Andre, Elina, Michel, etc. Parecia instintivo.

Um exemplo disso é o Andre Jacobs. Quando vi a foto dele, foi muito claro que ele seria o Caesar. Nunca o tinha visto a representar e nem sequer fiz uma audição.

A ESCOLHA DE UM ACTOR NÃOPROFISSIONAL, COMO YAHIMA TORRÈS, CONFERE AUTENTICIDADE AO PAPEL
Mesmo sem experiência como actor, é possível interpretar de forma exagerada. Escolhi-a porque não encontrei uma actriz negra com um corpo semelhante ao de Saartjie Baartman.

Vi a Yahima pela primeira vez em 2005, estava a caminhar numa rua perto da minha casa. Fui apanhado de surpresa pela sua aura e pelas características físicas, que me fizeram imediatamente lembrar de Saartjie. Quando a contactei uns anos mais tardes para uma audição, foi a sua abordagem despreocupada à vida que me fez ter a certeza de ter feito a escolha certa. Percebi que seria capaz de puxar por ela emocionalmente sem a magoar.

Parti então à procura de um grupo de actores que a conseguissem apoiar; a “trupe” que, na minha visão, é tão importante. Todos os seus colegas, actores com bastante experiência, não só foram fantásticos mas também naturalmente protectores e amáveis com Yahima.

A ideia de que é possível pegar em actores não profissionais e alcançar uma interpretação espontânea é um mito. É muito mais fácil trabalhar com actores profissionais, se forem talentosos, do que com actores não profissionais, que têm de ser ensinados e aos quais é preciso explicar tudo em detalhe. No início podem ter um dom natural, isto é muito comum, mas a partir daí é preciso muito trabalho para que eles atinjam um patamar profissional. Uma verdadeira interpretação só se consegue com imenso trabalho.

OS DETALHES DE ÉPOCA NO CINEMA ARRUÍNAM QUER A GRANDE QUER A PEQUENA HISTÓRIA
A adaptação de um argumento de época ao cinema facilita o risco de nos focarmos unicamente em obter os detalhes visuais correctos e de sermos absorvidos por isso. Tenho a certeza de que deve ser muito agradável recriar o passado nos mais minuciosos detalhes, e fazê-lo bem, como numa pintura. Mas isso coloca em risco as razões pelos quais o estás a fazer, ao colocares demasiada energia nas coisas erradas.



Da minha parte os riscos eram limitados, porque o orçamento era limitado. A estimativa original dos custos para o filme era o dobro daquela que acabou por ser. A primeira coisa em que tive de cortar foi nos cenários de época. De qualquer foram, os cenários exageradamente recheados usados normalmente para ilustrar o passado nunca me interessaram realmente. Sempre me interessou mais filmar um rosto com a menor quantidade possível de maquilhagem do que cenários e guarda-roupa. Assim, libertei-me dos constrangimentos financeiros e de tempo habituais no cinema, tais como as horas gastas na maquilhagem, iluminação, etc.

De qualquer forma, o meu interesse principal na vida de Saartjie Baartman excedeu sempre o aspecto histórico. Sempre me fascinaram as complexas lutas de poder que se estabelecem nas relações construídas sob dominação e os problemas com que se deparam as pessoas no mundo do espectáculo. E a posição que as pessoas ocupam.

PARA AS MULHERES, TODOS OS HOMENS SÃO LOBOS
Isso é um pouco duro para os pobres lobos… Os seres humanos são como são, capazes do melhor e do pior. É verdade que os homens oprimiram frequentemente as mulheres ao longo da história…
Agora imaginem como seria para uma mulher negra com características físicas bem diferentes! Ela por si só é a incarnação de todos os motivos de opressão.

Para ser sincero, tentei não colocar as culpas em cima dos homens… Estava mais interessado em filmar o que tinha sido noticiado, de forma a tentar perceber como esta opressão é concebível. Tentei ao máximo não fazer julgamentos sobre ninguém mas por vezes não foi fácil. Por exemplo, no caso dos cientistas eu apenas transpus para o filme aquilo que eles tinham escrito ou feito, e isso foi suficiente.
Às vezes o que encontrei era tão violento que tive de diluir os factos. Quando descobri que o comité científico que estudou Saartjie – procedimento que à lupa dos comentários registados deve ter sido muito humilhante para ela – tiraram partido da sua morte para descobrir o que não tinham sido capazes de fazer em vida, fiquei horrorizado. Não se pode, em nome da ciência, ser tão desumano.

Não consigo acreditar que cavalheiros tão inteligentes conseguiram esquartejar o cadáver de uma mulher em total impunidade e depois colocá-lo em recipientes, passeando com eles, dando palestras, como se fosse um troféu…

Sim, claro que podemos dizer que eles a consideravam um animal, mas isto não é totalmente verdadeiro. Eles estavam a tentar provar que ela estava mais próxima de um animal do que de um humano, mas tudo aquilo que se lê nos seus apontamentos nos levam a acreditar que tinham dúvidas…

Para começar, um animal nunca se teria imposto e recusado um exame completo. Talvez seja isto que mais me enfurece sobre eles: a desonestidade intelectual. Eles não estavam cegos pelas suas ideias, estavam cegos pela ambição desmedida. A competição no mundo científico estava ao rubro, para concluir quem seria o primeiro a apresentar a prova que justificaria a exploração de África que sucedia naquele tempo. Eles tinham de extrair qualquer traço de humanidade dos africanos para lhes conferir o direito de os oprimir.

A CULTURA AFRICANA E O CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO SÃO OPOSTOS
Este é o tipo de afirmação que ilustra a crueldade com que o movimento pseudointelectual tenta menorizar o povo africano. Recuso-me a entrar num debate desse tipo.

Era o pensamente de Cuvier. Ele acreditava que, ainda que os Egípcios tivessem pele escura, pertenciam à raça branca. Deixo esse tema para os intelectuais africanos, que farão um melhor trabalho do que eu, defendendo o seu papel na história da Humanidade.

É essencial para qualquer sociedade saber a sua história. Acho que é doentio ignorar o passado. Ao dar vida a Saartjie Baartman, espero ter iluminado à minha maneira uma zona sombria da história francesa, e contribuído para o debate entre as pessoas.

SAARTJIE NÃO É O SÍMBOLO DA OPRESSÃO DOS NEGROS, COMO FOI CELEBRADA NA ÁFRICA DO SUL EM 2002
Dependendo da forma como a história é contada, Saartjie tanto é retratada como uma escrava no sentido mais básico do termo, como uma mulher numa jaula, explorada e maltratada. Ou então como uma mulher que agiu completamente de acordo com a sua própria vontade. De qualquer das formas, ela foi maltratada. Acho que esse não é ponto determinante.

O facto de ela talvez ter actuado de livre vontade não diminui o seu poder como símbolo da opressão sobre a população negra. Na verdade, até lhe acrescenta mais força. Porque a violência psicológica inflingida sobre Saartjie é, de longe, mais intolerável do que qualquer acto de violência física. Mas também porque ao detalharmos a natureza complexa da opressão de que foi vítima estamos a relacioná-la com todas as formas de opressão que continuam a existir. Desta forma, caricaturas de minorias e comentários racistas e mesquinhos são outra forma de opressão que reforça a dominação de qualquer homem, mulher ou grupo por outro. E isto ainda acontece nos nossos dias.


O PROCESSO DE REALIZAR UM FILME É UMA LUTA PERMANENTE, MESMO CONSIGO MESMO, PELA PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE ARTÍSTICA
A integridade artística é um ideal. Lutamos para o alcançar. Primeiro lutamos conta os outros, porque cada um imagina o filme de certa forma. Conseguir que todos trabalhem de acordo com o mesmo conceito é muito difícil. São precisos nervos de aço para não abdicarmos da nossa visão e conseguirmos reflectir as escolhas que fizemos. E, claro, lutamos connosco próprios, porque somos facilmente influenciados pelos outros e porque conhecemos bem todas as convenções cinematográficas. Pormos tudo em causa não é algo fácil. As convenções existem para nos tranquilizarem. Enfrentá-las põe em risco o nosso trabalho ao mesmo tempo que o expõe a interpretações erradas.

Filmar VÉNUS NEGRA nem sempre foi fácil para todos, principalmente para a equipa técnica… Filmar o sofrimento de alguém, principalmente em cenas que tinham lugar em salões libertinos, ensaiando cada take de forma a fazer sobressair a verdade das personagens, não deixou ninguém indiferente. Entre escrever “ele bate-lhe” ou “ela deita-se no chão em frente ao seu público” e vê-lo existe uma grande diferença que pode tornar as coisas muito desconfortáveis… Não é possível abordar um filme destes como quem trata um assunto terno e romântico. Quando se põe em causa a humanidade, isso tem um efeito inquestionável junto dos envolvidos no processo.

A cena no salão libertino é o exemplo mais flagrante. No argumento, a cena era muito crua e bem mais explícita. Toda a gente olhava para mim para perceber como ia realizar a cena.

Baseei-me em testemunhos e interpretei-os à minha maneira. Por exemplo, quando “salvei” os libertinos que terminam a actuação quando são confrontados com as lágrimas de Saartjie. Gostei da ideia de, após ter sido violentada pelos cientistas, Saartjie ser confrontada com um grupo de pessoas, libertinos, que a vêem como um objecto de beleza e desejo e que a acabam por respeitar. Quis também pôr em causa o poder do grupo, onde o indivíduo se sente menos exposto já que a sua responsabilidade é partilhada com os outros.

Ainda que tenha filmado aquilo que é insuportável do ponto de vista humano, nunca perdi de vista as regras de respeito em relação à minha equipa. Deixei-me guiar por toda a preparaç ão que fiz bem como por aquilo que surgiu espontaneamente. Éo actor (a sua emoç ão, a sua violêcia e o seu ritmo) que nos dáo sentido, enquanto realizador, de que devemos seguir este ou aquele caminho…Tal como nos meus filmes anteriores, quis que o set fosse um espaço de criação e não apenas de uma interpretação pré-concebida.

A OPINIÃO DO REALIZADOR DITA E INFLUENCIA A OPINIÃO DO ESPECTADOR
Nunca me senti tão pressionado pela opinião como ao fazer este filme. Para criar a personagem de Saartjie o mais fiel possível, dei início a uma investigação para reunir os factos da sua vida. E foram esses detalhes que usei para construir a sua história. Como, por exemplo, o momento em que uma mulher, em Londres, espeta um guarda-chuva no rabo de Saartjie. Foi desta forma que a história foi contada por uma testemunha da época. As pessoas foram realmente observar a Vénus Hotentote para lhe tocar no traseiro, mesmo que tivessem medo de serem mordidas.

A violência do filme surge, em primeiro lugar, da forma como as pessoas vêem Saartjie. O filme faz-nos pensar, enquanto espectadores, como vemos os outros. Faz-nos pensar também no cinema em geral: o que espera o público? Como realizadores, o que lhe devemos dar? Como devemos entregá-lo? A questão acerca daquilo que é responsabilidade do director parte daqui. A minha abordagem foi entrar no interior de cada uma destas personagens. Caezar poderá ter pensado em enriquecer, mais ainda assim tinha certas exigências artísticas. Réaux é um homem do espectáculo disposto a fazer qualquer coisa para satisfazer as expectativas do público. Até Cuvier, para além das suas ambições científicas, mostra sinais de uma consideração estética. Quis dar a cada uma destas personagens um conjunto de convicções.
Qualquer pessoa confrontada com uma história destas tem de estar alerta. Antes de mais, eu mesmo, já que não tenho todos os dados necessários para explicar ou entender a personagem de Saartjie, apesar da empatia que sinto por ela. Nunca a vi como um símbolo ou como uma santa, mas sim como alguém que me pode ensinar a falar de algumas coisas.

Reparem na aura que ela tem ainda hoje. Apesar de tudo aquilo que já lhe foi extraído, acredito que Saartjie ainda tem muito para dar, algo mais para nos dizer. Depois dos dez anos que passámos “juntos” talvez me tenha tornado o seu instrumento (risos).
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por Philippe Paumier


ENTREVISTA À ACTRIZ PROTAGONISTAYAHIMA TORRÈS (SAARTJIE)

QUANDO OUVIU FALAR, PELA PRIMEIRA VEZ, DA “VÉNUS HOTENTOTE”?
Não conhecia muita coisa até o Abdellatif me ter falado dela pela primeira vez. Conhecemo-nos por acaso em Belleville, em 2005, quando ele estava a preparar “O Segredo de um Cuscuz” e depois, três anos mais tarde, quando ele estava a escolher o elenco para VÉNUS NEGRA, fiquei muito emocionada e também honrada por ele me ter escolhido para o papel.

Comecei a reunir toda a informação que consegui encontrar sobre ela na Internet. Ela sofreu imenso. Muitas vezes, sentia-se extremamente vulnerável e sozinha mesmo quando era “protegida” por Caezar ou quando estava rodeado de outras “amigas” no bordel. Aquilo de que mais gostei no retrato de Saartjie por Abdellatif foi a multiplicidade de facetas da sua personalidade. Ela desejava profundamente ser uma artista numa época em que as pessoas eram incapazes de ver para além do aspecto físico. Saartjie era uma criatura exótica, alguém física e culturalmente diferente. Esta história precisava de ser contada, a bem da Humanidade.

COMO CONSEGUIU IMERGIR POR COMPLETO NUMA PERSONAGEM SOBRE A QUAL AINDA SE SABE TÃO POUCO?
A caracterização de Saartjie foi construída a pouco e pouco. O papel está repleto de emoções intensas e muita tristeza, mas existe também a sua mais pura determinação e a sua capacidade para lidar com as suas diferenças. Tive de aprender o básico de Afrikaans, a sua forma particular de dançar, e ainda de tocar um instrumento e de cantar. Tive de ser suficientemente boa nestas áreas para ser multi-talentosa como ela era.

Consigo perceber quão solitária ela se deve ter sentido ao deixar a terra natal. Antes de viver em França, eu vivi em Cuba – onde vivi uma estranha sensação de descoberta, aprendizagem e saudades do meu país ao mesmo tempo. Qualquer imigrante precisa de permanecer ligado às suas raízes seja conhecendo outras pessoas, ouvindo determinada música ou mantendo vivas as memórias. Tive sorte em ter tudo isso; Saartjie não teve nenhuma ligação com as suas raízes.

PARA ALÉM DE SER A SUA ESTREIA NO CINEMA, ESTE É TAMBÉM UM DESAFIO
MULTIFACETADO PARA UMA ACTRIZ…
Sim, ela é uma personagem muito física. Como preparação para o papel tive aulas de canto e de danças africanas, apesar de ter tido um bom ponto de partida por ter vivido em Cuba! É um estilo de dança muito elementar, tribal, quase trance, como se a energia estivesse a sair da terra… Mesmo durante as filmagens continuei a treinar para conseguir manter a energia de Saartjie. Tive um treinador pessoal e fiz bastantes exercícios de respiração para dar vida a esta personagem.


COMO MULHER, CONSEGUE ENTENDER A ESCOLHA DE OUTRA MULHER DE EXIBIR O SEU CORPO EM TROCA DE RECONHECIMENTO?
O sonho de Saartjie era vir para a Europa para se tornar uma artista. Na África do Sul ela trabalhava para Caezar em troca de um salário mínimo: na teoria, a escravatura tinha sido abolida, mas a família de Saartjie tinha sempre trabalhado para colonialistas brancos. Para além disso ela era a companheira de Caezar, muito provavelmente porque ele lhe ofereceu protecção numa terra estranha.

No que se refere ao seu corpo, hoje em dia ninguém imagina que uma mulher não possa ter o direito de dizer “não”. Quando Saartjie se exibe, não significa que está a autorizar a violação do seu corpo. Caso contrário é apenas abuso, uma forma de dominação subhumana.

Na cena em que Saartjie está a desempenhar o papel de escrava sexual num salão parisiense, os libertinos estão excitados. Vêem-na como um objecto de prazer mas a expressão facial de Saartjie mostra que ela sabe que é uma mulher, um ser humano, e ela olha-os como se eles fossem animais.

OLHA PARA SAARTJIE COMO UMA ARTISTA?
Sim. Ela era capaz de fazer espectáculos lindos em palco e de passar as suas emoções para uma plateia. Mesmo que os espectáculos que ela tenha dado não tenham sido os originalmente prometidos por Caezar, ela manteve a sua integridade artística. Por exemplo, quando começou a cantar canções sobre a sua herança africana, com a sua voz magnífica, ninguém a ridicularizou. Pelo contrário, o público calou-se enquanto ela os conquistava.

Podia ter sido uma porta-voz fantástica para a Cultura Africana caso as pessoas tivessem visto para além das diferenças físicas. Saartjie não falava muito mas ela observava e reflectia profundamente.

O QUE SENTE EM RELAÇÃO AOS DOIS HOMENS, CAEZAR E DEPOIS RÉAUX, QUE DOMINARAM SAARTJIE?
Caezar foi o responsável pelos espectáculos em Londres: ele entendeu que ao colocá-la a desempenhar o papel de “Vénus Hotentote” ele faria mais dinheiro do que simplesmente exibindo os invulgares atributos físicos de Saartjie. Ele manipulou-a para os seus próprios fins e ultrapassou os limites que provam como ele não podia ter muito respeito por ela.

Por outro lado, ele tomou conta dela à sua maneira. Eles tinham um relacionamento. Ela bebeu durante alguns anos mas quando ele a deixou o álcool tornou-se a sua única companhia. Não estou a dizer que Saartjie queria morrer, mas a verdade é que ela não tinha vontade de viver.

Réaux era completamente diferente de Caezar; a única coisa que ambos tinham em comum era o facto de lhe terem prometido a lua. Do meu ponto de vista ele era bem pior e não tinha qualquer compaixão por Saartjie – ele era um homem do circo cujo único interesse era ganhar dinheiro. Ele chegou a prostitui-la e inclusivamente a sua própria namorada Jeanne.

Georges Cuvier, em nome da ciência, foi aquele que mais violentamente debilitou a dignidade de Saartjie… Ele e o seu painel cientifico decidiram ignorar que ela era um ser humano e preferiram observá-la como um animal, um objecto de curiosidade. Cuvier catalogou o físico invulgar de Saartjie, ao serviço da sua própria ambição. Ela entendeu isto perfeitamente e diferenciou os seus espectáculos de palco onde mostrou as suas partes íntimas dos dias que passou junto do grupo de cientistas. Ela recusou que os seus órgãos genitais fossem examinados porque sabia que eles se encontravam a violar o seu corpo e a sua integridade.

A única pessoa que teve um olhar honesto sobre a sua dignidade e a respeitou foi o artista Jean-Baptista Berré. Ele criou esboços simpáticos de Saartjie, devolvendo-lhe a sua humanidade como se lhe agradecesse por ela ser quem era. Essa é uma cena muito comovente no filme; um momento no qual o filme respira e os espectadores podem fazer um balanço.

ABDELLATIF KECHICHE TRATA SAARTJIE COM HONESTIDADE E RESPEITO, O MESMO ACONTECE CONSIGO ENQUANTO MULHER E ACTRIZ…
Sim, e a opinião dele é tanto a de um artista como a de qualquer outro ser humano. Nunca se permitiu julgar Saartjie ou qualquer outra das personagens. O que se traduz, nas filmagens, num respeito total pelos actores. E foi por isso que nunca me senti desconfortável ao filmar as cenas de nudez ou as cenas de subjugação sexual nos salões libertinos. Para além dos ensaios e da minha interpretação, o Abdellatif foi muito cuidadoso para garantir que eu não ficava nem ferida nem traumatizada ao interpretar cenas tão violentas. Também os outros actores deram-me sempre todo o apoio. Senti-me completamente segura.

QUAIS SÃO OS ECOS, NOS NOSSOS DIAS, DE UMA VIDA COMO A DE SAARTJIE?
Foi extremamente importante que os restos mortais de Saartjie tenham regressado à África do Sul porque todos têm direito a um funeral. Na África do Sul existe agora uma organização chamada Saartjie, que ajuda mulheres vítimas de abusos. Por motivos óbvios ela tornou-se um símbolo. Ela é finalmente considerada uma pessoa por direito próprio. O filme transporta uma mensagem simples mas universal que todos temos de aprender com os outros. E, para conseguirmos isto, temos de aprender a respeitar aquilo que é diferente, quer sejam diferenças físicas, culturais ou linguísticas. Ser humano tem tudo a ver com isso.
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por Philippe Paumier





Realização: Abdellatif Kechiche
Argumento: Abdellatif Kechiche
Direcção de Fotografia: Lubomir Bakchev e Sofia El Fani
Montagem: Camille Toubkis, Ghalya Lacroix, Laurent Rouan e Albertine Lastera
Música Original: Slaheddine Kechiche
Interpretação: Yahima Torres, Andre Jacobs, Olivier Gourmet, Elina Löwensohn, François Marthouret,
Michel Gionti, Jean-Christophe Bouvet
Origem: França/Bélgica
Ano: 2010
Duração: 159’
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«NOITE ESCURA, a apoteose de João Canijo». Afira por si. 4ªf, Sede, 21h30. Entrada livre.

NOTA DE INTENÇÕES

No mundo longínquo dos subúrbios e da província portuguesa há um submundo escondido, sórdido e violento: a vida da noite, do alterne, da prostituição e do tráfico. De todo o tipo de tráfico.

Um mundo escondido onde a vida não tem preço e onde tudo se vende.

Mas um mundo onde os afectos e o amor continuam a resistir no meio da sordidez extrema e onde a redenção e a esperança ainda são possíveis.

É assim que uma peça de Eurípides, Ifigénia em Aulis, a história da desgraça de uma família provocada pelo erro de um pai, se transforma na tragédia de uma família portuguesa mergulhada no mundo dos bares de alterne, perdida na vida da noite, no meio da província, no meio de nada...

João Canijo




Com NOITE ESCURA, João Canijo realizou um filme poderoso, uma viagem formal e dramaticamente alucinante ao submundo português, evitando o seu perigo maior: o voyeurismo que caracteriza a imagem televisiva da prostituição e do universo que se move à sua volta. O filme é notável porque João Canijo percebe, rapidamente, como é solitário o caminho que tem para fazer, implicando, ainda por cima, um vocabulário muito pouco comum em filmes com limitados recursos de produção. Falo da extrema proximidade da câmara com os actores, do envolvimento corporal que o filme desenha desde o seu início e que nos impede qualquer recuo, qualquer tipo de julgamento "universal", abrindo-nos, decerto, um mundo (nunca típico mas, para muitos, fantasmático), mas encontrando, bem no seu centro, sentimentos e dramas completamente inteligíveis, porque falam a língua sentimental de todos nós, exactamente com a mesma pronúncia, as mesmas perdas irremediáveis e os mesmos dolorosos silêncios.

Noite Escura é, pois, um filme genuíno, que não sai de nenhum outro sítio (nem sequer da filmografia anterior do realizador), senão da casa de alterne que Canijo encena. É um filme estóico, porque nada nele parece preconcebido, tudo acontecendo em função dos compromissos que a câmara estabelece em cada momento preciso, com a movimentação, a gestualidade e a emoção dos actores. Num espaço em que nenhuma distância é possível (o filme começa logo, muito perto), o fio de coerência é o da própria (e irrepetível) percepção que a câmara, a luz e a montagem vão construindo à nossa frente. Revelando-nos um cinema em carne viva - que, nos últimos tempos, talvez só tenha paralelo no belíssimo Rosetta, dos irmãos Dardenne -, Noite Escura vibra com tudo o que lhe dão e, muito em particular, com o que lhe dá Beatriz Batarda, uma actriz em total acto de entrega, que compõe, na sua Carla, uma figura arrebatadora, e coloca o mundo de Noite Escura a pairar numa altura mítica, nessa tocante meia-distância em que os gregos gostavam de medir o (pouco) que os separava dos deuses.

Ignoro se Noite Escura vai ter a vê-lo todas as pessoas que a sua generosidade merece e convoca. Num país normal, habitado por gente com uma relação saudável e curiosa com o mundo em que vive e com as variadas formas da sua expressão, Noite Escura seria provavelmente aquilo que os comerciantes chamam de "sucesso". Em Portugal, porém, há muito que os distribuidores puseram o cinema a falar exclusivamente em inglês, a reciclar, permanentemente, o caruncho das mesmas historietas representadas pelos mesmos actores e servidas pela mesmíssima "eficácia" técnica e as mesmas formas (rascas) de promoção. Num mundo assim (um "mundo do mesmo", a cuja caracterização voltaremos), este filme trava uma batalha desigual: tem actores maravilhosos, mas que falam português (e um pouco de russo), tem a autenticidade do salto inesperado e "sem rede", mas não se lhe reconhece as repetições de formatos e convenções, oferece-se como um objecto original e generoso mas não se impinge com os cromos visuais do costume. E um filme em que o cinema se inventa (como em Kiarostami, por exemplo), por pura necessidade moral; é, por isso, um gesto grande e simples, que nos devia tocar e iluminar a todos.
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João Mário Grilo, Visão, 28 de Outubro de 2004


É inegável a coerência do caminho trilhado por João Canijo desde que, em 1998, "Sapatos Pretos" deu início à "segunda fase" de uma obra até então mantida num interregno de oito anos depois dos dois primeiros filmes ("Três Menos Eu", de 1988, e "Filha da Mãe", de 1990). Mais: não só a coerência se aclara - e com "Noite Escura", depois de "Ganhar a Vida" e "Sapatos Pretos", ela está à vista -, como Canijo vai apurando o que quer dizer e mostrar, e a maneira de o fazer. É o melhor filme que Canijo já fez e, para já, a mais concentrada e eficaz exposição daquilo que subjaz (estilística e tematicamente) a esta "segunda fase", do que lhe define a coerência e permite que se aplique essa expressão, "segunda fase".

Simplificando: se desde "Sapatos Pretos" o cinema de Canijo procura algo de muito específico, "Noite Escura" é o ponto em que mais perto ele fica de a encontrar.

Também simplificadamente, dir-se-ia que essa "coisa de muito específico" se pretende com a vontade de chegar a um retrato do "Portugal profundo", rural, interior, "inestético", filmado "in loco" ou a partir das suas emanações. Mas há algo mais. Não apenas chegar ao retrato, mas partir dele; e partir dele usando-o como matéria para um desenho narrativo que o transcende.

Canijo construiu o argumento com base numa tragédia de Eurípedes. Linha narrativa do filme: um pai (Fernando Luís), dono de uma casa de alterne, combinou vender a filha mais nova (Cleia Almeida) como prostituta a um grupo de mafiosos russos para saldar as dívidas e a vida; mas na noite em que a transacção se vai consumar os acontecimentos precipitam-se, pela acção da filha mais velha (irreconhecível Beatriz Batarda) e da mulher (Rita Blanco, de cabelo oxigenado). Mas o desafio, como é óbvio, não era apenas fazer uma tragédia, era fazer uma tragédia a partir destas personagens e ambientes, preservando a sordidez mas conseguindo arrancar-lhes um recorte que ultrapassa o imediatismo do pressuposto de base: não se trata de encontrar uma galeria de tipos execráveis, mas de lhes encontrar uma profundidade de intérprete de tragédia. Daí que, se este é o ponto em que Canijo mais se aproxima desse objectivo, isso aconteça porque "Noite Escura" talvez seja também o filme em que as personagens mais se encerram dentro da sua tipificação, resistindo a qualquer "decomposição" em termos morais e rechaçando qualquer hipótese de empatia. É como se a linha delimitadora entre o palco e o público estivesse lá cavada: eles vivem uma representação que não precisa nem do espectador nem da sua "simpatia".

O paradoxo disto tudo é que Canijo nunca filmou nada de tão "envolvente". Na verdadeira acepção da palavra: "Noite Escura" é um "filme de décor", impressionante reprodução de uma casa de alterne que, mais uma vez, é outra coisa: um labirinto, artificioso e estilizado, uma "gruta" onde estão encerrados e são jogados uns contra os outros. Não se sai dali porque aquela casa é o último degrau antes do abismo - e os que saiem saiem para se afundar. Cheira a morte desde o princípio: a reconstituição da casa de alterne é "realista", pelo menos no sentido em que é convincente, mas a sua função é totalmente artificiosa, e é se calhar a personagem mais "viva" e dominadora de todas.

Para esta envolvência e para este domínio do espaço da casa é fundamental o trabalho de câmara e, sobretudo, o do som: é pela circulação dos diálogos, pela sobreposição do que dizem as personagens na sala ao lado e do que dizem as que estão em grande plano que se sugere a "obscenidade" do espaço, como se esta fosse condensada num "rumor" que se abate sobre todos, e que prende todos uns aos outros - é um som "viscoso". Mas o visco é o principal ingrediente do filme.
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Luís Miguel Oliveira, Y - Público, 22 de Outubro de 2004


INCLUI DECLARAÇÕES DO REALIZADOR
Visitados mais de 80 estabelecimentos, num périplo do Minho ao Algarve, pagas centenas de garrafas de champanhe a profissionais (o necessário para suspender o tempo e comprar a disponibilidade de quem tinha histórias para contar) João Canijo pode hoje apresentar, com alguma segurança, uma estatística: "Portugal é o país da Europa com mais casas de alterne por metro quadrado." A esta conclusão chegou ao fim de dois anos de - isso mesmo - pesquisa.
"Não sei porque é que é assim. Talvez seja pela falta de ligação ao real. É um mundo de fingimento. Os homens deixam-se levar. Pelo fingimento e pela ingenuidade. E pelo álcool. É um mundo aliciante. E viciante. As meninas são excelentes profissionais. Conseguem convencer que um tipo é especial e muito sensível. Há essa coisa do fingimento que consegue simular que a relação é genuína. Há pessoas que gastam fortunas", diz, e passa a exemplificar. "Não é extraordinário um cliente gastar 1500 euros numa noite numa casa de alterne. Havia um tipo em Amarante, de 55 anos, bem posto, que a única coisa que fazia era pagar duas garrafas de champanhe a uma menina e passar a noite a dançar como se estivesse nos Alunos de Apolo".

Ao fim de dois anos de pesquisa, Canijo pode apresentar mais do que uma estatística sobre um Portugal profundo. Apresenta um filme, "Noite Escura", que no dia 20 estará em destaque na secção Un Certain Regard de Cannes (a sua segunda participação no festival, depois de "Ganhar a Vida"). Um filme de uma brutalidade imensa, que tem as marcas de momento de exaltação no trabalho do cineasta.

Nesta "Noite Escura", se se escutar bem, aquela história do homem de Amarante, das duas garrafas de champanhe e da dança, é uma das muitas, todas verdadeiras, que servem de coro - em redor, sobrepostas, à margem... - à narrativa principal, sobre uma família do negócio de alterne, pai, mãe e filhas. (Abra-se um parêntesis: todas as histórias deste mundo já foram contadas pelos clássicos, acredita Canijo; o que pode acontecer hoje é ouvirmos rumores delas, reflexos, reencarnações, ou encontrarmos ao dobrar de cada "fait divers" o que já foi imortalizado há muito, muito tempo na tragédia grega). Para resumir "Noite Escura": sobre Rita Blanco (mãe e patroa do estabelecimento), Fernando Luís (pai) e Beatriz Batarda (filha mais velha), algures na província portuguesa, abatem-se as forças do destino e da destruição, quando o pai, por que um negócio lhe correu mal, se vê obrigado a sacrificar a filha mais nova (Cleia Almeida), vendendo-a à prostituição em Espanha.


"É a tragédia humana, universal, e é o mundo sórdido português", diz o realizador, "que às vezes é engraçado, que às vezes é melancólico - ao meu argumentista [Pierre Hodgson] chocou precisamente a nostalgia, a melancolia". Não há gritos, as vozes não revelam emoção quando atiram a palavra "matar", ninguém se exalta quando os cadáveres aparecem (começa tudo com um cadáver) no cenário único em que decorre, como em tempo real, a acção. A expressão de Canijo é eloquente: "Quis afogar a tragédia. Quis tornar a tragédia absolutamente indiferente no meio das vidas de uma casa de alterne. Onde é que hoje a tragédia e os sentimentos da tragédia podem ser tão indiferentes se não num mundo de mentira, de representação permanente que é o mundo do alterne?"

Para perceber melhor o "tour de force", antecipe-se a experiência: é como se houvesse dois filmes em permanência, um a contar a história principal, a que tem visibilidade na imagem; e outro, como que sobreposto, a correr na banda sonora como rumor constante - diálogos e diálogos em "off", o tempo todo -, onde a voz é o "lugar" e a identificação de figuras secundárias, onde se multiplicam outras histórias ("todas verdadeiras", assegura Canijo, escritas com a ajuda de quem passou pelas experiências). Ou seja, uma ficção com documentário em fundo. Através do som, o espaço (na realidade, uma discoteca de Alcochete que nunca chegou a abrir e que foi decorada como casa de alterne) ganha espessura física, como um labirinto que se materializa na nossa imaginação. Agudiza-se a experiência do tempo, que se dilata, como se esta noite única fosse a eternidade de um grupo de personagens, a prisão de uma família.
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Vasco Câmara, Público, 16 de Maio de 2004

Este "tour de force" também é o que é porque Canijo teve estes actores. E é preciso começar por descodificar uma sensação estranha: quando vemos as personagens, parece que tudo já se decidiu em relação a elas, e o filme é apenas a antecâmara de um desfecho; quando vemos os actores, Fernando Luís, Rita Blanco, Beatriz Batarda, parece que eles ali chegaram transfigurados por uma experiência irreversível. O que é que aconteceu?

Não é só impressão, conta Canijo. Todos eles mergulharam na vida do alterne, para fazerem o seu trabalho de casa. Batarda algures no Porto, Rita Blanco na zona de Aveiro, Fernando Luís algures. "É uma questão de trabalho e de profissionalismo", diz o realizador. "Não se pode fazer um filme sobre o mundo da noite sem o conhecer. Se passei dois anos a tentar conhecer esse mundo, os meus actores podiam passar uma semana a investigá-lo", remata.


E passa em revista o material que teve em mãos: "A Beatriz é uma actriz do Método, é a escola inglesa. Felizmente para ela, não é uma actriz portuguesa. Muitas ideias para a personagem vieram dela, como o facto de ela usar aparelho nos dentes" (é também por esse aparelho que demora até percebermos que aquela mulher é Beatriz Batarda). "Faz as coisas metodicamente, toma apontamentos de tudo. Já a Rita, que esteve a estagiar junto de uma patroa, absorve sem pensar nas coisas. Deixa-se fazer. Tem generosidade, talento. O Fernando Luís é dos poucos actores-homens, portugueses, com disponibilidade. E depois, todos eles foram ler os clássicos. É tudo uma questão de trabalho. E de profissionalismo".

E remata: "As casas de alterne são assim. Parece uma verdadeira família. E parece que todos estiveram sempre ali. Sempre. E para sempre."



REALIZAÇÃO
João Canijo
ARGUMENTO E DIÁLOGOS
João Canijo / Pierre Hodgson com Mayanne Von Ledebu
FOTOGRAFIA
Mário Castanheira
SOM
Philippe Morel
DECORAÇÃO E GUARDA-ROUPA
Zé Branco
MONTAGEM
João Braz / Jackie Bastide
MÚSICA
Alexandre Soares
PRODUZIDO POR
Paulo Branco
INTERPRETAÇÃO
Beatriz Batarda
Rita Blanco
Fernando Luís
Cleia Almeida
José Raposo
Dmitry Bogomolov
João Reis
Anna Belozorovich
Rámon Martinez
Anabela Moreira
Jinie Rainho
Nadina Lopes
Susana Moreira António Ferreira
Ana Luísa Leão
Helena Alves
Lara Carvalho
Márcia De Oliveira Silva
ORIGEM
Portugal / França, 2004
DURAÇÃO
100'
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Durante o Fim: A leveza do ferro de Rui Chafes iluminada por João Trabulo. 2ªf, IPJ, 21h30.

Neste documentário, o realizador João Trabulo ("LH - Saber Ver, Demora", "Sombras, um Filme Sonâmbulo", "Sem Companhia") segue Rui Chafes nas suas actividades de escultor, desde a idealização até à concepção dos seus trabalhos, mostrando ao espectador o indivíduo que existe para lá do artista plástico, considerado um dos mais importantes da actualidade.

O filme é uma viagem ao universo artístico, interior e secreto do escultor Rui Chafes. No atelier, território de eleição do artista, percebe-se como tudo acontece: do barulho das máquinas ao silêncio que envolve a concepção e idealização de cada escultura, surgem sons, imagens e vozes de outros tempos.







CRÍTICAS
Vários anos depois (é um filme com data de 2003), e já com um carreira feita nos circuitos alternativos, estreia-se em sala "Durante o Fim", filme de João Trabulo centrado na obra, na figura e no universo de Rui Chafes. Apesar dos oito anos transcorridos desde a sua feitura não se tem perante ele nenhuma sensação de atraso ou de "perda de validade" - o que se calhar já é dizer alguma coisa sobre o filme.

Que é bastante inteligente na maneira de encarar o trabalho de Chafes (até pelo modo como o filma) sem nunca forçar uma "explicação", uma "interpretação" ou qualquer coisa peremptória desse género, remetendo-se para a contemplação e para uma série de "pistas" que vêm mais envolver (envolver o filme, envolver as peças de Chafes) do que "decifrar" seja o que for. Nesse sentido, é um filme que trabalha sobretudo a criação de um ambiente (quase em termos musicais), um ambiente construído com elementos que podem parecer imediatamente mais próximos ou mais remotos do universo de Chafes mas que acabam por encontrá-lo sem margem para dúvidas.

Enquanto a câmara percorre - em travellings ou em planos fixos - as esculturas do artista, a banda de som convoca excertos de diálogos de dois filmes ("Heinrich", de Helma Sanders-Brahms, sobre Kleist, e o "Andrei Roubliov" de Tarkovski). Será fácil compreender, através do filme, porque é que esses filmes, e os mundos que eles transportam, são convocados, mas antes da compreensão é importante o mundo "terminal" (o mundo "durante o fim") que a sua presença vai criando - e nesse mundo, tudo o que é da ordem da arte e da matéria de Chafes ganha um sentido próprio. Pode-se argumentar que há planos a mais, sobretudo na parte final, que abrem para um simbolismo que parece demasiado etéreo para a solidez metálica das peças de Chafes, e criam uma impressão de afectação que o filme conseguira até então evitar. Não impede que "Durante o Fim" seja um filme onde se vê Chafes e, ao mesmo tempo, um olhar autónomo sobre ele.
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Luís Miguel Oliveira, Público


Durante o Fim, de João Trabulo, pode ser visto, antes de mais, como um prolongamento da obra de Rui Chafes ou algo que a complementa de forma relativamente eficaz. Serve de veículo entre o trabalho de escultor e um público. A arte como intermédio da própria arte. Não é que o trabalho artístico precise de legendas, mas este aconchegamento fílmico torna-nos mais próximos da sua beleza e eventualmente da sua essência. Do escultor e do seu discurso. Há um entendimento latente entre João Trabulo e Rui Chafes. Mas o jogo não se dá ao mesmo nível. O filme não foi uma encomenda, mas antes uma opção do cineasta que quis ir ao encontro do que admirava, porventura na tentativa de encontra pistas para o desvendar. Há assim uma nobre posição de humildade do realizador, que se submete por respeito ao universo do escultor, recusando, à partida, qualquer espécie de protagonismo ou toque de personalidade que não sirva o propósito máximo de mostrar Rui Chafes. De certa forma, este não é apenas um filme sobre Rui Chafes, mas um filme do próprio Rui Chafes.

Contudo, conhecendo a ainda curta obra de João Trabulo, apercebemo-nos de que há aqui uma coincidência formal, que não será certamente por acaso. Ou seja, este fascínio por Rui Chafes conjuga-se na personalidade fílmica do próprio Trabulo. Percebe-se bem as semelhanças, o estilo desenhado, sempre sóbrio e contemplativo, se revermos, por exemplo, Sombras - Um Filme Sonâmbulo, que fez a partir de Teixeira de Pascoaes. Mas mesmo em relação a Sem Companhia, que talvez seja a sua melhor obra enquanto realizador, tem pelo menos em comum essa sobriedade e a opção por planos fixos. Só que se em Sem Companhia a solução vinha do constrangimento espacial, em é uma opção estética clara.

O universo de Rui Chafes, a sua relação com a natureza, não evocam curiosamente a portuguesa saudade, mas antes uma melancolia típica dos climas do centro da Europa. Daí se encaixe neste mundo outros filmes, de que Trabulo se socorre para pintar o seu, do romantismo alemão e de Tarkovski. As obras estão lá por uma afinidade estética, mas também por uma necessidade complementar de entender a escultura de Chafes a partir das suas raízes mais ocultas.

Tudo isto nos conduz ao encontro com o escultor e as suas palavras que de alguma forma o explicam. "O artista tem a missão de transportar a palavra, ou a chama, ou como lhe quiserem chamar.... transportar isso intacto e transmitir a outras pessoas", assim se define Rui Chafes no filme. E diz mais: "O artista, com a sua consciência especial do mundo, vê as coisas antes dos outros e oferece-as", com dotes promontórios. Contudo afirma: "Acho que a arte não é para o futuro, é para o passado; não é para os vivos, é para os mortos, como diz Genet, para o imenso povo dos mortos".

João Trabulo seguiu Rui Chafes durante três anos para nos oferecer uma obra contemplativa, que tenta mostrar a arte pelo lado interior, fazendo muito mais do que descrever descrever o seu método de trabalho ou procurar leituras rápidas. Durante o Fim abre-nos os olhos para a escultura de Rui Chafes.
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Manuel Halpern, Visão


Há pelo menos duas maneiras de fazer um documentário sobre um artista. Uma, de carácter apologético, consiste em mostrar exaustivamente a obra nas suas diferentes fases criativas, rodeando-a de depoimentos de críticos e de especialistas para melhor a legitimar e juntando uma dimensão biográfica, tanto mais útil se esta tiver uma tonalidade heroica. A outra prescinde de quase tudo isto e vai direta à iluminação da própria visão do artista, usando o discurso na primeira pessoa e convocando tudo aquilo (e só aquilo) que ajude a clarificar esse seu universo.
João Trabulo, que, entre outros trabalhos, realizou já documentários sobre Fernando Lanhas e Teixeira de Pascoaes, opta, e bem, neste filme de 2004 - "Durante o Fim", que, por motivos associados à produção e à distribuição, só agora é estreado -, pela segunda possibilidade ao aproximar-se do escultor Rui Chafes.

Aprecie-se ou não a obra que este criador vem construindo desde que, ainda nos anos 80, começou a expor, uma coisa é certa: é notório que, como poucos, se trata de um artista que joga de acordo com as suas próprias regras. Isso deve-se menos à teimosia e coerência de um programa do que à existência de uma visão artística tão consolidada ou imanente que nunca se perde ou desvia para servir modas ou tendências conjunturais. Porém, como mostra a brilhante exposição, em colaboração com Orla Barry, que está neste momento no Museu Berardo (ou a intervenção que realizou com Vera Mantero para a Bienal de Veneza de 2004), essa visão está longe de ser ensimesmada e pode abrir-se a diálogos artísticos frutuosos.

Trabalhando o ferro, Chafes revela presenças inquietantes em espaços que as prolongam ou reverberam, que ora nos transportam para zonas de leveza ora irrompem como instrumentos de uma violência que parece vir do fundo dos tempos.

Desde logo, o filme de Trabulo trata de transportar para o cinema essa experiência do tempo: o tempo do trabalho no ateliê, um tempo do olhar e do estar e da circulação pelos lugares amados ou escolhidos como referenciais pelo artista, mas também a relatividade do tempo artístico, na exata medida em que as afinidades eletivas de Chafes nada têm que ver com proximidades geracionais.

A dado momento, o escultor diz: "A arte não é para os vivos, mas para os mortos, para o imenso povo dos mortos', e esta, que parece a mais reacionária das afirmações, é apenas a constatação de que os artistas se medem sempre com a arte que os antecedeu e perante ela se posicionam, ao mesmo tempo que a existência na contemporaneidade não significa nenhum consolo mas a simples confirmação de que alguns artistas partilham o mesmo espaço e tempo históricos e que, em muitos casos, só isso os aproxima .

Essa descontinuidade entre o tempo da arte e o tempo histórico anuncia-se em "Durante o Fim" a cada momento, mas no filme também ficamos a conhecer a família cultural e estética do escultor. A influência do romantismo alemão, que durante muito tempo monopolizou o lugar-comum da sua receção crítica, o cineasta Andrei Tarkovski e Arseni, o seu pai poeta, o escritor Heinrich von Kleist e, especialmente, o escultor medieval Tilman Riemenschneider são alguns dos pontos cardeais desse território. A convergência com estes nomes deve ser entendida sobretudo como uma genealogia espiritual e um conjunto de referências éticas e não como influências formais, que não são de todo verificáveis no trabalho de Chafes.

Como pelas palavras e pelas imagens o filme de João Trabulo deixa entrever, a escultura de Rui Chafes permanece perfeitamente aurática e ancorada num princípio de transcendência que recusa radicalmente a banalização do artístico ou a sua dissolução no campo mais alargado das 'imagens'. Essa ideia de que a criação pertence ao domínio da exceção é nele sempre mais bem confirmada e libertada de equívocos pelas próprias obras. Nessa medida, o filme é ainda uma oportunidade para ver algumas das suas esculturas permanentes realizadas fora do país e para perceber como Rui Chafes é um daqueles casos em que a obra é verdadeiramente irredutível ao discurso sobre ela.
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Celso Martins, Expresso



INCLUI DECLARAÇÕES DO REALIZADOR
Por trás de "Durante o Fim", existe a longa amizade entre o seu realizador, João Trabulo ("Sombras - Um Filme Sonâmbulo", 2007; "Sem Companhia", 2010), e o escultor Rui Chafes. "Rui Chafes é uma pessoa muito discreta", diz-nos Trabulo, "e percebi que teria de pegar nele, enquanto artista com uma visão do mundo, para fazer dele uma personagem no meio de outras imagens e vozes." Segundo o realizador, "Durante o Fim" "é um filme que coloca Rui Chafes num mundo paralelo que não tem nada a ver com o actual, transformanndo-o numa personagem de ficção, um certo cavaleiro." Este é o caminho por onde nos leva "Durante o Fim": não como observadores do método de um artista, mas fazendo-nos mergulhar na recriação do seu imaginário, juntando momentos de trabalho do escultor, a inimitável presença da sua arte em cenários naturais. É a realização do mundo de um artista em cinema.

O filme, terminado em 2003 mas apenas agora estreado, é o resultado de um processo comum de dois criadores. "O filme foi feito por etapas ao longo de três anos", diz-nos Trabulo. "Rui Chafes apresentou-me uma lista sobre aquilo que o filme não deveria ser: um documentário sobre ele sentado em casa, a falar. Começámos a organizar o esquema de trabalho de forma intuitiva: começaram a surgir referências ao romantismo alemão, a Andrei Tarkovski ou Robert Bresson", elementos do universo sensorial de várias áreas artísticas que se concentram na escultura de Chafes. "É um artista completo, como na Renascença", diz-nos o realizador. "O seu trabalho escultórico está enraizado na pintura, na literatura, no cinema ou na história da arte. E quando esta aventura se definiu, tudo se tornou possível."

É o misterioso mundo de Chafes, evocado pela sua arte, que aqui se desvenda: românticos caminhos em florestas adornados pela presença da sua escultura, o artista a trabalhar e vendo a sua escultura enquadrada pela lente, ou como espectador, numa sala de cinema, a ver "Heinrich" , de Helma Sanders-Brahams (1977): a vida de Heinrich von Kleist, no seu calmo e apaixonado caminho até à morte (Kleist suicida-se com a sua amada, em 1811, depois de caminharem juntos até a um dos lagos Wannsee, na Alemanha).

No movimento do filme, encontra-se a sensibilidade comum entre dois criadores que defendem o tempo para encontrar o caminho das imagens. "Rui Chafes contribuiu muito para a minha formação artística: trabalha sozinho no seu atelier, com materiais pesados e difíceis", diz-nos o realizador. "Mas mantém uma finura de espírito no que faz, interesssou-me estar com ele no atelier. Tenho usado o seu método em filmes recentes: o tempo é o nosso único amigo, preciso dele para reflectir ou até errar para que tudo se clarifique." Trabulo inclui a referência próxima de Tarkovski, nomeadamente "Andrei Rublev" (1966), obra inspirada no artista medieval russo. "A peça que Rui Chafes está a desenvolver é inspirada no balão que sobe no início desse filme. Ao mesmo tempo, revela a consciência da tortura que um artista, como Rublev sentia sobre a sua arte, o seu significado e reconhecimento."


Um caminho até à vida
Se a arte de Rui Chafes e as inspirações recriadas no cinema de Trabulo vão ao encontro, por um lado, da sombria e misteriosa ideia da morte é na iluminação do nosso encontro com a sua presença que reconhecemos, por outro, o desejo de vida que inspira a sua criação. "A consciência da morte para Rui Chafes, como para mim, é aquilo que nos mantém acordados", diz Trabulo. "A dada altura, ficamos um apontamento na história da humanidade. Ele tem isso muito presente, sente que o trabalho que executa vem de um passado, mas tenta projectá-lo no futuro. E fá-lo de forma muito serena." A narrativa de "Durante o Fim" é também acompanhada pela voz do artista, que expressa os sentimentos que rodeiam o seu trabalho. O realizador diz-nos que Chafes "escreve muito, e quando trabalha no seu atelier dá a sensação que o faz com vozes do passado, como o imenso 'povo dos mortos' de Genet, que o atormenta ou guia. No filme, tanto Kleist como Rublev aparecem como fantasmas que vigiam o seu trabalho."

E o encontro de passeantes com a arte de Rui Chafes, tal como aqueles que atravessam a floresta no filme e se deparam com a serenidade das suas esculturas, não estará distante do encanto que os espectadores sentem na descoberta de um plano, em cinema, que lhes revela os seus próprios sentidos. Chafes sublinha, em "Durante o Fim", a importância dessse encontro das pessoas com o seu trabalho. "Há um lado de encantamento que está presente na obra dele. E no bom cinema isso também acontece", diz Trabulo. E se é neste que se reúne a temporalidade da vida para a reproduzir, pela arte, numa forma intemporal, o final de "Durante o Fim", o misterioso momento com um "home movie" de Chafes, mostra-nos que, para além de todo o esforço, nenhum de nós se encontra sozinho. "Ao longo do filme", diz-nos Trabulo, "fala-se da morte, da criação e da tortura desta. Mas o seu final fecha-se por um momento muito simples: uma celebração da vida."
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Francisco Valente, Ípsilon

FESTIVAIS E PRÉMIOS
2006 The European Union Countries Documentaries Panorama, Rússia
2005 Museum Folkwang, Essen, Alemanha
2004 Kunsthallen Nikolaj, Copenhagen, Dinamarca
2004 Festival do Rio de Janeiro, Brasil
2004 New York Independent Film Festival, Nova Iorque, EUA
2004 Festival International du Film sur L’Art, Montreal, Canadá
2003 Esbjerg Kunstmuseum, Esbjerg, Dinamarca
2003 XII Festival Luso-Brasileiro de Sta. Maria da Feira – Prémio Revelação
2003 Selecção Oficial Festival Internacional de Turim – Itália



Realizador: João Trabulo
Elenco: Markus Ambach, Orla Barry, Rui Chafes
Director de Fotografia: Miguel Carvalho
Montagem: Patrícia Saramago
Som: Philippe Morel
Origem: Portugal
Ano: 2003
Duração: 70'
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Durante o Fim antecipa e inaugura o

Ciclo
Cinema e Belas-Artes ao fim da tarde

Museu Municipal, Sábados, 18h30

Outubro

Dia 1
Joana Vasconcelos, de Joana Cunha Ferreira, 2008, 52'

Dia 8
Pedro Calapez, de Luís Miguel Correia, 2009, 48'

Dia 15
Helena Almeida, de Joana Ascensão, 2006, 50'

Dia 22
Lourdes Castro, de Catarina Mourão, 2009, 70'

Dia 29
Bartolomeu Cid dos Santos, de Jorge Silva Melo, 2009, 61'

Novembro

Dia 5
António Sena, de Jorge Silva Melo, 2009, 59'

Dia 12
Ângelo Sousa, de Jorge Silva Melo, 2010, 60'

Dia 19
Ana Vieira, de Jorge Silva Melo, 2011, 56'

Dia 26
Nikias Skapinakis, de Jorge Silva Melo, 2008, 78'

Apoio
Câmara Municipal de Faro

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RE/CONHECER JOÃO CANIJO - começa 4ªf, na sede. entrada livre. 21h30.

(lotação - 25 lugares)


Sob pretexto da ansiada estreia de Sangue do Meu Sangue (5 de Outubro, contamos dá-lo em Novembro), retrospectiva completa da obra ficcional de longa-metragem de um dos nossos mais interessantes e seguros realizadores. Canijo exprime a coerência de um artista que sabe bem o que quer – falar de nós, para que ganhemos a vida.

Optámos por iniciar com o último, regredindo até ao primeiro, o que é uma forma mais inusual de abordar a obra de um realizador, mas não menos esclarecedora.



SETEMBRO


DIA 21
MAL NASCIDA, 2007, 117’

DIA 28
NOITE ESCURA, 2004, 94’

OUTUBRO

DIA 5
GANHAR A VIDA, 2001, 115’

DIA 12
SAPATOS PRETOS, 1998, 97’

DIA 19
FILHA DA MÃE, 1990, 105’

DIA 26
TRÊS MENOS EU, 1988, 90’


SOBRE MAL NASCIDA


NOTA DE INTENÇÕES

«A grosseria resulta do esforço e da impossibilidade de dar forma a um fundo visceral sem forma.» «O pior na grosseria, não é a ruína da forma, mas a arrogância em julgar-se forma: violência característica do burgesso.» José Gil

«Portugal é um país de brandos costumes.» Afirmação falsa, porque não há nada de brando nos costumes da província profunda dos crimes mesquinhos. Nesse mundo distante e dissimulado reina o sórdido e a violência boçal. E é nesse mundo escondido de violência e situações limite que é revisitado o mito de Electra, o confronto de uma filha com a mãe que foi incapaz de a amar.

Uma mãe que dá a vida devia dar ao mesmo tempo o amor incondicional, uma mãe devia dar a ilusão do amor absoluto. Se é a mãe a trair a confiança no amor o ressentimento torna-se desmedido, só resta o rancor que cresce na espera da vingança, o rancor e o desejo de vingança tornam-se necessidades de sobrevivência.

João Canijo

NOTÍCIA

A longa-metragem «Mal Nascida», com o qual o realizador João Canijo volta a mergulhar no Portugal interior e agreste, de costumes nada brandos, é uma versão de Electra e integra uma trilogia cinematográfica por ora incompleta.

«Mal Nascida», que conta no elenco com Anabela Moreira, Gonçalo Waddington, Márcia Breia, Fernando Luís e Tiago Rodrigues, estreia-se esta quinta-feira, dia 9 de Outubro, após um ano de rodagem e da passagem pelo festival de Veneza.

Aquela que é a sexta longa-metragem de João Canijo, de 50 anos, apresenta-se também como o último filme que fez com produção de Paulo Branco.

A história revisita o mito de Electra, com Lúcia (Anabela Moreira), que cumpre um luto eterno pelo assassínio do pai, a confrontar-se com a mãe e o padrasto até a morte, auxiliada por um irmão que regressa a casa ao fim de muitos anos de afastamento.

«Mal nascida» é o terceiro filme de uma trilogia sobre mundos paralelos iniciada em 2003 com «Noite escura», que João Canijo idealizou com base na tragédia grega e com Electra no centro das histórias.

O segundo filme, intitulado «Piedade», está ainda no papel, porque «não havia condições de produção por ser muito caro e ter muitos actores», disse o realizador.

Próximo filme: amor incondicional nos subúrbios de Lisboa, «Sangue do Meu Sangue». A história é passada num bairro social dos subúrbios da Amadora, com uma «família tipicamente suburbana, como é oitenta por cento da população mundial». «Sangue do meu sangue» vai ter a produção de Pedro Borges, da Midas Filmes, e conta com Rita Blanco, Anabela Moreira, Marcello Urgheghe e Francisco Tavares nos principais papéis.

CRÍTICA

João Canijo é um caso raro no cinema português. Um cineasta que sabe criar ambiências (pesadas, claustrofóbicas e desoladoramente reais) através de um complexo jogo de montagem entre: a câmara, que desliza em sucessivos travellings; o som, trabalhado em várias camadas (os diálogos entre os protagonistas, as conversas do café, o barulho do exterior e aquele infernal ruído da televisão); e os actores, que submergem totalmente nas suas dificílimas personagens (estão todos assombrosos, mas o destaque tem de ir para a menos conhecida Anabela Moreira).

O realismo desta sufocante obra não sai minimamente turvado pela incorporação de elementos da tragédia clássica (mais concretamente, do mito de Electra): Canijo não teatraliza o cinema, pelo contrário, põe a linguagem teatral ao serviço da Sétima Arte. Com efeito, a "coreografia dos corpos" em "Mal Nascida" acontece como que num "palco fictício", onde o olhar do espectador é omnisciente. E para tal é decisiva a forma como Canijo filma, enquadrando habitualmente três personagens por plano e cosendo cada plano a outro, numa dinâmica de continuidade que sublinha os "tempos do teatro" e, como corolário, se aproxima dos "tempos da vida".

Apesar de sentirmos "Mal Nascida" como coisa tirada em bruto da terra, que é pulsante e tem cheiro, este é um trabalho magistral de mise en scène: por exemplo, as divisões da casa ou meros postes de electricidade servem, muitas vezes, para enquadrar ou dividir as imagens e o posicionamento dos "corpos", sugerindo metaforicamente a própria divisão dentro da família. Também a fotografia parece ser meticulosamente trabalhada: com um claro-escuro que faz o contraste entre a vida de aparências que o casal do filme ostenta e a terrível verdade que é personificada por Lúcia, personagem que carrega uma tristeza profunda (o eterno luto pelo pai...) a par com o ódio intenso que sente pela mãe (aquilo que os psicanalistas designaram por "complexo de Electra").

Depois de "Noite Escura" (para nós, o melhor filme de 2004), Canijo volta a provar que é um dos mais engenhosos cineastas portugueses da actualidade, que sabe escolher e dirigir actores como poucos e que filma com uma elegância que só tem rival em nomes como Pedro Costa. "Mal Nascida" é uma viagem duríssima que cabe na lista das mais extremas experiências de cinema deste ano.

Luís Mendonça, cinema2000.pt


ENTREVISTA AO REALIZADOR

Depois de “Noite Escura”, João Canijo volta a focar o interior português em “Mal Nascida”.
Lúcia é uma mal nascida, uma mal amada é a eterna viúva do seu pai. Um grito antes de ser um corpo, enlouquecida, maltratada e humilhada, sobrevive enlutada com a lembrança do crime e da traição da mãe, grita a sua dor inconsolável para não dar descanso nem paz aos assassinos do pai. Vive na esperança desesperada do regresso do irmão para cumprir a promessa de vingar o sangue do pai.

Três anos depois de “Noite Escura”, “Mal Nascida”, desde ontem nas salas, marca o regresso à tela de João Canijo e o regresso à “tragédia” - no sentido mais clássico do termo. Se no filme anterior o realizador adaptava “Ifigénia em Áulis”, de Eurípides, ao universo português, agora versa-se “Electra”: no interior de Portugal, Lúcia (Anabela Moreira) é o epicentro e símbolo da desgraça de uma mãe (Márcia Breia) que, com o amante (Fernando Luís), cometeu um crime no passado quando a família estava emigrada em França.

“Mal Nascida” não faz apenas uma rima com “Noite Escura”: era suposto ser o culminar de uma trilogia que, hoje, Canijo não sabe se vai terminar. Desta feita não se vêem prostitutas: rodado em Codessoso, Trás-os-Montes, os cenários - uma casa e um café - são reais e pouco lhes foi alterado. É o país dos santinhos de gesso e dos naprons por cima da televisão. Dos naprons por cima da tragédia absurda. Possivelmente aquilo nem sequer é “Portugal”. Pode ser um arquétipo de um “Portugal” que vai desaparecendo. Mas também pode ser apenas gente.

Na nota de intenções que escreveu para o filme diz que uma mãe que trai o amor que é suposto dar à filha provoca um ressentimento nesta. E que este ressentimento é uma necessidade de sobrevivência. É isto que enforma a personagem de Lúcia, a filha?
O ressentimento é a razão que ela tem para não se matar. É manter a possibilidade de algo mudar: no futuro haverá uma salvação, que será a vingança alimentada por esse ressentimento permanente. Essa nota de intenções foi escrita em 2006, um ano antes de rodar o filme. Agora acho que o filme é sobre uma pessoa que sente uma total falta de amor, o que talvez não seja verdade, talvez apenas a outra pessoa [a mãe] não seja capaz de o mostrar: em todas as versões da “Electra”, a Electra [filha] é odiosa e a Clitmenestra [mãe] tem momentos de fraqueza, muito mais humanos que a filha. E eu li 14 versões. Há quatro que interessam, a de Sófocles, a de Eurípides, a de Hofmannsthal e a de Yourcenar. Mas em todas elas há um momento em que a Clitmenestra tenta dizer à filha que a ama.

Usar tragédias facilita-lhe o trabalho? Já tem as cenas, as falas…
A tragédia dá imenso jeito, não o nego. Mas o fascínio das tragédias partiu do fascínio pela “Electra”. E já “Filha da Mãe” [1990] era uma adaptação incipiente da “Electra”. Esta suposta trilogia, que começa em “Noite Escura” e acaba em “Mal Nascida” (falta um que não foi feito - nem sei se vai ser feito), foi feita para chegar à “Electra”.

Em ambos há uma recusa em psicologizar as personagens.
A psicologia entra depois. Entra numa parte que não me diz respeito, diz respeito aos actores, na forma como eles elaboram as suas personagens.

Costuma passar umas semanas de leituras com eles antes dos filmes…
Não é de leituras, é à Mike Leigh [realizador britânico, autor de, entre outros, "Nu" ou "Vera Drake", conhecido pelos seus longos "estágios" com os actores antes da rodagem]: elaboração do argumento com eles. Havia uma estrutura prévia, depois houve alterações ao texto. Havia uma pergunta simples que lhes fazia: “Achas que isto está adequado à tua personagem?” Não faz sentido impor a uma pessoa uma interpretação que não seja a dela. A única coisa que a gente pode fazer é usar essa interpretação e manipulá-la. Essa coisa da transformação de um actor numa personagem é mentira, um actor nunca deixa de ser ele próprio.

Em “Ganhar a Vida” há uma cena em que as mulheres estão à conversa, e uma delas diz que fazer broches alimenta e desatam a rir-se - uma naturalidade desarmante. Neste filme os diálogos de Adelaide, a mãe, são quase música. Mais que naturalidade, você tem ouvido para a conversa feminina - o que implica gostar muito de mulheres.
Gosto de mulheres, sim. Ao longo destes anos, as mulheres actrizes sempre me encantaram muito mais que os homens actores. Nunca consegui encontrar um actor que me comovesse tanto como uma actriz. Não sei porquê. Quer dizer, posso teorizar, mas não tenho a certeza.

Mas teorize, vá.
É uma questão de disponibilidade, de capacidade de exposição da fragilidade. É algo de biológico. O homem, com a sua necessidade de manter o território, tem uma incapacidade de mostrar vulnerabilidade. Há um livro curioso, “Almost like a Whale” [Steve Jones, 1999], que é uma reescrita da “Origem das Espécies” à luz dos conhecimentos actuais. Uma das coisas que diz é que biologicamente, em todas as espécies, a fêmea é receptiva e o macho tem duas maneiras de transmitir os genes: uma é pela força, a outra é pela agilidade. O macho é sempre agressivo e a fêmea é sempre passiva - portanto vulnerável. Gosto das mulheres, acho que são mais complexas e mais fortes e que dão personagens mais interessantes - ainda não fiz nenhum filme em que o protagonista fosse um homem.

“Mal Nascida” está cheio de pormenores mínimos e simbólicos do interior. A garrafa de Ricard que já não tem Ricard, foi reutilizada com vinho a martelo. Isso é típico das terras pequenas.
Das terras pequenas e das pessoas que vieram de França. Só reparei nisso ao fazer a prospecção. Percebi porquê: reaproveitamento. E fica mais bonito. Há uma preocupação com a vaidade, mesmo que depois na maneira de vestir e de estar não pareça. Arranjam-se muito para ir à missa.

A casa é sobrecarregada, todas as paredes estão cheias. O aparador da Adelaide (Márcia Breia) está repleto de molduras. Tem é aquela Virgem fluorescente…
Essa acho um bocadinho exagero. Mas a Virgem era tão bonita que não resisti. Foi uma condescendência, ou uma complacência. Hoje não poria, embora o aparador estivesse tão atafulhado quanto o que se vê.

O café é à antiga, mas depois há o balcão em alumínio, tampos de laminado a imitar mármore.
Isso estava tudo lá. É um símbolo, que corresponde à total falta de ligação cultural entre o passado e o presente que o português tem. Isso é notório nas aldeias: não há nenhuma ligação entre o que está construído antes e o que é construído depois.

As pessoas da sua geração [Canijo nasceu em 1957] com aspirações intelectuais eram francófonas, a minha [os nascidos nos anos 70], com ou sem pretensões, é americana. Os “vossos” intelectuais não queriam olhar para o que era 90 por cento do país. “Nós”, que somos democratas e alfabetizados e não separamos alta e baixa cultura, ainda temos vergonha da avó - e a avó ainda é boa parte do país. Não permanece uma incapacidade de reconhecer Portugal, de o viver, de o aceitar?
Absoluta. Curiosamente, este filme, que mostra mais o cliché de Portugal, foi mais compreendido lá fora que os anteriores. Reconheceram aquele mundo. Não reconheceram “Noite Escura”. A ideia de ruralidade pode ser transportada para outras partes, ao passo que “Noite Escura”, suponho, só podia ser reconhecido em Espanha. Os franceses não pescaram nada daquilo.

A nossa estrutura mental vive sob um paradigma que não nos permite olhar para “ali”, porque o avô pode ter vindo “dali”?
Há uma recusa, que foi muito nítida em “Ganhar a Vida” (2001): o não querer ver os emigrantes. Não estava à espera que o filme fizesse tão poucos espectadores: 10.500. “Noite Escura” fez 16 mil. No “Ganhar a Vida” estava à espera que cá, como em França, se interessassem pelo que apesar de tudo era o primeiro filme de ficção feito com os emigrantes em França. Era o nosso primeiro filme da diáspora.

Está a criar um arquétipo do português que não queremos olhar.
Descobri isso no “Sapatos Pretos” (1998). A partir daí é propositado. Quando parti para fazer “Ganhar a Vida”, supunha que ia encontrar uma caricatura. Chego lá e ganho um respeito que não imaginava por aquela gente. Havia uma coisa que sempre estranhei, que era eles falarem melhor francês que português, mas ao falar uma língua que não é a nossa temos que pensar melhor nas palavras, porque elas não nos saem automaticamente, por isso a verbalização do pensamento é mais correcta. Não vermos isto, não olharmos, tem a ver com profunda falta de educação.

Fazer a caricatura dos emigrantes ou dos supostos rurais é fácil. Mas a província do seu filme tem gordura, tem visco. Não serve quem quer ter amor (à distância) ao povo. Não o poupa.
É fácil caricaturar. Difícil é mostrar o horror em que as pessoas vivem e como se tornam horrorosas por viverem naquele horror. Para haver personagens elas têm de ser humanas. Têm de ter complexidade. “Noite Escura”, sendo numa casa de alterne, partiu de uma ideia justa, mas um bocadinho primária: onde é que uma tragédia podia passar mais desapercebida? Num sítio onde se vive da mentira. O segundo filme [da trilogia], o que não foi feito, é uma evidência. Guerra de Tróia no mundo actual: crime organizado. Não há muitas alternativas.

Uma tragédia incestuosa tem de se passar numa terra onde ninguém se vai meter no que acontece noutras casas.
Num sítio muito fechado. Uma aldeia desertificada e rude e brutal como a gente sabe que são as coisas no campo. Onde seja credível uma história tão brutal. Aquela mãe é um bocadinho brutal - mas aquilo aconteceu e aconteceu ainda há pouco tempo numa dessas aldeias. Ali, penso que por estarem lá fechados, é tudo exacerbado.

A violência é diferente da que existe na cidade grande?
A diferença está na morte escondida. Estou a debater-me com isso agora. O meu próximo filme ["Sangue do Meu Sangue"] passa-se num bairro social - não por razões folclóricas, mas sim filosóficas. Porque suponho que a luta pela sobrevivência ocupa tanto tempo a uma família de um bairro social que não têm tempo para elaborar reflexões sobre as emoções. E portanto as reacções às emoções são imediatas, são só reacções. O filme é o contrário da “Electra”, é sobre o amor incondicional de uma mãe por uma filha. Uma mãe que guarda um segredo terrível para salvar a filha. Se a filha não o conhecer, será salva.

Em “Mal Nascida” não há salvação. A Lúcia, que não foi vítima da incestuosidade do pai, ao contrário da irmã, acaba por repetir, com o irmão, os actos do pai.
O que ela faz com o irmão é a única forma de ela ter a certeza que é amada. É uma espécie de pacto. Ela acha que tudo o que o pai fez está certo. Essa parte, dela imitar o acto do pai, nunca tinha pensado. É um impulso. Por sacrifício. Para cumprir um desígnio mais alto. A estrutura mental dela só comporta aquilo. E assim torna-se um eco dos crimes da mãe, torna-se, para a mãe, um pesadelo vivo, permanente.

Mas no fim a Lúcia coloca-se no patamar da mãe, ao repetir o crime dela. Como se a tentasse perceber.
E é o único momento em que elas se encontram, em que há amor entre aquelas duas mulheres. Porque é só aí, quando não há solução, que ela pode aceitar que a mãe gosta dela e a ama. Mas não pode impedir-se de a matar.

João Bonifácio, Público, 10/10/2008




REALIZAÇÃO
João Canijo
ARGUMENTO E DIÁLOGOS
João Canijo
Céline Pouillon
Mayanna von Ledebur
DIRECÇÃO ARTÍSTICA
José Pedro Penha Lopes
MONTAGEM
João Braz
SOM
Olivier Blanc
Ricardo Leal
Gérard Rousseau
MÚSICA
Gabriel Gomes
IMAGEM
Mário Castanheira
INTERPRETAÇÃO
Anabela Moreira - LÚCIA
Márcia Breia - ADELAIDE
Fernando Luís - EVARISTO
Gonçalo Waddington - AUGUSTO
Tiago Rodrigues - JUSMINO
PRODUTOR
Paulo Branco
ORIGEM
Portugal
ANO
2007
DURAÇÃO
117’
.

2ªf, IPJ, 21h30, de Susana Sousa Dias, "48" - «Uma obra-prima». «Absolutamente sublime», «Um filme extraordinário». «Um filme indispensável».

Sócios 2€. Estudantes 3,5€, Restantes 4€

PRÉMIOS
GRAND PRIX 2010 no Cinéma du Réel, França
OPUS BONUM Melhor Documentário Mundial 2010 no Jihlava Festival, República Checa
PRÉMIO FIPRESCI 2010 no DOK Leipzig, Alemanha
PRÉMIO D. QUIJOTE 2010, Caminhos do Cinema Português, Portugal
GRANDE PRÉMIO Cidade de Coimbra, Caminhos do Cinema Português 2010, Portugal

NOTA DA REALIZADORA
Quando, há alguns anos atrás, em resposta a um pedido meu, a direcção do Arquivo da PIDE / DGS recusou a autorização para filmar as fotografias dos presos políticos, eu estava longe de saber que um novo filme iria começar a desenvolver-se. Estávamos em 2003 e eu encontrava-me em plena realização de Natureza Morta. O filme dependia dessas imagens, algumas das quais eu própria já tinha filmado em 2000. Nessa época, registar essas fotografias não requeria qualquer tipo de autorização especial, a não ser a que era dada pelo próprio arquivo. Mas a direcção do arquivo entretanto mudara e com ela a interpretação da lei.

Após insistência, a direcção justificou o motivo da recusa invocando o “direito à imagem”: para filmar as fotografias, eu teria de obter o acordo dos presos políticos. No caso de estes terem entretanto falecido, teria então de obter não só a autorização dos herdeiros, como também de apresentar uma cópia da certidão de óbito. Não vou referir aqui os pormenores do complexo processo que me levou, ao fim de alguns meses, a obter as devidas autorizações. Nem me vou deter nos efeitos perversos que pode provocar a aplicação do “direito à imagem” às fotografias impositivamente captadas pela polícia política de um regime ditatorial que durou 48 anos. Refiro apenas que, em todo este processo, falei com dezenas de antigos presos políticos.

Inevitavelmente, comecei a ouvir as suas histórias, algumas acompanhadas por comentários às próprias imagens de cadastro: “Está a ver a camisola que eu tenho vestida?”; “Sabe por que eu estou com este sorriso?”; “Já reparou no meu cabelo?”.

48 partiu de uma certeza: a de que é possível contar uma história do regime ditatorial português (1926-1974) apenas através destas imagens. Mas partiu também de muitas interrogações. Os rostos fotografados pela PIDE fitam-nos, interpelam-nos, perturbam-nos. Como filmá-los, mantendo a integridade desta interpelação? Que duração atribuir a cada plano para que o espaço de ecos e ressonâncias que cada rosto comporta, possa ter existência? Como se transfigura uma imagem através da duração que lhe é imposta? Quanto tempo aguenta um grande plano em “grande plano”? Qual o equilíbrio entre as palavras e os silêncios para que a imagem não fique inteiramente possuída pelo texto?

E como construir um espaço que mais do que físico é conceptual?

48 procura operar na zona entre o que a fotografia mostra e o que ela não revela; mas também entre a analogia e a estranheza, o enunciado e o vivido, a imagem e a memória. Pois estas fotografias também são tempo: o tempo contido dentro da fracção de segundo em que o preso enfrenta o opositor; o tempo que nos permite entrar dentro do universo enclausurante das prisões políticas e estar dentro do instante onde se cruza o outrora com o agora; um templo múltiplo que extravasa as noções de passado, presente e futuro.

Através de uma linha narrativa que toma como base as acções da polícia política sobre o corpo e a mente dos prisioneiros e de um dispositivo que procura evidenciar a pregnância temporal da imagem, o filme organiza-se através de um conjunto de sequências, cada uma delas comportando um silêncio específico. Estes silêncios não só criam o espaço cinematográfico do filme como nos dão a sentir a própria presença corporal de cada um dos ex-prisioneiros, hoje. Através das suas palavras, o filme procura desvelar as imagens cuja função original - captar os sinais distintivos da fisionomia e servir de instrumento de identificação (mas também de poder) - ainda hoje cria um véu que as impede de serem realmente vistas.

O que nos mostram e escondem estas imagens?

Susana de Sousa Dias



A IDEIA
A ideia surgiu-me quando estava a realizar o meu filme anterior, Natureza Morta (2005), que se baseia em imagens de arquivo da ditadura portuguesa. O ponto de partida deste filme foi precisamente o conjunto de fotografias de cadastro dos prisioneiros políticos. Passei anos a pensar nestas fotografias, tive longas conversas com várias dezenas de ex-prisioneiros; portanto, não só a ideia para o 48 surgiu muito clara na minha mente, como quando passei à prática já tinha um longo percurso dentro da temática. A realização do filme, no entanto, foi bastante complexa e obviamente muito pensada. 48 parte de um dispositivo aparentemente simples mas os mecanismos para o pôr em prática foram extremamente complexos.

O DESAFIO
O filme procura pôr o espectador a pensar no que foram os 48 anos de ditadura em Portugal, mas não só. A prática da tortura continua a existir hoje. Este tema é sempre actual e voltou a ter uma grande relevância após a guerra do Iraque, com a divulgação das fotografias e dos relatórios em que as torturas praticadas são descritas. 48 parte do passado mas procura estabelecer essa ligação com o presente.

A EXPERIÊNCIA
Quando fiz o filme não estive a pensar no apelo emocional. São relatos muito emotivos, é verdade, são experiências muito pessoais e traumáticas, ou seja, é praticamente impossível ficar indiferente ao que se ouve no filme. No entanto, uma coisa é fazer um filme a pensar no eventual apelo emocional, outra, é fazer um filme que procure colocar o espectador a pensar naquilo que acabou de ver e ouvir. Essa foi a minha intenção. Aliás, saiu um texto sobre o filme na revista francesa Images Documentaires, que achei interessante; diz que aquilo que o filme consegue é pôr o espectador a “imaginar o invisível”.

A RELAÇÃO
Eu trabalhei com cada ex-prisioneiro político na sua condição de pessoa, não de vítima. Há sempre uma conjugação de duas vertentes no filme, entre o percurso pessoal e íntimo dos ex-prisioneiros e o contexto político. Mas eu não os considero vítimas, no sentido mais estrito do termo. Obviamente que são vítimas de um regime, mas são simultaneamente resistentes e resistentes activos. Há um testemunho no filme que refere o “poder do prisioneiro”.
Um dos exemplos que dá tem precisamente a ver a imagem de cadastro: não se podia fugir a tirar a fotografia, mas a cara, a expressão que o prisioneiro colocava no momento de captação da imagem, era ele que a decidia. O rosto pode revelar-se assim como o último bastião dessa resistência. Todo o filme se constrói de forma a ir para além da superfície das coisas (das imagens, das palavras), procurando revelar a sua complexidade intrínseca. E isto não se coaduna com estereótipos.

O SILÊNCIO
A ideia do filme é que o espectador veja a imagem e a veja ouvindo única e exclusivamente o testemunho da pessoa que nela figura. Os silêncios dão tempo ao espectador para ir reflectindo sobre aquilo que está a ver e ouvir, dentro do momento do próprio filme. Se colocasse um narrador, estaria a conduzir a leitura do filme através da minha palavra.
Ora, há toda uma outra série de mecanismos que o realizador pode utilizar para construir um filme que não têm de passar obrigatoriamente pela palavra. Nos documentários históricos mais tradicionais é comum termos um narrador que nos conta a história, interpretando-a; um narrador que nos apresenta o passado como sendo um passado completo, fechado, que não admite dúvidas. Nesse tipo de filmes, a imagem aparece como ilustração dessa narração, não é uma imagem autónoma, viva. 48 parte de noções diferentes do que é a história e do que é a imagem.
E procura, sobretudo, criar um espaço de pensamento para o próprio espectador.

O NOME
Um preso político é um indivíduo, mas é um indivíduo que faz parte de um corpo político constituído pelo conjunto de prisioneiros políticos de um determinado regime. As pessoas que eu entrevisto são apenas uma pequena parte das pessoas que sofreram às mãos da ditadura. Elas estão a falar em nome próprio (aliás todas são identificadas no genérico final) mas estão também a falar por todos. A não identificação no momento em que aparecem no filme tem precisamente a ver com isso.

A FORMA JUSTA
O que eu procuro quando faço um filme é que a forma se adeque ao conteúdo. Não vou utilizar modelos correntes, já testados e padronizados. Tenho uma ideia e para a concretizar tenho de encontrar aquilo que eu considero a “forma justa”. Portanto, parto sempre para um trabalho de pesquisa, de reflexão e de experimentação. Daí aquilo que tem sido designado por “estilo invulgar e próprio”. Posso dizer que gostaria que esta fosse de facto a minha assinatura: a procura de novas formas, formas justas de apresentar os assuntos tratados.

Susana Sousa Dias



NOTAS CRÍTICAS

O trabalho em torno das imagens é absolutamente sublime.
Javier Packer-Comyn, Director do Festival Cinéma du Réel in RTP, Portugal

Uma obra-prima (...), um documentário de dispositivo rigoroso e perturbador. (…) A cuidadosa costura destaca a particularidade de cada história ao mesmo tempo que garante ritmo (…). O resultado é (…) hipnótico e inesquecível.
Amir Labaki, Director do Festival “É Tudo Verdade” in Valor Econômico, Brasil

Não se trata apenas da história secreta destas imagens mas também do confronto entre o executor e a sua vítima congelado para a eternidade.
Yann Lardeau , crítico do Cahiers du Cinéma in Catálogo do Festival Cinéma du Réel, França
O dispositivo de realização não cede um milímetro, nenhum sentimentalismo, nenhuma música ou ruído. (…) O impacto é muito forte, o sentimento de uma bestialidade quotidiana torna-se quase físico graças à potência das palavras que “cria” a imagem, deixando aberto o horizonte da sua construção. Não somos guiados em direcção a uma iconografia pré-estabelecida (…). A memória histórica do país (…) torna-se, neste trabalho de abstracção, um espelho do contemporâneo (…)
Cristina Piccino, in Il Manifesto, Itália

Quando nós estamos a ser torturados.
São rostos. E vozes. Apenas isso. Minimalista (…). São imagens para contar 48 anos de fascismo - tudo fala da sociedade, os rostos, as roupas, a forma de estar. Não estão identificados por nomes nem idades porque valem por todos os presos políticos da ditadura. (…) Um rosto de mulher com um sorriso aberto em pleno arquivo da Pide, por exemplo, o que é que nos diz? (…) E o rosto daquele homem de cabelo claro? (…) E aquela mulher que nos olha fixamente, como uma pintura, e depois desaparecer no negro, apesar de os olhos parecerem continuar lá? (…) A expressão que têm, esse olhar de desafio, é o último espaço de liberdade que têm.
Alexandra Prado Coelho in Público, Portugal

Provavelmente o [filme] mais ousado e vanguardista [do DocLisboa]. É um filme que deveria ser visto por todos os alunos do secundário. É um filme de construção extremamente elaborada do ponto de vista artístico. O seu conteúdo histórico é extremamente importante e rico, uma razão suplementar para que esteja em sala. Deveria ser de visionamento obrigatório para as cadeiras de História.
Sérgio Tréfaut, Director do Festival Doclisboa in Ípsilon, Público, Portugal

Susana de Sousa Dias consegue elaborar uma obra meditativa de uma riqueza cinematográfica surpreendente. (…) 48 está em luta contra a ausência de palavras, de memórias, de imagens. (…) O vazio deixado pelo desaparecimento é total, mas a ausência não deixa de dar lugar a uma representação. (…) Ao reapropriar-se das fotografias da repressão, a cineasta tenta e consegue uma formidável obra de subversão, que consiste nesta vingança de vozes, antes condenadas ao silêncio. O ritmo e a forma apelam à meditação, permitem ao espírito deambular através dos diferentes estratos de espaços e tempos do sofrimento e da humilhação. (…) 48 é uma formidável pedrada no charco do esquecimento, ao fazer da memória não um dever, mas um direito.
Arnaud Hée e Camille Pollas in www.critikat.com, França



(…) Um filme extraordinário. (...) A minha esperança é que inspire os festivais a introduzir uma abordagem totalmente nova na escrita da história. Para lidar com memórias. Para procurar uma nova e minimalista linguagem cinematográfica. E para trabalhar com a música e o som de uma nova forma.
Tue Steen Müller, ex-Director do EDN European Documentary Network in Filmkommentaren, Dinamarca

O novo e belíssimo filme de Susana de Sousa Dias é na exacta e justa medida o mais recente capítulo de um trabalho que ilumina as imagens a partir do que nelas se esconde.(...) No fim, diante das suas sombras (...), só resta aquilo que as imagens iluminam com a sua ausência, tal como o silêncio espelha aquilo que já nem as palavras são capazes de traduzir. (...) Numa inversão (...), 48 converte--se numa obra documental sobre a perda de documentos. Ou, se preferirmos, a da possibilidade do cinema mesmo quando a imagem lhe é negada.
Nuno Figueiredo in Duas Margens, revista online, n.º zero (em preparação), Portugal

As imagens são tão cuidadosamente trabalhadas que a sua aura se torna visível. O som despido das vozes é tratado como música delicada. De facto, é música delicada. É sobre o crime político da ditadura portuguesa (...) tão terrível e selvagem e transmitido com uma clareza tão bela e calma. (...) Tenho a impressão que [o filme] é a minha experiência mais importante do Cinéma du Réel deste ano.
Allan Berg Nielsen, Danish Film Institute in Filmkommentaren, Dinamarca

O documentário de Susana de Sousa Dias não pode deixar o espectador indiferente (…) um filme indispensável às nossas colecções de mediatecas públicas, um filme de História que não pode ser esquecido.
Christine Puig in Vidéothécaires Midi-Pyrénées, França


CRÍTICAS

Por mais que a simples descrição do dispositivo em que assenta 48 faça a maioria dos espectadores fugir a sete pés, e que muitos julgamentos apressados o despachem de imediato com um “isto não é cinema”, o novo filme de Susana de Sousa Dias, feito de uma sucessão de fotos com voz off, ludibria todos os preconceitos e resulta numa obra poderosa, que nos arrepia e nos faz pensar bem mais que a maioria dos filmes com o triplo do movimento.

O 48 do título refere-se aos anos de ditadura que Portugal sofreu no século XX e a sucessão de imagens são as de fotos de cadastro de prisioneiros políticos do Estado Novo de várias épocas, com os próprios fotografados em off a recordarem a experiência da prisão, do isolamento, muitas vezes da tortura, um tema central no filme. E nestes testemunhos tão sentidos, há espaço para muitas lágrimas, alguns sorrisos, mas muitas histórias terríveis que a História deixou à margem.
O mais admirável em 48, além da força dos próprios testemunhos, é que o arriscado dispositivo que a realizadora encontrou para nos fazer chegar estas histórias acaba mesmo por lhes potenciar a eficácia e amplificar o impacto, já que deixa o espectador sozinho com aquelas imagens e o respectivo cérebro mais disponível para apreender todas as nuances do depoimento, confrontado sem hipótese com o rosto da própria vítima.

48 não é um tratado de História nem um retrato abrangente do Estado Novo. É, isso sim, um filme que mostra com eficácia desarmante o sofrimento de muitos prisioneiros políticos anónimos, e um libelo contra a tortura, um tema que nos últimos anos voltou à actualidade: independentemente de se ser contra ou a favor do Estado Novo, ninguém com um pingo de sentimentos pode achar que, por qualquer prisma que se veja, o que aquelas pessoas passaram é merecido.

Luís Salvado, timeout.pt

O efeito da tortura no rosto dos humanos
Cansados de ler os "colunistas de direita" a lembrarem que nasceram depois do 25 de Abril como se isso os desimplicasse de alguma coisa, "48" é o filme da implicação absoluta.

À saída de uma projecção de "48" a que assistimos chegou-nos ao ouvido o queixume de alguém que lamentava que o filme, sim senhor, tal e tal, mas podia ser "mais cinematográfico". A conversa não era connosco, se fosse teríamos retorquido que é justamente ao contrário: é por não ser "mais cinematográfico", no exacto sentido que a expressão pretende sugerir, que "48", sim senhor, tal e tal, é um filme notável. Era pedir-lhe que deixasse de ser o que é para ser uma coisa qualquer (por exemplo, cruzes canhoto, um programa de televisão. "cinematográfico" q.b.).
Toda a força de "48" vem da maneira como se encerra dentro do seu modelo, obstinando-se em não deixar entrar "ar" lá dentro. Um plano que fosse que só lá estivesse para descomprimir, para arejar, arruinava o filme. Fala-se de tortura, de situações de extrema violência física e psicológica. Nenhum filme, e nenhuma experiência fílmica, poderá alguma vez ser comparável (fora ocasionais forças de expressão) com uma sessão de tortura real. Mas não há razão para que o espectador que vai ver um filme onde se fala de tortura não possa estar totalmente disponível, sem precisar de pancadinhas nas costas. O filme não as dá - é a sua maneira de estar à altura, e de ajudar o espectador a estar à altura, do que nele se diz e se mostra.

É fácil descrevê-lo sumariamente. Faz-se apenas de fotografias ("mugshots") de pessoas que foram presas pela PIDE, enquanto na banda de som ouvimos o depoimento dessas mesmas pessoas quando, muitos anos depois, voltam a ter à frente as imagens dos seus rostos encarcerados. As fotografias correspondem a momento diferentes do seu tempo de prisão (meses, anos), e montadas em sequência criam uma espécie de "morphing" sem "morphing", como se cada rosto se fosse tornando numa versão alterada de si próprio. Os cientistas (ou "cientistas") do século XIX que se dedicaram ao estudo das tipologias fisionómicas podiam encontrar aqui uma categoria menos fantasiosa do que aquelas por que se interessaram: a fisionomia do preso político. E a banda de imagem de "48" podia servir-lhes de documentação para estudar o efeito que o encarceramento e a tortura operam sobre o rosto dos seres humanos.
Mas há também a banda de som, e é no trabalho sobre ela que "48" se perfaz plenamente como filme que, de facto, não é uma coisa qualquer. Há o interesse intrínseco dos depoimentos, claro, onde se aprende alguma coisa sobre a vida nas mãos da PIDE (e também sobre a tristeza que isto era cá fora), e se percebe, nos vários depoimentos femininos, a que ponto se praticava uma tortura "de género", em perfeita noção de que há maneiras específicas de fazer sofrer as mulheres que não se aplicam aos homens. Mas mais ainda, há uma extraordinária "mise en forme" desses depoimentos. Que conservam hesitações e silêncios, blocos sólidos de conversa (ou montados de forma a que o parecem) em vez de "momentos escolhidos". E não surgem "limpos", quer dizer, percebe-se que Susana de Sousa Dias não levou as pessoas para um estúdio para lhes gravar as palavras num ambiente de total isolamento sonoro. Pelo contrário, nenhum depoimento é impermeável aos ruidos do exterior: buzinadelas na rua, britadeiras, etc. Nunca é ostensivo, nunca se sobrepõe às vozes, mas esse ruido está lá. O que esse ruído é é simples de dizer: é a vida a penetrar no filme, a vida de todos os dias, nossa contemporânea. É a maneira de lá estarmos todos, todos os que podíamos ser os autores das buzinadelas captadas pelo microfone de Susana de Sousa Dias. Cansados de ler os proverbiais "colunistas de direita" semana sim semana não a lembrarem que nasceram depois do 25 de Abril como se isso os desimplicasse de alguma coisa, "48" é o filme da implicação absoluta, independentemente da data de nascimento. E fá-la (ou fala-a, sem a "dizer") apenas através de um minucioso trabalho sobre as suas formas e sobre os seus materiais. Se isto não é "mais cinematográfico", o que raio será.

Luís Miguel Oliveira, Ípsilon



Como se filma o infilmável? Como se mostra aquilo de que não existem imagens? A resposta de Susana de Sousa Dias é simples: com as imagens que há e dando a palavra àqueles que viveram a ditadura, de um modo que, raiando o experimentalismo formalista tem o efeito de libertar a emoção, de tornar o espectador simultaneamente testemunha e participante das experiências que a realizadora e a sua equipa recolheram junto de uma mão-cheia de prisioneiros políticos encarcerados ou torturados pela PIDE durante os 48 anos do regime salazarista. "48" é uma assombrosa lição de cinema, que ejecta todas e quaisquer convenções pela simplicidade depurada e austera do seu dispositivo; um imenso exercício de história vivida e contada na primeira pessoam, como se só do anonimato de vozes, da décalage entre os rostos de ontem e as vozes de hoje deste coro popular, pudesse nascer a intimidade que - como diz uma das entrevistadas - é o lugar da verdade. Como se só deste acumular anónimo de pequenas histórias pudesse nascer a mais fiel abordagem à grande história. Não é contraditório pôr "48" - prodigioso salto em frente para a sua autora - no mesmo caldeirão de cineastas radicais da modernidade fílmica como Godard, Tarr, Van Sant, Costa ou César Monteiro. Para lá de qualquer olhar político, é um filme sobre Portugal. Para lá de qualquer nacionalidade, é uma obra-prima.

Jorge Mourinha, Ípsilon

"48" questiona o que é que uma imagem mostra. A partir de fotos de cadastro da PIDE, Susana de Sousa Dias faz a denúncia da ditadura por intermédio dos métodos dos seus algozes e através da memória dos opositores. Num momento em que alguns se esforçam por branquear o fascismo que nos coube na rifa, um dos princípios deste trabalho é o de não reduzir a imagem ao simplismo de uma só leitura, e a relação dela com os correspondentes sons é explícita quanto comovente, na figura, de combatentes que não se desculpam por terem lutado nem nos atiram isso à cara. Apesar das exatas medidas e posturas, as fotografias antropométricas revelam a singularidade de cada fotografado. Interessante é que se descubra também o rol das violências praticadas contra as mulheres, mormente quando se tratava de utilizar o fator da menstruação como elemento de humilhação ou de tortura psicológica, o que raras vezes tem sido realçado, que a condição feminina é o mais das vezes exposta pela observação do analista masculino, a quem vem escapando a profundidade de tais vexames. Também se constata que os guerrilheiros negros não tinham 'Imagem', eram a mole que a história escrita pelo colonizador nunca desejou individualizar. E a opção de preservar depoimentos de nacionalistas através de um ecrã negro, inesperadamente sulcado da imagem fugaz de uma árvore e de um murete de arame farpado, traz mais gritantes as suas dores. Intervindo no próprio som dos depoimentos, montando-os e depurando-os conforme os interesses da 'representação' cinematográfica, Sousa Dias realça as palavras que acha dever destacar, permitindo que se distinga com acutilância "a palavra dita e como é que é dita". Com "48", as imagens fixas deixam de ser olhadas da mesma maneira. Há mais filmes feitos integralmente a partir de imagens de arquivo, "mas são diferentes na sua linguagem e conceção", como lembra a realizadora.

António Loja Neves, Expresso


INCLUI DECLARAÇÕES DA REALIZADORA
Na continuação da sua obra "Natureza Morta", Susana de Sousa Dias vê agora o premiado "48" chegar às salas comerciais. Será que o seu apuramento estético e o tratamento dialético entre imagem e banda sonora podem prefigurar um caminho de ligação entre cinema e outras artes? "Fiz o curso de cinema e fiquei insatisfeita", refere a realizadora. "Fui para artes plásticas nas Belas Artes. As pessoas às vezes perguntam em que campo é que me situo. O meu campo é o do cinema. Mas vou buscar recursos ao cinema como às artes visuais. Tento encontrar a melhor forma de fazer o filme. Quanto a '48', não tenho modelo referencial, tentei simplesmente analisar os materiais e tirar conclusões."

O resultado surpreende pela utilização da imagem parada e posteriormente trabalhada como substância nuclear de um documentário. Quando os contornos das imagens que nos assolam no dia a dia são cada vez mais rápidos e trepidantes, é interessante confrontarmo-nos com uma obra rigorosamente diversa. "Quanto realizei 'Natureza Morta', fi-lo em co-produção com uma empresa francesa, e as verbas vieram todas do estrangeiro. Para '48', optei por uma produção portuguesa e de uma empresa que é minha, com apoio financeiro exclusivamente português. Desejava trabalhar sem fazer concessões, não queria discutir com pessoas estranhas ao processo criativo a eficácia do documento, queria trabalhá-lo até às últimas consequências. Foi um risco assumido e consciente desde o início. Não sabia quais iriam ser as reações."

O processo de criação de "48" é peculiar. "A minha reflexão coloca preferencialmente as questões da História e da imagem em si e da imagem de arquivo em particular. É o que me leva à forma como faço filmes. Queria contar uma história do Estado Novo tendo por base as imagens de cadastro da polícia política e os testemunhos dos prisioneiros. Mas isso não faz um filme, e quando pus o primeiro plano na time line, ao começar a montagem, compreendi que a ideia caía por terra. Não se pode pensar simplesmente que o espectador olhe para as imagens e ouça os testemunhos dos ex-prisioneiros, quero que veja a imagem de forma consciente e que se retenha nela, que possa refletir no que está a ver e a ouvir. E para que não descole tenho de construir algo sustentável durante a hora e meia que tem o filme. Por isso abandonei a ideia do plano fixo, porque nele o espectador apreende de imediato a informação e deixa de ver. Poderá continuar a olhar, mas deixa de 'ver'. Tive de criar um dispositivo especial. No fundo, são intervenções que respeitam a imagem na sua integridade, sem a adulterar. O filme tem 93 minutos e trabalhei com o ralenti. Se pusesse as imagens do filme à velocidade normal, a banda de imagem teria apenas sete minutos."

"48" trabalha sobre o resgate da memória. E tem dois momentos cruciais que rompem a 'normalidade' a que nos vamos habituando, tornando abrangente todo o sofrimento denunciado - quando Maria Antónia Fiadeiro conta como era a sociedade fora da prisão e nos depoimentos de dois guerrilheiros de movimentos de libertação: não temos imagens deles, faltam nos arquivos. "A introdução desses elementos foi muito complexa, se eu alterar a ordem dos depoimentos, estes podem anular-se uns aos outros. Foi tudo muito trabalhados, no ensejo de que se falasse do país, não apenas das condições no interior da prisão. O depoimento da Maria Antónia é importante para enfatizar esse retrato do país, pois fala da vida privada, até da vida sexual, aspetos muito íntimos."

Num filme que parte da imagem e do seu questionamento, o que é que se faz quando há falta dela? "Pensei muito sobre como poderia resolver o problema da ausência de imagem nos testemunhos dos prisioneiros das ex-colónias, até ao momento em que decidi a integração sem imagem, denunciando assim a sua ausência no arquivo, o que introduz um aspeto reflexivo dentro do discurso do filme. Permiti-me a quebra momentânea do sistema que erigi para a construção do filme. É impossível manter o mesmo sistema do princípio ao fim, não se trata de uma métrica que se cumpre cabalmente, repetindo-se. Quando cheguei ao segundo prisioneiro africano, decidi montar o seu discurso de uma forma diferente, quase como se fosse um poema, já que a sua forma de falar prestava-se a isso e admitia outro tipo de imagens. Encontrei-as no arquivo do Exército, filmadas na Guiné, fugazes imagens de vigilância noturna. Não surgem do nada, estão no contexto. Não é por serem bonitas." São imagens criteriosas do ponto de vista estético e funcionais do ponto de vista político. "É fundamental que cada imagem que utilizo tenha um sentido objetivo e ligação ao resto. E o negrume que sustenta os depoimentos não é um negro técnico. Começa por sê-lo, mas depois passa ao registo do escuro da noite, antecedendo aquela paisagem. É uma imagem que se inscreve, não uma paisagem onde penetramos."

Coloca-se a questão de serem subjetivas ou objetivas as imagens tão cruas das fotos que dão guarida aos depoimentos. "São sempre subjetivas. Os meus filmes são assim construídos porque estão subjacentes a uma dada ideia de História. Georges Didi-Huberman afirma que a revolução coperenicana de Walter Benjamin foi sobretudo o passar a ver o passado como um facto de memória e não como um facto objetivo. Tudo é trabalhado a partir dessa ideia de memória, com toda a carga temporal e até com o inconsciente do tempo. Não vou à procura de uma verdade sobre o passado, não vou tentar revelar um passado. Vou trabalhar para perceber como é que o passado chega até nós e como é refletido hoje. A História não é um poder fixo nem passível de ser revelada através de um discurso causal, sequencial, linear. Daí também a ausência de necessidade de cronologia".

As imagens a que nos referimos são de arquivo, o que toma as coisas ainda mais delicadas. "A minha definição de imagem de arquivo é de matriz derridiana. Em última análise, o que demarca uma imagem de uma imagem de arquivo é o facto de esta última estar sujeita a um poder. Quando se lida com arquivos, esta é uma questão com a qual temos necessariamente de nos confrontar e que influi diretamente no nosso trabalho. As políticas de acesso aos arquivos são bastante restritivas, o que até pode levar a um paradoxo: como se pesquisa e se trabalha sobre aquilo que não se sabe que existe?"

António Loja Neves, Expresso



ENTREVISTAS

Susana de Sousa Dias, cineasta portuguesa, lança em 2009, pela Kintop – produtora que fundou em 2001 e que tem especial foco nos temas da história e sociedade contemporâneas -, ‘48’ (93′, 2009). O filme aborda as “acções da polícia política sobre o corpo e a mente dos prisioneiros”, conforme escreve a realizadora, durante a ditadura portuguesa. Fortemente aclamado pela crítica, e apresentado em festivais um pouco por toda a Europa, Brasil, Senegal e Cabo Verde, foi galardoado com o Grande Prémio do Cinéma du Réel 2010.

36 anos depois da Revolução e do fim da Ditadura em Portugal e com todas as abordagens – desde filmes a documentários e debates –feitas ao tema, como é que surge o ‘48’?
O ‘48’ surge a partir de um percurso que começou nos anos 90. Foi nessa altura que surgiu o meu interesse pelo Estado Novo, sobretudo pelo cinema produzido no período anterior ao final da 2.ª Guerra. Depois, em 2000, comecei a centrar-me nos materiais existentes no Arquivo da PIDE/DGS. Estava a fazer um outro filme, ‘Processo-Crime 141/53 — Enfermeiras no Estado Novo’, e foi nessa ocasião que vi os álbuns de reconhecimento com as fotografias dos presos políticos. Foi um momento absolutamente marcante do meu percurso enquanto cineasta. Foi também nessa altura que entrei pela primeira vez no arquivo audiovisual do exército. Todo esse conjunto de imagens esteve na base de um filme sem palavras, também sobre a ditadura: ‘Natureza Morta’ (2005). Ou seja, trata-se um pouco de filmes que vão saindo de filmes — 48 foi o filme que saiu de ‘Natureza Morta’ — mas que têm a sua génese no arquivo. Costumo dizer que uma vez dentro de um arquivo, dentro do arquivo para sempre.

O tratamento das imagens e os relatos na primeira pessoa atribuem sobretudo uma veracidade e crueza aos relatos, quase como se tivesses montado uma história pouco tempo depois do fim da ditadura. Como é que seleccionaste os intervenientes e os relatos?
O filme, na sua origem, parte de três fotografias. Quando estava a fazer ‘Natureza Morta’, tive de pedir autorização aos antigos prisioneiros para poder filmar as suas fotografias no Arquivo da PIDE/DGS (Arquivo Nacional da Torre do Tombo). Isto foi em 2003. Falei com algumas pessoas sobre as suas próprias fotografias de cadastro e o que elas disseram revelou-me todo um outro lado da imagem, para além da sua visibilidade, um lado passível de ser apreendido somente através do complemento da palavra. Foi nessa altura que comecei a pensar que talvez fosse possível construir um filme a partir de uma ideia aparentemente — e friso aqui o aparentemente — muito simples: mostrar a imagem, ou seja, colocar o espectador em confronto com a imagem, e deixar ouvir a voz da pessoa fotografada. Portanto, houve esta situação “imagem e história associada”, mas também houve outras imagens, cuja história interna desconhecia, que achei fundamental fazerem parte do filme: as fotografias do António Gervásio, por exemplo. Independentemente de tudo o que revelam, conseguem-nos transmitir por si só o que foi a violência da duração da ditadura. Outro critério de escolha foi também o da história pessoal. Conhecia episódios da vida de algumas pessoas que achei importante incorporar. E finalmente, o caso dos prisioneiros africanos. Quando iniciei o filme não previa incorporar prisioneiros das antigas colónias. Quando comecei a centrar o filme na tortura, cheguei à conclusão que era impossível não o fazer. Claro que houve também muita investigação: nos arquivos, nos livros já publicados e também por meio de conversas que ia mantendo com os próprios ex-prisioneiros e com historiadores.

Qual foi o teu principal objectivo ao realizar este documentário?
Há sempre vários objectivos. Um deles é trazer à luz vivências que correm o risco de permanecer no esquecimento. O que temos garantido são os documentos depositados nos arquivos. Ora, que documentos são esses? O que nos revelam? Que lacunas contêm? Estas questões são tanto mais importantes quanto sabemos que se trata de um arquivo de uma polícia política de uma ditadura que durou 48 anos. Para além disso, o arquivo nunca poderá ascender ao estatuto de memória verdadeira, será sempre uma “memória de muletas”, como diz Ricoeur. É preciso trabalhar os materiais, questioná-los, reinterpretá-los, confrontá-los; só assim se trabalha a memória, memória que é a matriz da história. Quando mostrei num festival aqui em Portugal, o ‘Processo-Crime 141-53’, um filme que tem por base o processo judicial de duas enfermeiras que foram presas por quererem casar, um realizador da RTP acusou-me de o filme não ter contraditório. Afirmava ele que eu deveria ter entrevistado os pides. Ora, os pides têm voz: todo o arquivo da PIDE/DGS é um testemunho das suas acções, dos seus métodos, da sua forma de pensar. Quem não tem voz são os prisioneiros. Nenhuma tortura aparece descrita. É, por isso, muitíssimo importante proceder a esta recolha, fazer todo um trabalho de história oral enquanto as pessoas que viveram nesta época estão entre nós. No meu caso, tento contribuir fazendo filmes.

O director do Doclisboa, Sérgio Tréfaut, apelidou o ‘48’ do filme “mais ousado e vanguardista”, explica-me a nível de produção e realização, como é que tornaste um tema como a Ditadura num filme de vanguarda.
O que se passa com o filme é que procurei encontrar a solução estética que mais se coadunasse com o que pretendia mostrar e dar a ouvir. A solução encontrada foi original — é um comentário que tenho ouvido nos mais diferentes círculos onde tenho mostrado o filme — e por isso mesmo também mais arriscada. Antes de mostrar o filme não fazia ideia de quais seriam as reacções. No fundo, tratou-se apenas de articular, da maneira mais justa, quanto a mim, as questões tratadas com as opções formais.

Que significado ou que importância teve o fim da ditadura e a Revolução na tua vida em particular? Social e politicamente quais sentes que foram as grandes mudanças – positivas ou negativas?
O 25 de Abril teve um grande impacto na minha vida. Isto parece uma evidência — uma revolução tem sempre um grande impacto na vida das pessoas que são directa ou indirectamente atingidas por ela — , mas no meu caso, como era muito jovem, acabou por me formar. O mais impressionante, para mim, foi ver o país mudar de um dia para o outro. Só quem viveu uma situação destas pode imaginar como é. Depois, comecei a ter actividade política, que passava também por ir para outras zonas do país, no meu caso o Alentejo, trabalhar no campo e alfabetizar. Esta experiência vivi-a, sobretudo, no período entre os meus 12 e 14 anos. Foi aí, verdadeiramente, que percebi o que tinha sido o fascismo. E que encontrei camponeses de uma dignidade e honradez impressionantes; de certa forma, também eles contribuíram para o que sou hoje. Foi uma experiência fundadora e posso dizer que se hoje faço estes filmes, a esse momento o devo.

Conta-me um pouco sobre o percurso do «48» desde que estreou.
O filme foi estreado no DocLisboa em 2009, alguns dias apenas após estar concluído. Depois, foi seleccionado para o Festival Cinema du Réel, em Paris, onde viria a ganhar o Grande Prémio, e para o Festival ‘É Tudo Verdade’ em São Paulo e Rio de Janeiro. Em Portugal foi exibido também no Panorama e no Doc’s Kingdom. Já foi mostrado em Cabo Verde, no Senegal, vai ser apresentado em festivais na Grã-Bretanha, na Itália, na Áustria, entre outros países. Também tem suscitado o interesse de outros circuitos: falei sobre o filme no Collège Iconique do INA (Institut National du Audiovisuel), em La Fémis, a escola de cinema de Paris, na Universidade de Verão da Sorbonne-Nouvelle, etc. Onde tem sido mostrado, o filme tem originado discussões vivas e tem ganho outras dimensões, é muito interessante. Também tenho sido contactada por pessoas do público, que me escrevem a comentar o filme. É como o José Gil diz: o objecto é lançado no espaço público e quando retorna ao seu autor já vem transformado, ampliado pelo pensamento dos outros. Mas isto é o que se passa lá fora. Aqui em Portugal, muito pouco se disse sobre o filme. O que não deixa de ser surpreendente, dado o tema.

Qual é o teu maior orgulho na realização deste documentário?
É esse mesmo: tê-lo realizado.

ruadebaixo.com/susana-de-sousa-dias.html



Por mais que a simples descrição do dispositivo em que assenta 48 faça a maioria dos espectadores fugir a sete pés, e que muitos julgamentos apressados o despachem de imediato com um “isto não é cinema”, o novo filme de Susana de Sousa Dias, feito de uma sucessão de fotos com voz off, ludibria todos os preconceitos e resulta numa obra poderosa, que nos arrepia e nos faz pensar bem mais que a maioria dos filmes com o triplo do movimento.

Em Natureza Morta, Susana de Sousa Dias fez um retrato do Estado Novo usando imagens de arquivo em câmara lenta. Em 48, opta por um novo desafio formal, ao contar as histórias de presos políticos usando apenas fotografias de cadastro e depoimentos.

O filme foi premiado em vários festivais, incluindo o Grand Prix de Réel. Confirma também o Estado Novo como universo temático comum a todo o percurso da realizadora, que tem já mais três projetos dentro deste âmbito. A ideia principal é sempre a mesma: não apagar a memória.
Este é um filme sem imagens em movimento. Há aqui uma negação do próprio cinema?
Não, pelo contrário. O 48 situa-se fora dos cânones convencionais do cinema. Parte de materiais e de processos que não são normalmente utilizados quando se constrói um filme. Aqui há movimentos de câmara, mas sobre a imagem fixa. A construção do espaço no cinema é dada pela imagem e pelo som, mas aqui temos imagens sem espaço. Por isso, todo o espaço cinematográfico é construído através do som. Por outro lado, tem uma linha narrativa muito definida e muito trabalhada, mas que não é muito aparente.

Mas nada disso é casual ou puramente experimental. O formato serve uma ideia…
A própria ideia do filme partiu deste dispositivo formal: apresentar a fotografia com a voz do prisioneiro. Depois surgiram outros problemas. Tal não funcionou na prática. A minha ideia era usar a imagem fixa. Mas quando vi o primeiro plano a ideia caiu por terra. A imagem não pode estar fixa, se não o espetador desliga-se do que está a ver. Foi o primeiro ponto em que percebi que fazer este filme não era tão simples como isso. Parti para o filme com muitas questões, mas foi ainda mais difícil do que estava à espera. Muito mais.

Esta ideia não funcionaria numa video-instalação, usando ampliações das fotografias e a voz em fundo, onde quem entrasse ouviria uma ou outra história? Há aqui uma ligação às artes plásticas?
Às vezes perguntam-me se o filme foi pensado para uma galeria. Ele foi pensado para uma sala de cinema e para funcionar na sua totalidade. E uma das dificuldades foi precisamente criar esse todo. O filme tem princípio, meio e fim. Cada depoimento só pode entrar uma única vez. Tirando uma peça, desmonta-se tudo. Basta mudar um prisioneiro de sítio para não funcionar, ou se apaga ou come aquele que vem a seguir. Era muito fácil fazer isto. Tive uma proposta para apresentar isto na PhotoEspanha, com um caráter mais instalativo. Mas acabou por ser uma sala grande e escura onde passaram o filme na íntegra e com sessões.

O filme partiu das próprias fotografias?
Quando estava a fazer a Natureza Morta tive que pedir autorização aos prisioneiros para usar as fotografias. Sem querer começámos a conversar sobre a imagem. A Georgete estava a contar várias coisas. Disse-me: “Já reparou, nesta imagem já tinha o buço a crescer e estava despenteada. Começou a contar-me a história, o tempo entre a fotografia de entrada e de saída. E também da forma como aquela roupa foi usada para limpar o chão. A fotografia então abriu-se em termos de imagem e de tempo. Foi aí que comecei a pensar no filme. Depois, um segundo ex-prisioneiro, o Manuel Pedro, também comentou: “Já reparou que na primeira fotografia era careca e na segunda já tinha cabelo…” Levantou-se a questão do disfarce na clandestinidade. As fotografias de cadastro impressionaram-me logo muito, quando as vi em 2000, e não sabia porquê. Aquilo perturbou-me imenso. No 48 a ideia nasce da relação da palavra com a imagem. Mostrar o que as imagens revelam e o que elas escondem.

O que teria a perder se mostrasse as pessoas que dão os depoimentos?
Muita coisa. Foi uma questão que sempre me coloquei. Se eu mostro a pessoa a falar, tenho uma imagem do presente a contar uma história. E a fotografia quando aparece acaba por ser uma ilustração desse passado. Ocorre imediatamente uma clivagem temporal. E estou a trabalhar com uma série de temporalidades mais complexa. A imagem remete-nos para um passado, mas também para um tempo presente a diversos níveis. Há uma pregnância temporal que me interessou trabalhar. Para que fosse eficaz e todos esses tempos heterogéneos existissem no mesmo filme, não poderia criar essa clivagem.

Aquelas imagens ganham assim uma força e uma dinâmica incomensuráveis…
Na base do filme está a vontade confrontar o espetador com a imagem de cadastro. É uma imagem num certo sentido transparente. Não é por acaso que todo o sistema erigido da fotografia judicial mantém a sua forma canónica desde o século XIX. Na base está a procura da maior semelhança possível entre a fotografia e o fotografado. É uma imagem extremamente codificada, em termos estéticos e ideológicos. A questão aqui é ir além disso. Por vezes somos nós que olhamos para a imagem, por outras olhamos para a imagem através do olhar de quem está a falar, por outras ainda é a imagem que olha para nós.

Há uma resposta ideológica do próprio fotografado, no momento em que tira a fotografia. Também ali parece haver um jogo de forças entre a polícia e o preso. Alguns depoimentos falam disso, da necessidade de fazer a pior cara para a fotografia, mas também no caso peculiar da Maria Antónia Fiadeiro, que se ri, e hoje se arrepende…
Dentro deste sistema tão rígido há qualquer coisa que escapa. No caso dos prisioneiros políticos mais consciencializados passa por uma atitude de força. É o poder do preso. Que é coisa que nunca se vê.

Também falam do poder de não falar, como último resquício de liberdade…
Sim. Há também essa questão. Mas, na verdade, algumas das pessoas que estão no filme falaram. Só que não é esse o tema que quis abordar. Isso seria um outro filme.

De que serve recordar hoje todas estas barbaridades?
Hoje em dia existe um branqueamento destes 48 anos. Uma das pessoas entrevistadas disse-me que a grande violência da ditadura foi a sua duração. Todo esse tempo deforma as pessoas que a viveram e aquelas que educaram. Eu própria vivi 12 anos sob a ditadura. Foi pouco, mas houve um período da minha vida em que fui formada por aquelas ideias, na escola, na mentalidade… Há muitos traços invisíveis. Não é nada que passou e se esqueceu. Até porque, há não muitos anos, o Salazar foi eleito o grande português num concurso e houve uma revista que espalhou imagens do ditador pela cidade.

Como é que chegou a este universo temático…
Do qual não vou sair tão cedo… Nos anos 90 tive uma proposta para fazer um documentário sobre o cinema português dos anos 30 e 40, foi nessa altura que me confrontei com as imagens de arquivo da época… Começou aí o meu fascínio. Entretanto, a minha mãe estava a fazer um mestrado sobre estudos das mulheres e a trabalhar sobre a história de duas enfermeiras que foram presas. Havia uma lei única na história das ditaduras que era a proibição das enfermeiras dos hospitais públicos de se casarem. O processo destas enfermeiras é kafkiano. Fiz esse documentário. Foi nessa altura que entrei no arquivo pela primeira vez. É algo extremamente perturbador.

Chegar às pessoas foi simples?
Simples e complicado. Em 2003, quando comecei a filmar a Natureza Morta, tinha as fotografias, mas não podia ver o nome que estava escrito nas costas, porque não as podia virar. Foi um processo muito complexo, feito pelo lado inverso. Fui ter com pessoas que sabia que tinham estado presas e com historiadores… Depois, falar com as pessoas foi simples. Não tive nenhuma recusa, a não ser um caso em Moçambique. Mas o trabalho começou muito antes. Por exemplo, a Georgete Ferreira, a primeira pessoa que aparece no filme, foi entrevistada em 2007, mas a primeira vez que falei com ela foi em 2000. Como eu trabalho há alguns anos sobre estes temas, as pessoas têm confiança.

As próprias pessoas têm essa consciência de que o que lhes aconteceu não pode cair no esquecimento?
Alguns disseram-me que, por si, não falavam, mas sentem que têm a obrigação de contar a história, para que não fique esquecida. Porque, claro está, nos arquivos estes relatos não existem.

Filmou horas sem fim. Poderia fazer um filme por pessoas?
Sem dúvida. Vários filmes até. Numa entrevista que fiz, a resposta à primeira pergunta demorou uma hora, precisamente o tempo da cassete. Eu vou fazendo perguntas até entrar na memória. É muito interessante perceber qual é a chave de entrada de cada pessoa. Varia muito. Há perguntas que funcionam com umas pessoas e não com outras. É um trabalho que coloca muitos problemas, até do ponto de vista ético: até que ponto tenho o direito de fazer certas perguntas? Será que devo parar? Não é fácil, mas é fascinante. Acaba por haver uma troca.

Deve ter sido penoso cortar tanto…
Tive que fazer ao contrário. Primeiro escolhi a estrutura vertical do filme, caminhando em profundidade. Em baixo, estão os conceitos diretores. E é aí que vem ancorar toda a narrativa, aquela que é aparente para o espetador. Na base estão os conceitos que fui buscar a cada uma das pessoas: a questão da identidade, da máscara, do poder do prisioneiro, tudo isto tem reflexos na própria imagem. Foi preciso andar na verticalidade para descobrir estes conceitos e conseguir articular a voz com o texto. O filme também é sobre indivíduos, mas acima de tudo é sobre o sistema.
Dentro da própria construção narrativa há uma gestão da intensidade. O filme tem um clímax, uma altura em que julgamos que já não é possível ouvirmos nada pior, mas há um relato que supera tudo, que é o do preso de Moçambique, que fala da morte como um desejo inalcançável.
Nesse ponto de vista, há uma construção narrativa que faz a curva tradicional. O filme vai crescendo, há um clímax e a conclusão. E o clímax acaba por ser esse. O filme não é cronológico, mas começamos com uma prisão nos anos 40 e acabamos no 25 de Abril. E a Guerra Colonial é um limite do regime. Esse depoimento foi recolhido em Moçambique em condições muito especiais. Ele fala da morte de uma forma impressionante. A mulher dele tinha morrido há seis meses, e a mãe morrera enquanto eu estava em Moçambique. Há uma situação psicológica que faz com que a entrevista seja tão expressiva. Esse foi o momento do filme em que me permiti sair do sistema.

Importante também é a gestão das pausas. Tal como numa comédia não se podem contar anedotas de seguida, porque o espetador não tem espaço para apanhar tudo, aqui são necessários silêncios para que possamos digerir a informação…
Essa gestão foi muito complicada. O filme já estava todo construído quando me apercebi que havia um momento, quando entra a prisioneira com o filho, que desligava. Porque uma pessoa já não tem a capacidade para ouvir mais. Percebi então que era preciso abrandar. Faço os possíveis para que tudo seja apreensível. Foi preciso dar tempo ao espetador dentro do próprio filme.

Os fotografados já viram o filme. Qual foi a reação?
Tive reações positivas e uma menos boa, que foi a da Maria Antónia, que convive muito mal com aquela fotografia em que está a sorrir. Reagiu com grandes reservas, mas mais tarde telefonou-me a dizer que já se tinha reconciliado com o filme. Não mostro o filme antes de estar pronto. Há alguns casos, como o da Alice que contou pela primeira vez o quase suicídio da mãe num estado emocionalmente frágil. Nesses casos eu telefono e pergunto se posso utilizar essa parte do depoimento. Um princípio que eu tenho é o de não usar as parte que os entrevistados me peçam para não o fazer.

Qual será o seu próximo filme?
Posso dizer que no fundo há dois: um deles é Luz Obscura, um filme cuja pesquisa iniciei em 2001, a rodagem em 2006 mas que tive de interromper pois a dado momento encontrei-me num impasse, não o conseguia resolver. Só depois de fazer o 48 consegui encontrar a solução formal e estética. O filme - o tal que parte também dos materiais existentes no arquivo da PIDE/DGS, neste caso da fotografia de cadastro de uma mulher com uma criança - tem na sua base um problema, que é o da entrevista. Em certas condições, num situação de entrevista filmada, a voz pode apagar o rosto, a expressão; noutras, dá-se a situação inversa, ou seja, o que transparece no rosto pode apagar o que está a ser dito: como resolver este paradoxo? Como disse, só depois de fazer o 48 consegui resolver este filme.Tenho outros projetos: o das três irmãs, o da memória do Estado Novo hoje (chama-se o Paço do Duque ou “o fascismo nunca existiu”, numa referência ao texto do Eduardo Lourenço) e um último que parte das fotografias de clandestinidade de um núcleo familiar, mas também das imagens de cadastro da Torre do Tombo e de imagens em movimento da época. Os dois primeiros são projectos que foram nascendo e desenvolvendo-se antes mesmo da conclusão de 48. O último, na verdade, nasce de 48, e também de Luz Obscura. No fundo, trata-se de uma reflexão que parte mais uma vez da imagem de arquivo e é aquele em que estou a trabalhar neste momento.

Considera-se um caso à parte no cinema português? Sente afinidades com outros realizadores?
Posso dizer que 48 não se baseia em qualquer modelo existente e que a surpresa que o filme tem causado nos circuitos internacionais por onde tem passado, e não sou eu que o digo, apenas reproduzo aquilo que tem sido referido, consiste precisamente na sua originalidade e inovação. Aliás, a pergunta é interessante pois eu nunca pensei na minha posição dentro da nossa própria história e prática do cinema. A primeira vez que me confrontei com esta questão foi quando programaram a Natureza Morta e o Jaime, do António Reis, numa mesma sessão, em França. Alguém encontrou afinidades entre os dois filmes. Gostei muito disso, fez-me sentir parte de alguma coisa.

Tem em comum com o Pedro Costa o facto de se fechar obsessivamente num universo e numa linguagem…
Encontro uma afinidade com ele, em termos de método, que é uma opção muito marcada em encontrar a sua própria linguagem para além dos modelos existentes e adequar os métodos de produção a essa pesquisa. E seguir firmemente o seu caminho. É interessante esta teia de relações que as outras pessoas vão encontrando e que me vão dando que pensar e me levam a questionar: afinal onde me situo em relação à nossa própria cinematografia?

Manuel Halpern, Final Cut



Argumento, realização e montagem: Susana de Sousa Dias
Imagem: Octávio Espírito Santo
Design Sonoro: António de Sousa Dias
Som: Armanda Carvalho
Som Adicional: Paulo Cerveira e Valente Dimande
Direcção de pós-produção: Helena Alves
Mistura de som: Tiago Matos
Correcção de cor: Paulo Inês
Produção: Kintop | Ansgar Schäfer
Com o apoio de MC / ICA e RTP

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