Neste documentário, o realizador João Trabulo ("LH - Saber Ver, Demora", "Sombras, um Filme Sonâmbulo", "Sem Companhia") segue Rui Chafes nas suas actividades de escultor, desde a idealização até à concepção dos seus trabalhos, mostrando ao espectador o indivíduo que existe para lá do artista plástico, considerado um dos mais importantes da actualidade.
O filme é uma viagem ao universo artístico, interior e secreto do escultor Rui Chafes. No atelier, território de eleição do artista, percebe-se como tudo acontece: do barulho das máquinas ao silêncio que envolve a concepção e idealização de cada escultura, surgem sons, imagens e vozes de outros tempos.
CRÍTICAS
Vários anos depois (é um filme com data de 2003), e já com um carreira feita nos circuitos alternativos, estreia-se em sala "Durante o Fim", filme de João Trabulo centrado na obra, na figura e no universo de Rui Chafes. Apesar dos oito anos transcorridos desde a sua feitura não se tem perante ele nenhuma sensação de atraso ou de "perda de validade" - o que se calhar já é dizer alguma coisa sobre o filme.
Que é bastante inteligente na maneira de encarar o trabalho de Chafes (até pelo modo como o filma) sem nunca forçar uma "explicação", uma "interpretação" ou qualquer coisa peremptória desse género, remetendo-se para a contemplação e para uma série de "pistas" que vêm mais envolver (envolver o filme, envolver as peças de Chafes) do que "decifrar" seja o que for. Nesse sentido, é um filme que trabalha sobretudo a criação de um ambiente (quase em termos musicais), um ambiente construído com elementos que podem parecer imediatamente mais próximos ou mais remotos do universo de Chafes mas que acabam por encontrá-lo sem margem para dúvidas.
Enquanto a câmara percorre - em travellings ou em planos fixos - as esculturas do artista, a banda de som convoca excertos de diálogos de dois filmes ("Heinrich", de Helma Sanders-Brahms, sobre Kleist, e o "Andrei Roubliov" de Tarkovski). Será fácil compreender, através do filme, porque é que esses filmes, e os mundos que eles transportam, são convocados, mas antes da compreensão é importante o mundo "terminal" (o mundo "durante o fim") que a sua presença vai criando - e nesse mundo, tudo o que é da ordem da arte e da matéria de Chafes ganha um sentido próprio. Pode-se argumentar que há planos a mais, sobretudo na parte final, que abrem para um simbolismo que parece demasiado etéreo para a solidez metálica das peças de Chafes, e criam uma impressão de afectação que o filme conseguira até então evitar. Não impede que "Durante o Fim" seja um filme onde se vê Chafes e, ao mesmo tempo, um olhar autónomo sobre ele.
.
Luís Miguel Oliveira, Público
Durante o Fim, de João Trabulo, pode ser visto, antes de mais, como um prolongamento da obra de Rui Chafes ou algo que a complementa de forma relativamente eficaz. Serve de veículo entre o trabalho de escultor e um público. A arte como intermédio da própria arte. Não é que o trabalho artístico precise de legendas, mas este aconchegamento fílmico torna-nos mais próximos da sua beleza e eventualmente da sua essência. Do escultor e do seu discurso. Há um entendimento latente entre João Trabulo e Rui Chafes. Mas o jogo não se dá ao mesmo nível. O filme não foi uma encomenda, mas antes uma opção do cineasta que quis ir ao encontro do que admirava, porventura na tentativa de encontra pistas para o desvendar. Há assim uma nobre posição de humildade do realizador, que se submete por respeito ao universo do escultor, recusando, à partida, qualquer espécie de protagonismo ou toque de personalidade que não sirva o propósito máximo de mostrar Rui Chafes. De certa forma, este não é apenas um filme sobre Rui Chafes, mas um filme do próprio Rui Chafes.
Contudo, conhecendo a ainda curta obra de João Trabulo, apercebemo-nos de que há aqui uma coincidência formal, que não será certamente por acaso. Ou seja, este fascínio por Rui Chafes conjuga-se na personalidade fílmica do próprio Trabulo. Percebe-se bem as semelhanças, o estilo desenhado, sempre sóbrio e contemplativo, se revermos, por exemplo, Sombras - Um Filme Sonâmbulo, que fez a partir de Teixeira de Pascoaes. Mas mesmo em relação a Sem Companhia, que talvez seja a sua melhor obra enquanto realizador, tem pelo menos em comum essa sobriedade e a opção por planos fixos. Só que se em Sem Companhia a solução vinha do constrangimento espacial, em é uma opção estética clara.
O universo de Rui Chafes, a sua relação com a natureza, não evocam curiosamente a portuguesa saudade, mas antes uma melancolia típica dos climas do centro da Europa. Daí se encaixe neste mundo outros filmes, de que Trabulo se socorre para pintar o seu, do romantismo alemão e de Tarkovski. As obras estão lá por uma afinidade estética, mas também por uma necessidade complementar de entender a escultura de Chafes a partir das suas raízes mais ocultas.
Tudo isto nos conduz ao encontro com o escultor e as suas palavras que de alguma forma o explicam. "O artista tem a missão de transportar a palavra, ou a chama, ou como lhe quiserem chamar.... transportar isso intacto e transmitir a outras pessoas", assim se define Rui Chafes no filme. E diz mais: "O artista, com a sua consciência especial do mundo, vê as coisas antes dos outros e oferece-as", com dotes promontórios. Contudo afirma: "Acho que a arte não é para o futuro, é para o passado; não é para os vivos, é para os mortos, como diz Genet, para o imenso povo dos mortos".
João Trabulo seguiu Rui Chafes durante três anos para nos oferecer uma obra contemplativa, que tenta mostrar a arte pelo lado interior, fazendo muito mais do que descrever descrever o seu método de trabalho ou procurar leituras rápidas. Durante o Fim abre-nos os olhos para a escultura de Rui Chafes.
.
Manuel Halpern, Visão
Há pelo menos duas maneiras de fazer um documentário sobre um artista. Uma, de carácter apologético, consiste em mostrar exaustivamente a obra nas suas diferentes fases criativas, rodeando-a de depoimentos de críticos e de especialistas para melhor a legitimar e juntando uma dimensão biográfica, tanto mais útil se esta tiver uma tonalidade heroica. A outra prescinde de quase tudo isto e vai direta à iluminação da própria visão do artista, usando o discurso na primeira pessoa e convocando tudo aquilo (e só aquilo) que ajude a clarificar esse seu universo.
João Trabulo, que, entre outros trabalhos, realizou já documentários sobre Fernando Lanhas e Teixeira de Pascoaes, opta, e bem, neste filme de 2004 - "Durante o Fim", que, por motivos associados à produção e à distribuição, só agora é estreado -, pela segunda possibilidade ao aproximar-se do escultor Rui Chafes.
Aprecie-se ou não a obra que este criador vem construindo desde que, ainda nos anos 80, começou a expor, uma coisa é certa: é notório que, como poucos, se trata de um artista que joga de acordo com as suas próprias regras. Isso deve-se menos à teimosia e coerência de um programa do que à existência de uma visão artística tão consolidada ou imanente que nunca se perde ou desvia para servir modas ou tendências conjunturais. Porém, como mostra a brilhante exposição, em colaboração com Orla Barry, que está neste momento no Museu Berardo (ou a intervenção que realizou com Vera Mantero para a Bienal de Veneza de 2004), essa visão está longe de ser ensimesmada e pode abrir-se a diálogos artísticos frutuosos.
Trabalhando o ferro, Chafes revela presenças inquietantes em espaços que as prolongam ou reverberam, que ora nos transportam para zonas de leveza ora irrompem como instrumentos de uma violência que parece vir do fundo dos tempos.
Desde logo, o filme de Trabulo trata de transportar para o cinema essa experiência do tempo: o tempo do trabalho no ateliê, um tempo do olhar e do estar e da circulação pelos lugares amados ou escolhidos como referenciais pelo artista, mas também a relatividade do tempo artístico, na exata medida em que as afinidades eletivas de Chafes nada têm que ver com proximidades geracionais.
A dado momento, o escultor diz: "A arte não é para os vivos, mas para os mortos, para o imenso povo dos mortos', e esta, que parece a mais reacionária das afirmações, é apenas a constatação de que os artistas se medem sempre com a arte que os antecedeu e perante ela se posicionam, ao mesmo tempo que a existência na contemporaneidade não significa nenhum consolo mas a simples confirmação de que alguns artistas partilham o mesmo espaço e tempo históricos e que, em muitos casos, só isso os aproxima .
Essa descontinuidade entre o tempo da arte e o tempo histórico anuncia-se em "Durante o Fim" a cada momento, mas no filme também ficamos a conhecer a família cultural e estética do escultor. A influência do romantismo alemão, que durante muito tempo monopolizou o lugar-comum da sua receção crítica, o cineasta Andrei Tarkovski e Arseni, o seu pai poeta, o escritor Heinrich von Kleist e, especialmente, o escultor medieval Tilman Riemenschneider são alguns dos pontos cardeais desse território. A convergência com estes nomes deve ser entendida sobretudo como uma genealogia espiritual e um conjunto de referências éticas e não como influências formais, que não são de todo verificáveis no trabalho de Chafes.
Como pelas palavras e pelas imagens o filme de João Trabulo deixa entrever, a escultura de Rui Chafes permanece perfeitamente aurática e ancorada num princípio de transcendência que recusa radicalmente a banalização do artístico ou a sua dissolução no campo mais alargado das 'imagens'. Essa ideia de que a criação pertence ao domínio da exceção é nele sempre mais bem confirmada e libertada de equívocos pelas próprias obras. Nessa medida, o filme é ainda uma oportunidade para ver algumas das suas esculturas permanentes realizadas fora do país e para perceber como Rui Chafes é um daqueles casos em que a obra é verdadeiramente irredutível ao discurso sobre ela.
.
Celso Martins, Expresso
INCLUI DECLARAÇÕES DO REALIZADOR
Por trás de "Durante o Fim", existe a longa amizade entre o seu realizador, João Trabulo ("Sombras - Um Filme Sonâmbulo", 2007; "Sem Companhia", 2010), e o escultor Rui Chafes. "Rui Chafes é uma pessoa muito discreta", diz-nos Trabulo, "e percebi que teria de pegar nele, enquanto artista com uma visão do mundo, para fazer dele uma personagem no meio de outras imagens e vozes." Segundo o realizador, "Durante o Fim" "é um filme que coloca Rui Chafes num mundo paralelo que não tem nada a ver com o actual, transformanndo-o numa personagem de ficção, um certo cavaleiro." Este é o caminho por onde nos leva "Durante o Fim": não como observadores do método de um artista, mas fazendo-nos mergulhar na recriação do seu imaginário, juntando momentos de trabalho do escultor, a inimitável presença da sua arte em cenários naturais. É a realização do mundo de um artista em cinema.
O filme, terminado em 2003 mas apenas agora estreado, é o resultado de um processo comum de dois criadores. "O filme foi feito por etapas ao longo de três anos", diz-nos Trabulo. "Rui Chafes apresentou-me uma lista sobre aquilo que o filme não deveria ser: um documentário sobre ele sentado em casa, a falar. Começámos a organizar o esquema de trabalho de forma intuitiva: começaram a surgir referências ao romantismo alemão, a Andrei Tarkovski ou Robert Bresson", elementos do universo sensorial de várias áreas artísticas que se concentram na escultura de Chafes. "É um artista completo, como na Renascença", diz-nos o realizador. "O seu trabalho escultórico está enraizado na pintura, na literatura, no cinema ou na história da arte. E quando esta aventura se definiu, tudo se tornou possível."
É o misterioso mundo de Chafes, evocado pela sua arte, que aqui se desvenda: românticos caminhos em florestas adornados pela presença da sua escultura, o artista a trabalhar e vendo a sua escultura enquadrada pela lente, ou como espectador, numa sala de cinema, a ver "Heinrich" , de Helma Sanders-Brahams (1977): a vida de Heinrich von Kleist, no seu calmo e apaixonado caminho até à morte (Kleist suicida-se com a sua amada, em 1811, depois de caminharem juntos até a um dos lagos Wannsee, na Alemanha).
No movimento do filme, encontra-se a sensibilidade comum entre dois criadores que defendem o tempo para encontrar o caminho das imagens. "Rui Chafes contribuiu muito para a minha formação artística: trabalha sozinho no seu atelier, com materiais pesados e difíceis", diz-nos o realizador. "Mas mantém uma finura de espírito no que faz, interesssou-me estar com ele no atelier. Tenho usado o seu método em filmes recentes: o tempo é o nosso único amigo, preciso dele para reflectir ou até errar para que tudo se clarifique." Trabulo inclui a referência próxima de Tarkovski, nomeadamente "Andrei Rublev" (1966), obra inspirada no artista medieval russo. "A peça que Rui Chafes está a desenvolver é inspirada no balão que sobe no início desse filme. Ao mesmo tempo, revela a consciência da tortura que um artista, como Rublev sentia sobre a sua arte, o seu significado e reconhecimento."
Um caminho até à vida
Se a arte de Rui Chafes e as inspirações recriadas no cinema de Trabulo vão ao encontro, por um lado, da sombria e misteriosa ideia da morte é na iluminação do nosso encontro com a sua presença que reconhecemos, por outro, o desejo de vida que inspira a sua criação. "A consciência da morte para Rui Chafes, como para mim, é aquilo que nos mantém acordados", diz Trabulo. "A dada altura, ficamos um apontamento na história da humanidade. Ele tem isso muito presente, sente que o trabalho que executa vem de um passado, mas tenta projectá-lo no futuro. E fá-lo de forma muito serena." A narrativa de "Durante o Fim" é também acompanhada pela voz do artista, que expressa os sentimentos que rodeiam o seu trabalho. O realizador diz-nos que Chafes "escreve muito, e quando trabalha no seu atelier dá a sensação que o faz com vozes do passado, como o imenso 'povo dos mortos' de Genet, que o atormenta ou guia. No filme, tanto Kleist como Rublev aparecem como fantasmas que vigiam o seu trabalho."
E o encontro de passeantes com a arte de Rui Chafes, tal como aqueles que atravessam a floresta no filme e se deparam com a serenidade das suas esculturas, não estará distante do encanto que os espectadores sentem na descoberta de um plano, em cinema, que lhes revela os seus próprios sentidos. Chafes sublinha, em "Durante o Fim", a importância dessse encontro das pessoas com o seu trabalho. "Há um lado de encantamento que está presente na obra dele. E no bom cinema isso também acontece", diz Trabulo. E se é neste que se reúne a temporalidade da vida para a reproduzir, pela arte, numa forma intemporal, o final de "Durante o Fim", o misterioso momento com um "home movie" de Chafes, mostra-nos que, para além de todo o esforço, nenhum de nós se encontra sozinho. "Ao longo do filme", diz-nos Trabulo, "fala-se da morte, da criação e da tortura desta. Mas o seu final fecha-se por um momento muito simples: uma celebração da vida."
.
Francisco Valente, Ípsilon
FESTIVAIS E PRÉMIOS
O filme é uma viagem ao universo artístico, interior e secreto do escultor Rui Chafes. No atelier, território de eleição do artista, percebe-se como tudo acontece: do barulho das máquinas ao silêncio que envolve a concepção e idealização de cada escultura, surgem sons, imagens e vozes de outros tempos.
CRÍTICAS
Vários anos depois (é um filme com data de 2003), e já com um carreira feita nos circuitos alternativos, estreia-se em sala "Durante o Fim", filme de João Trabulo centrado na obra, na figura e no universo de Rui Chafes. Apesar dos oito anos transcorridos desde a sua feitura não se tem perante ele nenhuma sensação de atraso ou de "perda de validade" - o que se calhar já é dizer alguma coisa sobre o filme.
Que é bastante inteligente na maneira de encarar o trabalho de Chafes (até pelo modo como o filma) sem nunca forçar uma "explicação", uma "interpretação" ou qualquer coisa peremptória desse género, remetendo-se para a contemplação e para uma série de "pistas" que vêm mais envolver (envolver o filme, envolver as peças de Chafes) do que "decifrar" seja o que for. Nesse sentido, é um filme que trabalha sobretudo a criação de um ambiente (quase em termos musicais), um ambiente construído com elementos que podem parecer imediatamente mais próximos ou mais remotos do universo de Chafes mas que acabam por encontrá-lo sem margem para dúvidas.
Enquanto a câmara percorre - em travellings ou em planos fixos - as esculturas do artista, a banda de som convoca excertos de diálogos de dois filmes ("Heinrich", de Helma Sanders-Brahms, sobre Kleist, e o "Andrei Roubliov" de Tarkovski). Será fácil compreender, através do filme, porque é que esses filmes, e os mundos que eles transportam, são convocados, mas antes da compreensão é importante o mundo "terminal" (o mundo "durante o fim") que a sua presença vai criando - e nesse mundo, tudo o que é da ordem da arte e da matéria de Chafes ganha um sentido próprio. Pode-se argumentar que há planos a mais, sobretudo na parte final, que abrem para um simbolismo que parece demasiado etéreo para a solidez metálica das peças de Chafes, e criam uma impressão de afectação que o filme conseguira até então evitar. Não impede que "Durante o Fim" seja um filme onde se vê Chafes e, ao mesmo tempo, um olhar autónomo sobre ele.
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Luís Miguel Oliveira, Público
Durante o Fim, de João Trabulo, pode ser visto, antes de mais, como um prolongamento da obra de Rui Chafes ou algo que a complementa de forma relativamente eficaz. Serve de veículo entre o trabalho de escultor e um público. A arte como intermédio da própria arte. Não é que o trabalho artístico precise de legendas, mas este aconchegamento fílmico torna-nos mais próximos da sua beleza e eventualmente da sua essência. Do escultor e do seu discurso. Há um entendimento latente entre João Trabulo e Rui Chafes. Mas o jogo não se dá ao mesmo nível. O filme não foi uma encomenda, mas antes uma opção do cineasta que quis ir ao encontro do que admirava, porventura na tentativa de encontra pistas para o desvendar. Há assim uma nobre posição de humildade do realizador, que se submete por respeito ao universo do escultor, recusando, à partida, qualquer espécie de protagonismo ou toque de personalidade que não sirva o propósito máximo de mostrar Rui Chafes. De certa forma, este não é apenas um filme sobre Rui Chafes, mas um filme do próprio Rui Chafes.
Contudo, conhecendo a ainda curta obra de João Trabulo, apercebemo-nos de que há aqui uma coincidência formal, que não será certamente por acaso. Ou seja, este fascínio por Rui Chafes conjuga-se na personalidade fílmica do próprio Trabulo. Percebe-se bem as semelhanças, o estilo desenhado, sempre sóbrio e contemplativo, se revermos, por exemplo, Sombras - Um Filme Sonâmbulo, que fez a partir de Teixeira de Pascoaes. Mas mesmo em relação a Sem Companhia, que talvez seja a sua melhor obra enquanto realizador, tem pelo menos em comum essa sobriedade e a opção por planos fixos. Só que se em Sem Companhia a solução vinha do constrangimento espacial, em é uma opção estética clara.
O universo de Rui Chafes, a sua relação com a natureza, não evocam curiosamente a portuguesa saudade, mas antes uma melancolia típica dos climas do centro da Europa. Daí se encaixe neste mundo outros filmes, de que Trabulo se socorre para pintar o seu, do romantismo alemão e de Tarkovski. As obras estão lá por uma afinidade estética, mas também por uma necessidade complementar de entender a escultura de Chafes a partir das suas raízes mais ocultas.
Tudo isto nos conduz ao encontro com o escultor e as suas palavras que de alguma forma o explicam. "O artista tem a missão de transportar a palavra, ou a chama, ou como lhe quiserem chamar.... transportar isso intacto e transmitir a outras pessoas", assim se define Rui Chafes no filme. E diz mais: "O artista, com a sua consciência especial do mundo, vê as coisas antes dos outros e oferece-as", com dotes promontórios. Contudo afirma: "Acho que a arte não é para o futuro, é para o passado; não é para os vivos, é para os mortos, como diz Genet, para o imenso povo dos mortos".
João Trabulo seguiu Rui Chafes durante três anos para nos oferecer uma obra contemplativa, que tenta mostrar a arte pelo lado interior, fazendo muito mais do que descrever descrever o seu método de trabalho ou procurar leituras rápidas. Durante o Fim abre-nos os olhos para a escultura de Rui Chafes.
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Manuel Halpern, Visão
Há pelo menos duas maneiras de fazer um documentário sobre um artista. Uma, de carácter apologético, consiste em mostrar exaustivamente a obra nas suas diferentes fases criativas, rodeando-a de depoimentos de críticos e de especialistas para melhor a legitimar e juntando uma dimensão biográfica, tanto mais útil se esta tiver uma tonalidade heroica. A outra prescinde de quase tudo isto e vai direta à iluminação da própria visão do artista, usando o discurso na primeira pessoa e convocando tudo aquilo (e só aquilo) que ajude a clarificar esse seu universo.
João Trabulo, que, entre outros trabalhos, realizou já documentários sobre Fernando Lanhas e Teixeira de Pascoaes, opta, e bem, neste filme de 2004 - "Durante o Fim", que, por motivos associados à produção e à distribuição, só agora é estreado -, pela segunda possibilidade ao aproximar-se do escultor Rui Chafes.
Aprecie-se ou não a obra que este criador vem construindo desde que, ainda nos anos 80, começou a expor, uma coisa é certa: é notório que, como poucos, se trata de um artista que joga de acordo com as suas próprias regras. Isso deve-se menos à teimosia e coerência de um programa do que à existência de uma visão artística tão consolidada ou imanente que nunca se perde ou desvia para servir modas ou tendências conjunturais. Porém, como mostra a brilhante exposição, em colaboração com Orla Barry, que está neste momento no Museu Berardo (ou a intervenção que realizou com Vera Mantero para a Bienal de Veneza de 2004), essa visão está longe de ser ensimesmada e pode abrir-se a diálogos artísticos frutuosos.
Trabalhando o ferro, Chafes revela presenças inquietantes em espaços que as prolongam ou reverberam, que ora nos transportam para zonas de leveza ora irrompem como instrumentos de uma violência que parece vir do fundo dos tempos.
Desde logo, o filme de Trabulo trata de transportar para o cinema essa experiência do tempo: o tempo do trabalho no ateliê, um tempo do olhar e do estar e da circulação pelos lugares amados ou escolhidos como referenciais pelo artista, mas também a relatividade do tempo artístico, na exata medida em que as afinidades eletivas de Chafes nada têm que ver com proximidades geracionais.
A dado momento, o escultor diz: "A arte não é para os vivos, mas para os mortos, para o imenso povo dos mortos', e esta, que parece a mais reacionária das afirmações, é apenas a constatação de que os artistas se medem sempre com a arte que os antecedeu e perante ela se posicionam, ao mesmo tempo que a existência na contemporaneidade não significa nenhum consolo mas a simples confirmação de que alguns artistas partilham o mesmo espaço e tempo históricos e que, em muitos casos, só isso os aproxima .
Essa descontinuidade entre o tempo da arte e o tempo histórico anuncia-se em "Durante o Fim" a cada momento, mas no filme também ficamos a conhecer a família cultural e estética do escultor. A influência do romantismo alemão, que durante muito tempo monopolizou o lugar-comum da sua receção crítica, o cineasta Andrei Tarkovski e Arseni, o seu pai poeta, o escritor Heinrich von Kleist e, especialmente, o escultor medieval Tilman Riemenschneider são alguns dos pontos cardeais desse território. A convergência com estes nomes deve ser entendida sobretudo como uma genealogia espiritual e um conjunto de referências éticas e não como influências formais, que não são de todo verificáveis no trabalho de Chafes.
Como pelas palavras e pelas imagens o filme de João Trabulo deixa entrever, a escultura de Rui Chafes permanece perfeitamente aurática e ancorada num princípio de transcendência que recusa radicalmente a banalização do artístico ou a sua dissolução no campo mais alargado das 'imagens'. Essa ideia de que a criação pertence ao domínio da exceção é nele sempre mais bem confirmada e libertada de equívocos pelas próprias obras. Nessa medida, o filme é ainda uma oportunidade para ver algumas das suas esculturas permanentes realizadas fora do país e para perceber como Rui Chafes é um daqueles casos em que a obra é verdadeiramente irredutível ao discurso sobre ela.
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Celso Martins, Expresso
INCLUI DECLARAÇÕES DO REALIZADOR
Por trás de "Durante o Fim", existe a longa amizade entre o seu realizador, João Trabulo ("Sombras - Um Filme Sonâmbulo", 2007; "Sem Companhia", 2010), e o escultor Rui Chafes. "Rui Chafes é uma pessoa muito discreta", diz-nos Trabulo, "e percebi que teria de pegar nele, enquanto artista com uma visão do mundo, para fazer dele uma personagem no meio de outras imagens e vozes." Segundo o realizador, "Durante o Fim" "é um filme que coloca Rui Chafes num mundo paralelo que não tem nada a ver com o actual, transformanndo-o numa personagem de ficção, um certo cavaleiro." Este é o caminho por onde nos leva "Durante o Fim": não como observadores do método de um artista, mas fazendo-nos mergulhar na recriação do seu imaginário, juntando momentos de trabalho do escultor, a inimitável presença da sua arte em cenários naturais. É a realização do mundo de um artista em cinema.
O filme, terminado em 2003 mas apenas agora estreado, é o resultado de um processo comum de dois criadores. "O filme foi feito por etapas ao longo de três anos", diz-nos Trabulo. "Rui Chafes apresentou-me uma lista sobre aquilo que o filme não deveria ser: um documentário sobre ele sentado em casa, a falar. Começámos a organizar o esquema de trabalho de forma intuitiva: começaram a surgir referências ao romantismo alemão, a Andrei Tarkovski ou Robert Bresson", elementos do universo sensorial de várias áreas artísticas que se concentram na escultura de Chafes. "É um artista completo, como na Renascença", diz-nos o realizador. "O seu trabalho escultórico está enraizado na pintura, na literatura, no cinema ou na história da arte. E quando esta aventura se definiu, tudo se tornou possível."
É o misterioso mundo de Chafes, evocado pela sua arte, que aqui se desvenda: românticos caminhos em florestas adornados pela presença da sua escultura, o artista a trabalhar e vendo a sua escultura enquadrada pela lente, ou como espectador, numa sala de cinema, a ver "Heinrich" , de Helma Sanders-Brahams (1977): a vida de Heinrich von Kleist, no seu calmo e apaixonado caminho até à morte (Kleist suicida-se com a sua amada, em 1811, depois de caminharem juntos até a um dos lagos Wannsee, na Alemanha).
No movimento do filme, encontra-se a sensibilidade comum entre dois criadores que defendem o tempo para encontrar o caminho das imagens. "Rui Chafes contribuiu muito para a minha formação artística: trabalha sozinho no seu atelier, com materiais pesados e difíceis", diz-nos o realizador. "Mas mantém uma finura de espírito no que faz, interesssou-me estar com ele no atelier. Tenho usado o seu método em filmes recentes: o tempo é o nosso único amigo, preciso dele para reflectir ou até errar para que tudo se clarifique." Trabulo inclui a referência próxima de Tarkovski, nomeadamente "Andrei Rublev" (1966), obra inspirada no artista medieval russo. "A peça que Rui Chafes está a desenvolver é inspirada no balão que sobe no início desse filme. Ao mesmo tempo, revela a consciência da tortura que um artista, como Rublev sentia sobre a sua arte, o seu significado e reconhecimento."
Um caminho até à vida
Se a arte de Rui Chafes e as inspirações recriadas no cinema de Trabulo vão ao encontro, por um lado, da sombria e misteriosa ideia da morte é na iluminação do nosso encontro com a sua presença que reconhecemos, por outro, o desejo de vida que inspira a sua criação. "A consciência da morte para Rui Chafes, como para mim, é aquilo que nos mantém acordados", diz Trabulo. "A dada altura, ficamos um apontamento na história da humanidade. Ele tem isso muito presente, sente que o trabalho que executa vem de um passado, mas tenta projectá-lo no futuro. E fá-lo de forma muito serena." A narrativa de "Durante o Fim" é também acompanhada pela voz do artista, que expressa os sentimentos que rodeiam o seu trabalho. O realizador diz-nos que Chafes "escreve muito, e quando trabalha no seu atelier dá a sensação que o faz com vozes do passado, como o imenso 'povo dos mortos' de Genet, que o atormenta ou guia. No filme, tanto Kleist como Rublev aparecem como fantasmas que vigiam o seu trabalho."
E o encontro de passeantes com a arte de Rui Chafes, tal como aqueles que atravessam a floresta no filme e se deparam com a serenidade das suas esculturas, não estará distante do encanto que os espectadores sentem na descoberta de um plano, em cinema, que lhes revela os seus próprios sentidos. Chafes sublinha, em "Durante o Fim", a importância dessse encontro das pessoas com o seu trabalho. "Há um lado de encantamento que está presente na obra dele. E no bom cinema isso também acontece", diz Trabulo. E se é neste que se reúne a temporalidade da vida para a reproduzir, pela arte, numa forma intemporal, o final de "Durante o Fim", o misterioso momento com um "home movie" de Chafes, mostra-nos que, para além de todo o esforço, nenhum de nós se encontra sozinho. "Ao longo do filme", diz-nos Trabulo, "fala-se da morte, da criação e da tortura desta. Mas o seu final fecha-se por um momento muito simples: uma celebração da vida."
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Francisco Valente, Ípsilon
FESTIVAIS E PRÉMIOS
2006 The European Union Countries Documentaries Panorama, Rússia
2005 Museum Folkwang, Essen, Alemanha
2004 Kunsthallen Nikolaj, Copenhagen, Dinamarca
2004 Festival do Rio de Janeiro, Brasil
2004 New York Independent Film Festival, Nova Iorque, EUA
2004 Festival International du Film sur L’Art, Montreal, Canadá
2003 Esbjerg Kunstmuseum, Esbjerg, Dinamarca
2003 XII Festival Luso-Brasileiro de Sta. Maria da Feira – Prémio Revelação
2003 Selecção Oficial Festival Internacional de Turim – Itália
Realizador: João Trabulo
Elenco: Markus Ambach, Orla Barry, Rui Chafes
Director de Fotografia: Miguel Carvalho
Montagem: Patrícia Saramago
Som: Philippe Morel
Origem: Portugal
Ano: 2003
Duração: 70'
.2005 Museum Folkwang, Essen, Alemanha
2004 Kunsthallen Nikolaj, Copenhagen, Dinamarca
2004 Festival do Rio de Janeiro, Brasil
2004 New York Independent Film Festival, Nova Iorque, EUA
2004 Festival International du Film sur L’Art, Montreal, Canadá
2003 Esbjerg Kunstmuseum, Esbjerg, Dinamarca
2003 XII Festival Luso-Brasileiro de Sta. Maria da Feira – Prémio Revelação
2003 Selecção Oficial Festival Internacional de Turim – Itália
Realizador: João Trabulo
Elenco: Markus Ambach, Orla Barry, Rui Chafes
Director de Fotografia: Miguel Carvalho
Montagem: Patrícia Saramago
Som: Philippe Morel
Origem: Portugal
Ano: 2003
Duração: 70'
Durante o Fim antecipa e inaugura o
Ciclo Cinema e Belas-Artes ao fim da tarde
Museu Municipal, Sábados, 18h30
Outubro
Dia 1
Joana Vasconcelos, de Joana Cunha Ferreira, 2008, 52'
Dia 8
Pedro Calapez, de Luís Miguel Correia, 2009, 48'
Dia 15
Helena Almeida, de Joana Ascensão, 2006, 50'
Dia 22
Lourdes Castro, de Catarina Mourão, 2009, 70'
Dia 29
Bartolomeu Cid dos Santos, de Jorge Silva Melo, 2009, 61'
Novembro
Dia 5
António Sena, de Jorge Silva Melo, 2009, 59'
Dia 12
Ângelo Sousa, de Jorge Silva Melo, 2010, 60'
Dia 19
Ana Vieira, de Jorge Silva Melo, 2011, 56'
Dia 26
Nikias Skapinakis, de Jorge Silva Melo, 2008, 78'
Apoio
Câmara Municipal de Faro
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