A Exposição A Cada Um O Seu Cinema inaugura 2ªf às 21h no IPJ.

A 6 de Abril de 1956 nascia o Cineclube de Faro através da sua primeira sessão de cinema no Cinema Santo António.

Passados 54 anos de actividade ININTERRUPTA, celebramos a efeméride com várias manifestações.

DEMOS A PALAVRA AOS SÓCIOS!, e foram eles a escolher, através de votação durante o mês de Março, os filmes a fazer parte do Ciclo habitual no IPJ (65 sócios participaram) e as fotos (54 sócios participaram) de filmes exibidos ao longo destas décadas - fotos que fazem parte das 742 que pertencem ao nosso espólio - a ser expostas na Galeria do IPJ.

Assim, A CADA UM O SEU CINEMA não é só um título nem um mote - é a REALIDADE deste mês de Abril que se avizinha.

2ªf, dia 5 de Abril, inaugura-se no IPJ, às 21h, na presença do Eng Macário Correia, Presidente da Câmara, Drª Sara Brito, Directora do IPJ e outras entidades, a Exposição "A Cada Um O Seu Cinema", seguindo-se a sessão de cinema inaugural do Ciclo, com o filme Cada um o seu Cinema, constituído por 33 curtas-metragens dos mais importantes cineastas do mundo - de David Lynch a Manoel de Oliveira, de David Cronenberg a Jane Campion - de homenagem às salas de cinema e à experiência cinematográfica.

Mas sobre o Ciclo falaremos em post a seguir.

Por enquanto, esta certeza:

A EXPOSIÇÃO ESTÁ LINDA!!
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Abril 2010 - 54º Aniversário: Ciclo A Cada Um O Seu Cinema

Dia 5
CADA UM O SEU CINEMA


33 Realizadores

Um filme absolutamente único, realizado por ocasião dos 60 anos do Festival de Cannes, o festival de cinema mais importante do mundo, reúne o modo como 33 cineastas de 25 países olham o cinema e as salas de cinema, lugar de comunhão dos cinéfilos do mundo inteiro. Objecto cinematográfico imperdível, autêntico compêndio do estado do mundo do cinema e das singularidades de cada cineasta. Ad curtas-metragens que o compõem são realizados por autores como David Cronenberg, Jean-Pierre et Luc Dardenne, Nanni Moretti, Wong Kar-Wai, Abbas Kiarostami, Takeshi Kitano, Ken Loach, Walter Salles, Gus Van Sant, David Lynch, Manoel de Oliveira...



Título Original: Chacun son Cinéma
Realização:
Theo Angelopoulos - Three minutes
Olivier Assayas – Upsurge
Bille August - The Last Dating Show
Jane Campion - The Lady Bug
Youssef Chahine - 47 Years Later
Chen Kaige - Zhanxiou Village
David Cronenberg - At the Suicide of the Last Jew in the World in the Last Cinema in the World
Jean-Pierre & Luc Dardenne – Darkness
Manoel De Oliveira - Sole Meeting
Raymond Depardon - Open-Air Cinema
Atom Egoyan - Artaud Double Bill
Amos Gitai- Le Dibbouk de Haifa
Hou Hsiao-Hsien - The Electric Princess Picture House
Alejandro González Iñarritu - Anna
Aki Kaurismäki- The Foundry
Abbas Kiarostami - Where is my Romeo?
Takeshi Kitano - One Fine Day
Andrei Konchalovsky - In the Dark
Claude Lelouch- The Cinema Around the Corner
Ken Loach - Happy Ending
David Lynch – Absurda
Nanni Moretti - Diary of a Movie-Goer
Roman Polanski - Cinéma érotique
Raúl Ruiz- The Gift
Walter Salles- 5.557 Miles From Cannes
Elia Suleiman - Awkward
Tsai Ming-Liang - Its a Dream
Gus Van Sant - First Kiss
Lars Von Trier – Occupations
Wong Kar Wai - I Travelled 9000 km to Give it to You
Zhang Yimou - Movie Night
Origem: França
Ano de estreia: 2007
Duração:100’



Dia 12
O LAÇO BRANCO*


Michael Haneke


A primeira coisa que salta à vista em O Laço Branco, Palma de Ouro de Cannes 2009, é a sua forma majestosa, um pouco ostensiva: um preto e branco sublime numa ampla profundidade de campo, com graduações a negro e elipses hábeis, a ausência total de música (salvo quando as personagens entram em cena), uma filmagem de precisões evidentes e de um rigor imponente, dos actores à equipa técnica (as personagens são muitas e mesmo as crianças-actores são incontestáveis): aqui, tudo é perfeitamente fluido. Ora revela-se rapidamente que esta clareza serve não só para retirar as máscaras e desvendar certas verdades escondidas e desagradáveis, mas também, paradoxalmente, para confundir o olhar e os sentidos...





Título original: Das weisse Band
Realização e Argumento: Michael Haneke
Interpretação: Christian Friedel, Ernst Jacobi, Leonie Benesch, Ulrich Tukur, Ursina Lardi, Fion Mutert
Direcção de Fotografia: Christian Berger
Montagem: Monika Willi
Origem: Alemanha/Áustria/ França/ Itália
Ano de estreia: 2009
Duração: 144’



Dia 19
MOON – O OUTRO LADO DA LUA*

Duncan Jones


Um ‘pequeno’ (mas apenas em orçamento) filme independente de ficção-científica que merece a data apontada na agenda para os fãs do género, um dos filmes sensação do ano em vários festivais do mundo. Moon é um filme feito com paixão ao género, uma antítese a tudo que vemos de ficção-científica nos dias de hoje, e inspirado nos grandes clássicos dos anos 70 e 80, tais como 2001: Uma Odisseia no Espaço de Kubrick ou Solaris de Tarkovsky.








Título original: Moon
Realização: Duncan Jones
Argumento: Duncan Jones e Nathan Parker
Interpretação: Sam Rockwell, Kevin Spacey, Dominique McElligott, Rosie Shaw, Adrienne Shaw, Kaya Scodelario
Direcção de Fotografia: Gary Shaw
Música: Clint Mansell
Montagem: Nicolas Gaster
Origem: Reino Unido
Ano de estreia: 2009
Duração: 97’



Dia 26
ANDANDO*


Hirokazu Kore-Eda

É uma delicada e subtil história de família contada com uma naturalidade tanto mais desarmante quanto não escamoteia, de todo, o mal que as famílias fazem a si próprias, a crueldade que insistem em infligir àqueles que não têm culpa nenhuma a não ser não se conformarem à imagem que se quer ter deles. Um filme que usa de modo inteligentíssimo o peso dos rituais de família para revelar a extensão das correntes subterrâneas que dilaceram os Yokoyama, através de pormenores discretos, diálogos aparentemente casuais, olhares, ausências... Koreeda afirma-se como um dos mais óbvios herdeiros do cinema clássico japonês - o de Mizoguchi e Kurosawa, mas também o de Ozu e Naruse que Andando parece encontrar as suas principais fontes de inspiração.




Título Original: Aruitemo Aruitemo
Realização: Hirokazu Kore-Eda
Argumento Hirokazu Kore-Eda
Interpretação: Hiroshi Abe, Yui Natsukawa, Kazuya Takahashi, Shohei Tanaka, Miyuri Kudo, Mitsuhiro Tamura
Direcção de Fotografia: Yutaka Yamazaki
Música: Gontiti
Montagem: Hirokazu Kore-Eda
Origem: Japão
Ano de estreia: 2008
Duração: 114’


* Filmes escolhidos por votação dos sócios




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O Cinema Português não ficou esquecido no nosso 54º aniversário. Claro está.

A CADA UM O SEU CINEMA PORTUGUÊS


*Presença do realizador

21h30

Biblioteca Municipal


Dia 9

VISITA GUIADA

Tiago Hespanha


Todos os anos vêm a Portugal milhões de turistas à descoberta de um pais, um povo e uma cultura. Muitos vão contactando com vários guias-intérpretes incumbidos de os guiar nessa descoberta. Estes guias transmitem uma história e uma identidade nacional. A forma como constroem essa narrativa, recorrendo a elementos e conhecimentos das mais diversas origens, aponta, antes de mais, para a ideia que temos de nós mesmos e para como nos queremos apresentar aos outros. Este filme toma como ponto de partida a construção dessa identidade e a sua leitura.


Obteve o Prémio do Publico Curta-Metragem IndieLisboa 2009.



SANTOS DOS ÚLTIMOS DIAS*

Leonor Noivo

Andam aos pares de porta em porta e entram nas casas de quem os quer ouvir. Discutem as questões da fé, da família, do recato, da religião, da existência. O modelo que perseguem assemelha-se a uma prova pessoal, iniciática, durante os dois anos que passam longe de casa. Os Elderes e as Sisters, jovens missionários do movimento Mórmon, saem do seu país, estudam outra língua e outra cultura, absorvidos por esse espírito de missão. Aspiram ser os exemplos dos rapazes e raparigas perfeitos.

Selecção oficial do IndieLisboa 2009.


Dia 16
PÁRE, ESCUTE E OLHE*

Jorge Pelicano


Pare, Escute, Olhe retrata uma região transmontana despovoada, vítima de promessas políticas não cumpridas. Na linha ferroviária do Tua, o comboio viaja para uma morte iminente. Em nome da progresso, a construção da barragem de Foz-Tua, ameaça submergir um património único que faz parte da identidade transmontana.


Pare, Escute, Olhe, realizado por Jorge Pelicano, venceu seis prémios nacionais, incluindo Melhor Documentário Português no DocLisboa 2009 e o Grande Prémio do Ambiente no CineEco 2009 em Seia.







IPJ

Dia 23
OS SORRISOS DO DESTINO*


Fernando Lopes


Irónico e actual. Os Sorrisos do Destino, novo filme de Fernando Lopes, é um retrato fiel das relações dos dias de hoje e da ‘interferência’ das novas tecnologias. Com olhos postos nas mensagens escritas e indiscrições dos telemóveis – que até podem denunciar relações extraconjugais –, a análise mordaz de Lopes faz-se em jeito autobiográfico, com Ana Padrão e Rui Morisson a lembrarem a ligação desfeita do realizador com Maria João Seixas. No início do filme, ficara o aviso: 'Qualquer semelhança com a realidade é pura ficção.' Mas, logo de seguida: 'O real ultrapassa a ficção.'









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Teorema de Pasolini. Hoje, 18h, Loulé: aqui tão perto.

Auditório do Instituto D. Afonso III (Convento Espírito Santo). Entrada livre.

Palavras do realizador
A história da ideia de Teorema é muito curiosa e muito significativa. Há cerca de três anos comecei a escrever, pela primeira vez na minha vida, coisas de teatro; escrevi quase simultaneamente seis tragédias em verso e Teorema, era, como ideia inicial, uma tragédia em verso, a sétima. Já tinha começado a elaborá-la como tragédia, como drama em verso; depois senti que o amor entre este visitante divino e estes personagens burgueses era muito mais belo se fosse silencioso. Esta ideia fez-me pensar que talvez fosse melhor fazer disso um filme, mas parecia-me que, como filme, era irrealizável, e num primeiro momento, desmantelei uma narrativa que acabou por ficar muito esquemática e muito tosca num primeiro borrão; depois elaborei-a como argumento e ao mesmo tempo modifiquei também este primeiro esquema de notas que deram origem a uma obra literária bastante autónoma. Portanto Teorema tem dois momentos: um primeiro momento teatral que depois desapareceu, e um segundo momento que se dividiu em dois ramos: um cinematográfica, outro literário. Trata-se pois, de uma relação estranhíssima entre a literatura e cinema. (...)
O livro-Teorema nasceu, como sobre fundo de ouro, pintado com a mão direita, enquanto com a mão esquerda pintava um fresco numa grande parede (o filme homónimo). Numa tal natureza ambígua, não sei dizer sinceramente qual é a prevalecente: se a literária ou se a fílmica. (...)
Teorema fala também duma experiência religiosa. Trata-se da chegada de um visitante divino ao seio de uma família burguesa. Tal, visita destrói tudo aquilo que os burgueses sabiam de si próprios; aquele hóspede veio para destruir. (...)

O meu desconhecido - interpretado por Terence Stamp, explicitado pela presença da sua beleza - não é Jesus inserido num contexto actual, também não é Eros identificado com Jesus, é o mensageiro do Deus imperioso, de Jeová, que, através dum sinal concreto, duma presença misteriosa, faz sair os mortais da sua enganadora segurança. É o Deus que destrói a boa consciência adquirida sem custo, ao abrigo da qual vivem, ou antes, vegetam os bem-pensantes, os burgueses, numa falsa ideia de si próprios. (...)
É uma hipótese que pressupõe: 1) a falta de autenticidade da vida média burguesa italiana, isto é da burguesia em geral; 2) a impossibilidade do burguês italiano. dum modo geral, de resolver os seus próprios problemas. E, de facto, mesmo no caso de alguma coisa de autêntico irromper nos seus hábitos, de os destruir, de os deitar por terra, o mais que acontece é que o burguês natural, inconsciente de o ser, que vive a burguesia com naturalidade, torna-se um indivíduo problemático, ou seja, entra em crise - põe-se problemas que não pode no entanto, dentro do seu próprio âmbito, resolver. Assim, a chegada deste jovem à família burguesa provoca no filho uma veleitária vocação artística: tornar-se-á um pintor falido. Na rapariga uma nevrose, e acaba numa casa de saúde, numa espécie de greve dolorosa e angustiante; a mãe tem uma vida destrambelhada, um pouco por erotomania, um pouco com remorsos e acaba por voltar à igreja (à igreja tradicional, oficial) no fundo, aridamente. O pai dá tudo o que tem, despoja-se como. S. Francisco, mas isto não basta, porque até uma solução do tipo ascético - dada a mentalidade, a formação, o carácter deste personagem - agora já não pode ser tão exaustiva como o foi para S. Francisco, na Idade Média.
O único personagem que de algum modo se salva é a criada desta família, que veio dos campos da Lombardia, muito pobre, e por isso vive num mundo pré-industrial, pré-burguês, de alguma forma bíblico. (...) E portanto é a única em estado de perceber a autenticidade, o sagrado. Porém, é como um entalhe histórico, no fundo também está fora da história.
A conclusão do filme é portanto, por um lado, pessimista, por outro suspensa. E fica suspensa, porque no exacto momento em que fiz este filme, apresento objectivamente estes problemas da burguesia, insolúveis no seio da própria burguesia. A burguesia está a viver uma série de experiências que provavelmente a transformarão profundamente, e farão dela uma coisa diferente daquilo que nós estamos habituados a conhecer. (...)
A relação entre falta de autenticidade e autenticidade é impossível no plano da comunicação linguística: na realidade, o jovem hóspede não fala aos outros personagens, não tenta convencê-los com palavras, mas tem com todos uma relação de amor. (...) todo o filme é uma alegoria, e a relação erótica é sempre simbólica, e nunca naturalística ou realista.
Quero dizer que o erotismo do filme se identifica com a sua «linguagem». (...) a relação muda e o sistema de sinais eróticos constituem o único meio de comunicação dos personagens do filme.
Pier Paolo Pasolini

Análise Crítica
É um dos filmes clássicos do mestre do cinema italiano, Píer Paolo Pasolini. Produzida em 1968, roteiro (e depois livro) do próprio Pasolini, expressa uma perspectiva particular da crise estrutural do capital a partir de uma de suas principais instâncias sócio-reprodutivas: a família. O que Pasolini nos apresenta é o relato de dissolução de uma família burguesa a partir da chegada de um misterioso hóspede. É a representação estética da crise de reprodução social do capital a partir de um subgênero do cinema: o drama de família (por exemplo, só na década passada, podemos destacar: “Beleza Americana”, “Festa em Família”, “Tempestade de Gelo”, “Felicidade”).

Como grupo social primordial, a família é uma das mais importantes instâncias sócio-reprodutivas do sistema do capital como forma de metabolismo societário. A partir da crise orgânica do capital, ela tende a dissolver-se ou a assumir uma forma crítica. Na verdade, o seu drama interior é o drama da reprodução do sistema sócio-metabólico do capital. O cinema soube tratar disso com desenvoltura, principalmente a partir da última metade da década de 1960. Em Teorema, Pasolini trata de um processo de crise estrutural que ainda estava em seus primórdios, mas que ele soube apreender com genialidade (de certo modo, é a partir de meados de 1970 que se desenvolve a crise estrutural do capital com múltiplos desdobramentos na sociabilidade burguesa). Em Teorema, o drama de família é o próprio drama do esgotamento da sociabilidade burguesa. (...)

Deste modo, “Teorema” é um drama familiar que expressa, em si, de forma alegórica, a tragédia da sociabilidade burguesa em crise terminal. É a partir da presença – parousia – do hóspede misterioso, que cada personagem nega (e afirma, ao mesmo tempo) a si próprio.

A figura do hóspede é uma representação alegórica, um quase-Messias, cuja passagem pelo espaço familiar anuncia o que estava pressuposto: a dissolução da ordem do mundo burguês. É como um Cristo que veio trazer a desordem e não a ordem para o mundo. Seria Teorema uma versão profana de um outro filme de Pasolini, O Evangelho Segundo São Mateus (de 1964)? Inclusive, tanto a chegada do hóspede, como sua partida, é anunciada por um carteiro quase-angelical, chamado Ângelo (de Anjo?), sorridente, quase um anjo caído, cuja simpatia se contrasta com a sisudez e circunspeção da empregada que o recepciona. Pasolini é um diretor (e escritor) genial e maldito, pois profaniza algo que é caro à tradição conservadora italiana, o imaginário católico (o nome do pai em Teorema é Paulo e do filho, Pedro, e da mãe, Lucia...). Mas ele se apropria desse imaginário barroco para traduzir a crise da sociabilidade burguesa, sua venalidade e barbárie interior.

Pasolini trabalha com alegorias: a dissolução lenta da família é representada pela erosão continua de um terreno arenoso, o deserto que o industrial Paolo ira trilhar, no final do filme. O ambiente da mansão é simples, vazio, expressando a banalidade da existência burguesa. A absoluta incapacidade de comunicação no mundo burguês, do fetichismo das mercadorias, é representada pela relação silenciosa dos personagens da família. Não existe diálogo entre eles. A única relação que existe entre os personagens é consigo mesmo, com seus papéis e impostações de classe. O hóspede misterioso é um jovem regatado, também quase-angelical, e que vive imerso em sua leitura de Rimbaud.

O hóspede implode tais papeis e impostações sociais dos membros da família: o filho assume seu lado artístico; a filha Odetta, jovem introvertida, aficcionada pelo pai e pelos valores que a família representa, descobre o outro lado da vida; a matrona Lucia encontra no hóspede um escape para sua monotonia sexual; a empregada encontra no hóspede o verdadeiro senhor de seus desejos reprimidos e o industrial Paolo, seu canal de interlocução interior. O desejo na narrativa de “Teorema” é subversivo, pois o que cada personagem descobre é uma dimensão oculta do desejo, reprimida pelas relações sociais burguesas. É a projeção do desejo que expõe (e decompõe) a interioridade de cada um. O mediador do desejo reprimido é o hóspede. É a antítese que nega a personalidade-fetiche de cada membro da família burguesa.

O drama da família que Pasolini nos apresenta é posto no interior de uma perspectiva de classe. Pasolini é um diretor de visão de mundo marxista. A dissolução da família é a dissolução da hegemonia burguesa na Itália, de fundo católica; da sua incapacidade de conduzir a reprodução social, representada pelo elo orgânico da família. Em Teorema, Pasolini se utiliza bastante de alegorias. Quando Paolo, o industrial, renuncia à fábrica, temos a verdadeira representação da incapacidade hegemônica e produtiva da burguesia. (...)

Na crise estrutural do capital, a burguesia como “classe produtora” torna-se incapaz de encontrar a representação de si mesma. Logo no inicio do filme, num diálogo entre operários, surge a pergunta se todos poderiam se tornar burgueses, patrões de si mesmo. É a idéia da própria dissolução de uma identidade de classe. Deste modo, Teorema, de Píer Paolo Pasolini, é um filme visionário, pois, em 1968, conseguiu apreender o que, diante da lógica da financeirização, é a verdade do capitalismo global: a burguesia, como “classe produtiva”, perde sua identidade social, está despedia de si, vagando pelo deserto. O capital financeiro, ao criar a ilusão de que todos podem ser “burgueses”, ao possuírem ações de empresas, contribui para a sintomatologia de uma crise estrutural do capital e de suas representações de classe, inclusive, de classe produtiva (a burguesia).

Finalmente, é importante salientar o seguinte: o filme Teorema, de Pier Paolo Pasolini, nos remete a um dos traços marcantes da nova etapa de desenvolvimento capitalista que emergiria com a crise estrutural do capital a partir da década de 1970: a expansividade acelerada do metabolismo social da forma-mercadoria, expressa em valores-fetiches, expectativas e utopias de mercado capazes de desefetivar o ser genérico do homem.

Ora, Pasolini é um critico voraz do americanismo como cultura da perversidade humano-genérico. Por exemplo, seu último filme - Saló ou Os 120 dias de Sodoma, de 1975, é não apenas uma critica incisiva (e chocante) do fascismo, mas pode ser lido também como uma critica radical do "capitalismo de consumo" que, como a perversão sádica, promove a gratificação íntima espúria ao mesmo tempo que desefetiva o ser genérico do homem.

Crise e expansividade – eis um dos traços característicos da ordem burguesa. A expansividade capitalista que emerge com a globalização neoliberal é sintoma irremediável da crise estrutural do capital. A ordem burguesa se expande como meio de reprodução ampliada do seu metabolismo social estranhado. Por isso, Pasolini, em fins da década de 1960, vislumbrou um dos elementos compositivos da globalização neoliberal que iria se disseminar pelo planeta na próxima década: o aburguesamento universal. “Todos nós nos tornamos burgueses”, exclama ele.

Para Pasolini, o conceito de burguesia não possui apenas uma significação econômica, mas uma significação sócio-metabólica, ligada a valores de consumo. É burguês quem se coloca meramente no horizonte do consumismo inveterado que busca compensar através da obsessiva aquisitividade de produtos-mercadorias, a falta de sentido da vida sob a ordem capitalista. É necessidade intrinseca ao metabolismo social capitalista produzir individualidades frustradas, insatisfeitas e infelizes - no trabalho e nas relações afetivas - que buscam compensar sua deriva pessoal íntima pela prática de consumo obsessiva. O capitalismo liberal produz individuos aquisitivos, vorazes consumidores que não se reconhecem como produtores ou sujeitos humanos capazes de ir além do dado. Assim, o conceito de burguesia em Pasolini remete a um conceito moral. O burguês é a pessoa implicada com valores aquisitivos e instrumentais.

Pasolini, com Teorema, foi um visionário dos tempos neoliberais. É claro que ele criticava a expansão do capitalismo de consumo, que marcou o processo de modernização na Europa meridional, como Itália e França. Foram sociedades burguesas que no pós-guerra se “americanizaram” e incorporaram a lógica da sociedade afluente de mercado. Mas sob a globalização neoliberal, a lógica do aburguesamento iria assumir formas perversas, pois iria se colocar como horizonte de valores no interior de segmentos sociais excluidos das benesses da sociedade de consumo de massa. Isto é, o proletário miseravel também almeja ser burguês. Os "condenados da terra" cultivam o sonho da aquisitividade mercantil. Se o "capitalismo de consumo" criou indivíduos aquisitivos, o "capitalismo da exclusão social" produziu individuos monetários sem dinheiro. Isto é, burgueses ressentidos da sua exclusão irremediável da forma –mercadoria.

Enfim, no filme Teorema, Pasolini expõe a situação grotesca da vida burguesa, vida humana inautentica, imersa no vazio existencial de uma ordem familiar burguesa que se desestrutura em si e para si. Por isso, o filme Teorema trata, segundo Pasolini, de uma condição universal em sua forma extrema.

Giovanni Alves (na íntegra aqui)


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Almoço de 15 de Agosto: uma comédia para compensar o murro no estômago da passada 2ªf. Terminar muito bem estes Europeus no seu melhor!

Almoço de 15 de Agosto, Gianni Di Gregorio, Itália. 2ªf, IPJ, 21h30.
Um filho "aprisionado" por quatro velhas senhoras. Tudo respira cinema e pequena aventura no espaço limitado de um apartamento em Roma.


Depois de muitos anos de glória, desde a emergência do neo-realismo, sobretudo no pós-guerra, com "Roma, Cidade Aberta" e "Libertação" de Rossellini, passando pela vitalidade perene da chamada "comédia à italiana" e prolongando-se até aos 70 com um cinema de autor fortemente personalizado (Visconti, Fellini, Antonioni), o cinema transalpino atravessa um período difícil, sem soluções visíveis, que não a de telefilmes, mais ou menos indistintos. Por isso é de saudar a estreia deste "Almoço de 15 de Agosto", se bem que haja na sua concepção elementos que poderíamos associar a influências televisivas, rapidamente superadas por um inteligente uso do cenário, por personagens complexas e bem construídas e por uma "mise-en-scène" inventiva, a explorar um microcosmo de bairro, numa Roma deserta pelas férias estivas.

A primeira questão a sublinhar é, aliás, o modo brilhante como se convoca a memória cinematográfica italiana. Roma deserta, no Verão, evoca, desde logo, o périplo de Nanni Moretti pelas ruas e lugares quase fantasmáticos, em "Querido Diário", mas Gianni di Gregório nesta sua promissora primeira obra vai mais atrás, aos tempos da comédia de Dino Risi ou Mario Monicelli, com possíveis citações de "A Ultrapassagem", embora aspirando a recompor o tom de género, preferindo-o à remissão para um filme particular. Há ainda no registo nostálgico de um quotidiano ficcionado e nas figurações tragicómicas das velhas senhoras ecos do Ermanno Olmi de "O Emprego" ou de "Lunga Vita a la Signora". O protagonista, meio ocioso, meio obcecado, repega numa caracterização que associamos ao Alberto Sordi de "Uma Vida Difícil", não sem que possamos descartar rimas internas com "Os Inúteis" de Federico Fellini. Do neo-realismo recordamos a alegria de filmar e de viver de um filme como "Domingo de Agosto" de Luciano Emmer. Tudo respira cinema e pequena aventura no espaço limitado de um apartamento claustrofóbico, embora aberto à Cidade Eterna (sintomáticos os belíssimos planos do terraço) entre objectos familiares e fingimentos lúdicos, numa festa permanente que confunde gerações e explora histórias sem futuro e com um passado filtrado por um olhar penetrante e universal.


A abertura, com a leitura de "Os Três Mosqueteiros", numa luz fosca de pintura holandesa de interiores, demonstra esta paixão pela ficção transposta, lida por um filho à velha mãe, caprichosa e "coquette", interessada nos traços fisionómicos de D''Artagnan (inacreditavelmente traduzido, nas legendas portuguesas, por Dartacão, como se Alexandre Dumas não existisse e se reduzisse aos desenhos animados do passado recente) e numa recriação do mundo vivido, a partir da imaginação. A personagem do filho, um perdedor nato, especializado numa sobrevivência feliz, funciona como centro da acção e distribui os seus dotes gastronómicos e protectores, procurando harmonizar o espantoso grupo de orgulhosas senhoras dignas.


E, se a memória é o motor do filme, o esquecimento joga-se nas relações entre as anciãs que, de certo modo, tomam nas mãos os protocolos deste intermezzo de Verão: uma delas foge para fumar e apanhar o ar fresco da noite, outra recusa a dieta, "imposta" pelo filho, e come, às escondidas, a proibida massa no forno; a dona da casa esquece os seus agravos e junta-se à festa. A sexualidade, a comida, os prazeres do convívio tudo vem à colação, num registo de transgressão contagiante e poroso.


Claro que poderíamos acentuar um certo cariz autobiográfico deste filmezinho quase artesanal, em que o realizador assume também o papel do protagonista, filmando a função na casa romana que partilhou com a mãe, durante anos. Mas o que o torna cativante e irresistível é a sua vertente onírica de escape à realidade omnipresente e determinante: um pequeno sonho de um fim-de-semana de Verão, em que tudo se transfigura, tudo reverte para uma carnavalesca imitação de vida.

Mário Jorge Torres, Público

Entrevista

O projecto de O Almoço de 15 de Agosto é antigo, ou este filme é uma ideia recente?
Não, é um projecto já com algum tempo, tenho-o desde o ano 2000. Desde essa altura que queria fazer um filme com senhoras idosas, mas não conseguia o dinheiro. Em 2003, o Matteo Garrone, com o qual colaboro há quase 10 anos e que conhecia a história, disse-me que tinha pedido subsídio para o produzir ao Ministério da Cultura italiano, mas o dinheiro tardava em chegar. Até que em 2007 ele me telefonou a anunciar que, finalmente, havia dinheiro para fazermos Almoço de 15 de Agosto. Não muito, mas havia.

Gostou de ser produzido pelo Matteo Garrone?

Sim, ele tem muita coragem e também me deu muita coragem, porque era difícil fazer um filme destes, com as senhoras que não são actrizes profissionais, com pouco dinheiro. Eu não queria desempenhar o papel principal, mas na última reunião de produção, e perante a falta de dinheiro, toda a gente me disse: "Vais tu fazê-lo!" . E fi-lo, porque nem sequer tive tempo para pensar nisso.
No entanto, estudou representação...

Sim, mas nunca interpretei um papel a sério, apenas fiz pequeníssimas interpretações nos filmes que escrevi para o Matteo. E também fui assistente de realização. Mais nada.
Mas sempre quis ser você a realizá-lo?

Sim, mesmo que não saísse lá muito bem! (risos). Mas sim, apesar de ter acabado por ter sido eu também a interpretá-lo. Eu queria ser o realizador porque há coisas autobiográficas nesta história, há verdade nela. Vivi 10 anos com a minha mãe. A minha família já tinha desaparecido e eu estava com ela por ser filho único, e éramos muito ligados um ao outro. Foi assim que conheci o mundo dos idosos, através das amigas dela, das pessoas que a iam visitar, e passei a gostar muito desse mundo. É um mundo cheio de vitalidade, de coragem, de alegria de viver. E em 2001, como tínhamos a renda em atraso, o administrador do nosso condomínio veio propor-me tomar conta da mãe dele enquanto ia para fora no feriado prolongado do 15 de Agosto. Disse-lhe que não. Mas depois pus-me a pensar no que teria sucedido se tivesse aceite.
E a sua personagem é já a de um homem de meia-idade, que não trabalha, e que em breve entrará também nesse mundo dos velhos, não é?

Sim. Ele já sente isso. Entretanto, eu tinha pensado em mais personagens para o filme que não apenas a minha e a das quatro senhoras idosas, mas descobri que, no argumento, estas tinham tanta força, que "eliminaram" as outras.
Só ficou o amigo castiço.

Ele é mesmo um amigo meu, uma personagem característica do Trastevere que conheço há muito tempo. Nós no filme falamos como na vida real. E o médico também é muito meu amigo. Como vê, há muita realidade neste filme.
O seu filme é tipicamente romano, um filme de Roma, a sua cidade natal, e há uma tradição destes filmes no cinema italiano.

Pois há. Eu queria também falar de Roma e das suas derradeiras personagens típicas, porque já não há muitos romanos genuínos nos bairros populares da cidade. O meu amigo é um desses velhos romanos. Valeria de Franciscis, a senhora que interpreta a minha mãe é uma das velhas grandes senhoras de Roma, que durante a rodagem nos falava dos tempos em que se movimentava nos círculos da alta sociedade. Ela foi recebida pela rainha Isabel II de Inglaterra quando visitou Roma, imagine. Tem 93 anos, é uma mulher formidável, viva, espontânea. Gosto muito dela.
Como é que a conheceu? E às outras três senhoras?

Ela é um amiga da família do Matteo. Conheci-a porque ela participou num filme dele, Estate Romane. A senhora que faz de Grazia é minha tia. A minha própria tia entra no filme, tem 83 anos. As outras duas, encontrei-as em centros da terceira idade. Falei com muitas idosas e foi uma experiência formidável. Como era difícil dirigi-las, orientá-las, porque quase nunca seguiam as minhas indicações, decidi deixá-las improvisar bastante e movimentarem-se como elas quisessem. E depois elas diziam coisas mais bonitas e interessantes do que as que estavam no argumento. De modo que resultou tudo muito natural. É muito triste que os idosos tenham praticamente desaparecido do cinema,
Quando fez Almoço de 15 de Agosto, quis inseri-lo conscientemente na tradição da comédia italiana, ou pretendia apenas realizar o seu projecto e nada mais?

Gosto muito da comédia italiana, adoro aqueles velhos filmes, mas Almoço de 15 de Agosto não é um filme predeterminado nesse sentido, A realidade e a humanidade desses filmes está lá, mas eu quis dar ao filme uma expressão moderna, dos nossos dias. Mas espero que se perceba que em Almoço de 15 de Agosto está patente esse meu amor pela comédia tradicional.

Eurico de Barros, Diário de Notícias


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Encerramento do Tributo a Rohmer - Conto de Outono no Pátio de Letras. Sábado, 17h, entrada livre.

Conto de Outono

Este delicioso Conto de Outono, o último a ser filmado da série "Contos das Quatro Estações", é mais uma peça admirável de subtileza de escrita e «savoir faire» narrativo.

Mais do que isso, esta história das casamenteiras que querem arranjar um noivo para a protagonista acrescenta um novo capítulo a uma dimensão sociológica, essencial no trabalho de Rohmer. Que é como quem diz: dispensando todas as facilidades das «teorizações» mais mediáticas, ou apenas mais preguiçosas, Rohmer oferece-nos mais um painel de usos e costumes da França contemporânea. Tudo com a ironia que é apanágio dos mestres.
João Lopes, cinema2000.pt

Depois de Conto de Verão, Conto de Inverno e Conto da Primavera, Eric Rohmer despede-se das quatro estações com este esfuziante baile na aldeia. Como sempre, em Rohmer, uma maquinação amorosa - uma quarentona, Magali, sozinha desde que os filhos partiram, está à espera que os amigos lhe arranjem marido - e um grupo de personagens com a convicção firme de que conduzem os seus destinos. Mas, também como sempre nos filmes de Rohmer, há uma disponibilidade nas personagens para o logro - ou para se deixarem enredar no acaso.

Qual a diferença, então, entre Conto de Outono e o resto da obra do cineasta? É que sendo este menos um filme sobre o amor e mais um filme sobre a análise do amor, a luz dourada da Provença, a sólida arquitectura campestre, as teias de mal-entendidos e de folhagem conferem uma estrutura romanesca a mais uma "divertimento sério" deste insondável cineasta. Mas sendo um filme "outonal" - não por acaso, Rohmer foi buscar duas quarentonas que são veteranas na sua obra, Marie Rivière, Béatrice Romand - acaba por ser a grande comédia para este Verão.
Vasco Câmara, cinema2000.pt


e, em jeito de balanço de toda a série...

A organização da obra de Eriç Rohmer em "séries" (antes destes "contos sazonais", que num desafio ao calendário começaram pela Primavera e visitaram depois o Inverno, o Verão e, agora, o Outono, já tinha havido os "Contos Morais" e as "Comédias e Provérbios"), para lá da inabalável coerência interna de cada uma delas, não deixa de ser em si mesma uma considerável "boutade". Em Rohmer tudo rima com tudo, as correspondências e equivalências nunca se podem limitar ao constante de cada série. Até porque, não raras vezes, há "corpos estranhos" de permeio: pense-se em Os Encontros de Paris, estreado há poucos anos, que é impossível isolar completamente destes "contos de estações". Apaixonado pela pintura, Rohmer não resiste à utilização do titulo de um filme como parte integrante dele, ou seja, a tomá-lo como gerador de sentido, para iluminar ou para obscurecer. A reunião de grupos de filmes debaixo de um titulo genérico é sobretudo uma maneira de provocar a interpretação do espectador.

Dito isto, há sempre qualquer coisa que justifica esse titulo genérico. No caso destes "contos" é tudo uma questão de tom, de luzes e de cores. Cada estação - portanto, cada filme - tem a sua própria "mitologia", e não é tresler muito se dissermos que é ela, muito mais do que a narrativa, que vem relacionar filme e título. Rohmer é, de resto, um cineasta muito mais pictórico do que à primeira vista se imagina: um olhar atento sobre os seus filmes não pode ignorar a importância da composição (cromática, entre outras) na definição da atmosfera e do espírito que preside a cada um deles. E a Primavera, o Verão, o Outono e o Inverno são, afinal de contas, motivos tão bons como qualquer outros para a pintura de paisagens e sentimentos onde tudo o que conta são as modulações na luz e na cor.
Luís Miguel Oliveira, Público


Título original: Conte d'Automne
Realização: Eric Rohmer
Argumento: Eric Rohmer
Interpretação: Marie Rivière, Béatrice Romand, Alain Libolt, Didier Sandre, Alexia Portal...
Direcção de Fotografia: Diane Baratier
Música: Claude Marti, Gérard Pansanel, Pierre Peyras, Antonello Salis
Montagem: Mary Stephen
Origem: França
Ano de estreia: 1998
Duração: 112’


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Andrei Rubliov de Tarkovski. Hoje, 18h, Loulé: aqui tão perto.

Auditório do Instituto D. Afonso III (Convento Espírito Santo). Entrada livre.

ANDREI RUBLIOV, segunda longa-metragem de um dos grandes mestres da sétima arte, o russo Andrei Tarkovki, é um dos seus mais belos e aplaudidos filmes, tendo recebido em Cannes, em 1969, o prémio do Júri da Crítica Internacional.

Considerado por muitos a obra-prima de Tarkovski, o cineasta aborda, através da história da vida do pintor do século XV Andrei Rubliov, a eterna questão do artista contra a autoridade, mas também a da solidão de um génio e a sua capacidade de se erguer acima das multidões, e os problemas da fé e da falta da mesma.

O filme, que poderia ser descrito como um fresco ficcional constituído por episódios ligados por uma lógica mais poética que narrativa, foi apontado em 1995 pelos membros da Academia Europeia de Cinema e Televisão como um dos melhores dez filmes de sempre.

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Andrei Rubliov é peça fundamental no conhecimento internacional do seu realizador Andrei Tarkovski. Para isso contribuíram as dificuldades de difusão que encontrou na União Soviética. Como refere Ivor Montagu, num artigo inserido na revista inglesa Sight and Sound (Primavera 1973), as causas da proibição do filme na União Soviética não são muito claras; julga-se que a acusação de falta de verdade histórica terá estado na origem da sua interdição até 1971.


Andrei Rubliov foi um célebre pintor de ícones - um génio, no dizer de Tarkovski - que viveu entre 1370 e 1430. Talvez que a forma como o filme de Tarkovski recusa o simples preenchimento das convenções biográficas da lenda tenha, de algum modo, contribuído para a citada acusação. Tarkovski lembrou, a propósito, que tal acusação peca por falta de fundamentação: tendo em conta que pouco ou nada se sabe sobre a vida de um monge que viveu há mais de 500 anos, o mesmo critério deveria levar-nos a recusar também obras como Hamlet ou Júlio César.

No fundo, a questão formal que assim se levanta não é alheia, muito pelo contrário, à mise en scene do próprio filme. A suposta "inverosimilhança histórica" de Andrei Rubliov decorre do método narrativo e dramático adoptado por Tarkovski, nele radicando grande parte do fascínio e do carácter de excepção do filme.

Para Tarkovski, a história não é um espaço de integração (em categorias conhecidas), mas um lugar de permanente dispersão. A estrutura do filme não diz outra coisa: respeitando uma certa linearidade cronológica, ele está, ao mesmo tempo, organizado por episódios relativamente autónomos ("Jogral", "Juízo Final", "Sino", etc.) e que mutuamente se respondem e interrogam.
Assim como A Infância de Ivan, primeira longa-metragem de Tarkovski, se apresentava ciclicamente contaminado pela emergência do sonho, a ponto de o "histórico" e o "onírico" se articularem num originalíssimo regime narrativo, assim também em Andrei Rubliov podemos falar de uma relação singular entre o "simbólico" e o "individual". Mais precisamente, a trajectória do personagem Andrei Rubliov vai sendo marcada por episódios que instalam na sua existência a perplexidade do facto artístico e a inevitabilidade do acontecimento histórico: é o caso do desafio inicial do homem que voa e é, sobretudo, o caso do rapaz que decide fundir o sino, sob pena de perder a vida. Rubliov atravessa quase todos esses episódios como espectador, quer dizer, como alguém cuja prática profissional o exclui de uma participação directa, ao mesmo tempo que questões lancinantes emergem.

Consequência principal deste método é o facto de a história de Andrei Rubliov surgir como algo que escapa ao efeito de terminante ou determinista de qualquer centro (incluindo, naturalmente, o próprio Rubliov). Cada acontecimento da vida do personagem surge como prova, num duplo sentido: qual a verdade da história e qual a história da verdade?

"É estranho. Tudo o que realizei, tudo o que tenho a intenção de realizar está sempre ligado a personagens que têm qualquer coisa a superar, que devem vencer em nome desse optimismo ao qual dou tanta importância e de que falo constantemente. Dito de outro modo, o meu tema é este: um homem, apoiado por uma ideia, procura apaixonadamente a resposta a uma questão, vai até ao fim na sua procura para compreender a realidade. E obtém essa compreensão graças ao que experimenta, à sua experiência individual". Tarkoski (Moscovo, Julho de 1969)

A bem dizer, não há história em Tarkovski, isto é, não há evolução factual que não se reinscreva na dimensão estrita de um universo individual(izado) e, em tal deslocação, se amplie e reduza segundo uma lógica que escapa a qualquer verdade colectiva. Uma vez mais, o fabuloso episódio do sino encerra a acção de Andrei Rubliov pode servir de sintoma esclarecedor. Em primeiro lugar, tudo se desencadeia a partir de um logro fundamental: Boris, o rapaz responsável pela fundição, não sabe, realmente, a técnica a utilizar: depois fundição do sino é vivida com espectacular evento social, ao mesmo tempo consagração do poder divino e confirmação de vários poderes temporais; finalmente, tudo isso ecoa em Andrei Rubliov como efeito de desbloqueamento do seu silêncio e do seu desejo de pintar.

O fantasma dominante deste filme é, por isso, o da utilidade da arte, quer dizer, o da sua recuperação por discursos que a podem tornar fiel a um certo destino ou a um certo significado. Ao mesmo tempo, porém, há sempre um excesso que multiplica o ser da arte, confirmando o seu saber mas também o seu irrisório de não ser senão... arte.

Repare-se ainda como Andrei Rubliov não passa de mais um dos órfãos filmados por Tarkovski, ser de uma solidão que só encontra expressão na imensidão sempre reencontrada na natureza. Não é, por isso, a natureza um lugar de redenção em Tarkovski, mas um continente sempre aberto e em constante transfiguração que prolonga as contradições interiores do homem perante a afirmação do seu ser. A arte surge, então, como objecto devolvido à natureza e ao seu movimento. Não é, por isso, acidental, que a chuva comece por aparecer sobre a matéria dos ícones, antes do plano final dos cavalos junto à água. Talvez que a água corrente com que se inicia Solaris, o filme seguinte de Tarkovski, não seja senão a expressão do mesmo rio.

João Lopes, in 100 Dias 100 Filmes, Cinemateca Portuguesa


(colaboração com Allgarve '10)


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um homem só

a tentação de dizer que o filme do tom ford parece com os seu fatos é grande. e pode parecer um cliché. mas por ser cliché não é menos verdade. sóbrio e moderno. limpo. sem excessos. mas tão sem excessos, tão sem excessos que se percebe a mão do estilista. e realizador. um bom filme, bons actores, boas imagens e uma excelente história. li o livro do isherwood há vários anos. e dele tinha apenas uma lembrança: um percurso entre a casa e a universidade que se repetia vezes sem conta. e que se tornara invisível para o condutor - um homem só. e é desta solidão, ou da condição humana que pode ser traduzida, muitas vezes, pela solidão, que nos fala o escritor. e também o filme. e tanto num como no outro vemos que a solidão é um espaço que habitamos, é uma roupa que decidimos vestir. por isso não gostei da tradução do título do filme: um homem singular. porque singular não é necessariamente solitário. e mais do que um homem singular, porque ele é apenas mais um que vive esta condição demasiado humana, ele é um homem só. e o filme trabalha com esmero o em torno, os detalhes, o cenário. é um bom filme, acho eu. demasiado contido e bem vestido. mas temos de aprender a olhar também para as aparências. nem sempre o que devemos ver está, necessariamente, escondido.

Fome de Steve McQueen: uma obra-prima incontornável. 2ªf, IPJ, 21h30. Vai perder?...

sobre o filme:

Primeira identidade de "Fome", de Steve McQueen: é um filme que conta uma história.
A história dos últimos meses de vida de Bobby Sands, membro do IRA, que morreu em 1981, depois de 66 dias de greve de fome na prisão de Maze, Irlanda do Norte.

Segunda identidade de "Fome", de Steve McQueen: é um filme, realizado por um artista plástico, que está para lá dessa história. Dito de outro modo: lida com questões e temas intemporais e que, por isso, pertencem também ao presente. É difícil não pensar em Abu Grahib (embora o projecto se tenha iniciado antes da ocupação do Iraque pelos EUA) ou nos gestos tão resolutos quanto absurdos dos suicidas islâmicos.

"Fome" é um filme, também, sobre o bem e o mal, sobre relação entre o indivíduo e a sociedade (ou o Estado): repare-se na violência que estala, que se ouve no seu interior. Sobre a linguagem e o som: no diálogo entre um padre e o activista Bobby Sands ou no momento em que este parece perder a audição. Sobre o espaço e as suas texturas: das paredes, das feridas, do chão.


Oferece-se, por isso, como uma experiência - por vezes, mais do que a memória - ao corpo, à pele e aos sentidos, entre a narrativa e abstracção. Dirão que se trata, afinal, de um filme realizado por um artista plástico. É verdade, e ainda por cima reconhecido, talentoso. Mas este é o Corpo a última resistência. O artista plástico Steve McQueen fez um filme que conta a morte, por greve de fome, do activista do IRA Bobby Sands. Mas fez mais do que isso: o filme oferece-se como experiência ao corpo, à pele, aos sentidos. "Fome" leva-nos (a todos) com ele.

Então, quem é Steve McQueen? O que é "Fome"?

"Um grande filme. Uma obra total", diz-nos João Tabarra, "sobre um tema que trabalho há anos e que é a condição humana. Onde o torturador e o torturado se confundem, e que mostra o acto do corpo como forma última de resistência. Estamos todos neste filme". Para o artista português, um dos aspectos mais significativos da primeira obra cinematográfica de McQueen é, exactamente, o facto da significação ética e filosófica das imagens não ser limitada pelo contexto escolhido (a greve contra o governo de Thatcher que recusava o estatuto de prisioneiros políticos aos membros do IRA). "Ultrapassa-o para nos relembrar o mundo e a barbárie no mundo. E constrói, tem tempo, sobretudo na cena da conversa sobre o paradoxo do suicídio. Um tempo aliás diferente daquele que nos querem impor, embora também seja verdade que o encontro noutros filmes".


"Fome" é "um filme que constrói uma tensão entre os enquadramentos fechados da imagem e a arquitectura da prisão, quer através da enfatização que ambos emprestam um ao outro, com movimentos mecânicos e geométricos prolongados, quer pelo conflito que os movimentos da câmara também travam com esse espaço". No meio, acrescenta, estão "as personagens, sob estado de excepção e na espiral de violência de um conflito remoto, vítimas do castigo produzido pela violência e de uma justiça que se coloca acima do direito". É por essas personagens (sobretudo Bobby Sands e o padre Dominic Moran, quando este tenta convencer o primeiro a desistir da greve de fome) que, segundo Lapa, "passam a memória de muitos diálogos, como o de 'Antígona'", que aqui é "testemunho do terror secreto enquanto fundamento da ordem social e não apenas reclamação dos direitos humanos com que a democracia a lê"; refira-se que a conversa entre o religioso e o mártir político, filmada num único "take" de 20 minutos, é um dos momentos centrais de "Fome".


Finalmente, as cenas finais do corpo de Bobby, quando este caminha para a morte, merecem do director do Museu do Chiado uma leitura que toca uma problemática central dos limites da imagem: "Steve McQueen aborda o problema da representação e da interdição da representação: pelo sofrimento extremo e a impossibilidade de o transmitir por um dado meio artístico; e pelo interdito de proporcionar uma representação de algo demasiado monstruoso. E aqui estamos diante de Adorno sobre a possibilidade da poesia depois de Auschwitz. Muita arte moderna baralhou ambas as condicionantes e o artista procura oscilar entre os limites destas situações, mas só pode fazer como o filho de Bobby Sands, correr até a floresta escurecer muito e voltar."


Quanto às diferenças entre "Fome" e a restante produção de McQueen, identifica aspectos que permanecem, como "os enquadramentos fechados, as oscilações rítmicas entre o enquadrar e desenquadrar, os deslocamentos de câmara, a dimensão performativa e a relação próxima entre os processos formais e a sua alegorização numa narrativa". De novo, apenas, o desaparecimento do dispositivo da instalação e a presença de elementos como personagens e narrativa (ou seja, o cinema) Mas, sobretudo, um novo entendimento da relação (que já vem desde 2001) entre ficção e realidade ou entre ficção cinematográfica e documentário. "Ele ficciona uma narrativa através de dados documentais precisos para contar a história e sobre ela construir inteligibilidades. Se noutras obras tudo era filmado a partir da realidade e a construção e encadeamento das imagens produzia uma alegoria, em 'Fome' o processo é inverso. A ficção interpreta o documento".
Talvez seja na actualização dessa relação, entre o real e ficção, no seio da qual se encontra a narrativa, que "Fome" deva ser visto como cinema. Um cinema onde estamos todos.

José Marmeleira, Público

sobre o realizador:

A prisão e as fugas têm sido tema recorrente do cinema, quer na sua dimensão ficcional, incluindo adaptações de obras literárias, quer na sua faceta documental. Do erotismo de "Un chant d''amour" (1950), de Jean Genet à tensão de "Alemanha no Outono" (1978), um filme colectivo (Fassbinder entre os realizadores) centrado nos acontecimentos relacionados com os Baader-Meinhof, passando por "Titicut Follies" (1967), reflexão de Frederick Wisman acerca de uma prisão-hospital americana ou ainda pela lição de estética "Un Condamné à Mort s'est Échappé" (1956), de Robert Bresson, há uma multiplicidade de pontos de vista sobre as relações sociais que se estabelecem num espaço concentracionário. Falta, é certo, de um século soterrado de imagens, mais documentos que testemunhem o mal absoluto, essa interrogação permanente de Jean-Luc Godard, Marcel Ophüls ou Claude Lanzmann. Uma situação comum a tantas histórias, sobretudo aquelas que se querem distantes do olhar.


A primeira incursão cinematográfica de Steve McQueen (Londres, 1969), "Fome", é a mais próxima do corpo, neste caso o de Bobby Sands (Michael Fassbender), que parece transportar consigo todas as dores do mundo, de Cristo às vítimas da Sida - veja-se a segunda metade do filme, nomeadamente as imagens do hospital, tão próximas de tantas registadas a partir dos anos 1980 - e é nesse tempo que morrem também, em consequência de uma greve da fome, os prisioneiros do IRA. No âmbito de um filme político, a dimensão física dos planos sublinha que é ali, na gestão do corpo, da vida, onde tudo se joga: uma biopolítica, portanto. McQueen assinou já outras obras, enquanto artista plástico, nas quais a violência exercida sobre o humano constitui ponto essencial da reflexão - veja-se "Western Deep" (2002), descida ao fundo de uma mina na África do Sul.


A obra plástica de McQueen tem como protagonista o corpo, mas este politicamente investido, lembrando as teses de Michel Foucault para quem, já em 1974, a "luta pelos corpos" fazia da sexualidade um problema político. A condição de negritude do artista passa por algumas das suas obras mais significativas, de "Bear" (1993) - o filme de Genet ecoa aqui - a "Western Deep", passando por "Girls Tricky" (2001) ou ainda por "Exodus" (1992/ 1997). Luta pelos corpos, corpos que lutam e suam, explorados, colonizados. Corpos que cantam e caminham, em êxodo. Corpos que devêm escultura, como em "Deadpan" (1997), "remake" de uma cena de "Steamboat Bill Jr.", na qual um impávido Buster Keaton é atravessado pela fachada de uma casa - o agora cineasta manifestou o desejo, impossível, de ter como argumentista de "Fome" o escritor e dramaturgo Samuel Beckett (1906-1989), de quem o único filme, "Film" (1965), tem como protagonista Keaton. E há ainda o corpo de "Illuminer" (2001), vídeo no qual se observa, no escuro de um quarto hotel, McQueen deitado numa cama, sendo a sua presença apenas perceptível através da luz emitida por um televisor, onde passa uma reportagem acerca da presença dos exércitos britânico e americano no Afeganistão.


"Fome" pode ser assim visto como um prolongamento natural da obra plástica do artista. A proximidade aos corpos, a atenção às questões políticas, a forma de filmar - o grande plano - e ainda a tentativa de colocar o espectador dentro da acção, sobretudo através da escala do ecrã, são características de trabalhos anteriores de McQueen que podem ser detectadas na longa-metragem. Menos detectáveis são as influências exteriores, mas elas podem ser intuídas aqui e ali. O realizador, respondendo a uma pergunta relativa às suas influências no caso de "Fome", afirma, em entrevista à revista "Cahiers du Cinéma": "A grande referência é a pintura, mais particularmente a pintura espanhola, e sobretudo Velázquez - a sua forma de usar a luz natural em interiores, de uma maneira realista, mas que, de alguma maneira, dramatiza a visão, dá-lhe uma forma de gravidade e ao mesmo tempo atribui uma dignidade a tudo aquilo que ele representa, compreendendo o que poderia parecer horrível ou grotesco."


Velázquez, mas também o Van Gogh dos últimos dias, o de "Campo de Trigo com Corvos" (1890), visão próxima da morte, e o Grünewald do "Altar de Isenheim" (1512-1516). E mais perto de nós, Richard Hamilton e a pintura "The Citizen" (1981-83), uma obra baseada num documentário acerca do "dirty protest" realizado na prisão de Maze, na Irlanda do Norte, ou os murais realizados com lama por Richard Long. A abstracção a que chega o filme recorda, por outro lado, a estética de outro cineasta, Alexander Sokurov, o qual, em conversa com Maria João Madeira e Luís Miguel Oliveira (Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1999), sublinha tentar dar às suas personagens "uma vacina contra a morte, para que eles fiquem eternos." Bobby Sands foi eternizado por Steve McQueen. A sua fome é, por instantes, a de todos nós.

Óscar Faria, Público

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Tributo a Rohmer - Conto de Verão no Pátio de Letras. Sábado, 17h, entrada livre.

Conto de Verão

Há filmes cujas beleza, riqueza e profundidade se exprimem num tom aparentemente tão leve que deslizam como um sonho sem que o tempo da sua duração se faça sentir. Há obras que expõem a sua riqueza sem complexidades linguísticas, que na maior parte das vezes servem para confundir, mostrando aquilo que são numa narrativa simples e clara.

Eric Rohmer é mestre deste tipo de linguagem, deste género de história, capaz de expor a tese mais complicada e abstracta numa fascinante conversa de amigos (os «Contos Morais», em particular A Minha Noite em Casa de Maud). Mas, com a passagem do tempo, tendo alcançado a plena maturidade de pensamento e de obra, Rohmer depura-se inclusive de certas «preocupações» morais ou sociais para se limitar à exposição dos afectos entre as pessoas, como eles nascem, se manifestam, se chocam.

A série dos «Contos das 4 Estações», de que o filme agora estreado entre nós é o terceiro, representa essa fase maior da sua obra (não só: simples «divertimentos» intercalares como Os Encontros de Paris situam-se na mesma linha). O cinéfilo que conhêça razoavelmente a obra de Rohmer poderia estudar esta evolução bastando-lhe, para já, comparar Paulina na Praia com este Conto de Verão, que tem um pano fundo semelhante: ambos decorrem na praia e à volta de amores de Verão. Mas o primeiro é essencialmente um retrato feminino, desenhado de forma clássica, com a descoberta do corpo e da sexualidade, enquanto Conto de Verão é como que uma série de instantâneos que nos fazem a crónica do Verão de um adolescente, dos seus encontros e desencontros, de interrogações sem resposta e de respostas inesperadas a perguntas não feitas. (...)

O filme começa de uma forma magistral, que de imediato agarra o espectador: uma série de planos sem qualquer diálogo mostram-nos a chegada e estabelecimento de Gaspard no novo «território» e a forma como vai organizando os seus ritmos de vida: a «crêperie» onde vai comer (e onde conhece Margot), o percurso, o quarto, o passeio na praia, o ensaio com a guitarra. Apenas se ouve o ruído ambiente, captado em som directo (aliás, todo o trabalho de som, da responsabilidade de Pascal Ribier, é prodigioso, criando uma ambiência e um «realismo» raras vezes vistos). Dir-se-ia, como outros já referiram, um filme de Jacques Tati. Aliás, a este começo só faltam os «gags» para se confundir com o de As Férias do Sr. Hulot. (...)
Conto de Verão não é apenas o mais divertido dos filmes de Rohmer mas também aquele que melhor manipula o espectador, segundo a fórmula hitchcockiana, pois a pouco e pouco cria-se uma expectativa no espectador a que apenas o conhecimento (do final) permitirá a catarse. Só que neste caso o «suspense» é de humor. Delicioso, refrescante, Conto de Verão é um filme onde se mergulha com um prazer incontido.

Manuel Cintra Ferreira, Expresso




Título original: Conte d'Été
Realização: Eric Rohmer
Argumento: Eric Rohmer
Interpretação: Melvil Poupaud, Amanda Langlet, Aurélia Nolin, Gwenaelle Simon, Aimé Lefeuvre, Alain Guellaff, Evelyne Lahana, Yves Guérin, Franck Cabot
Direcção de Fotografia: Diane Baratier
Música: Philippe Eidel, Sébastien Erms
Montagem: Mary Stephen
Origem: França
Ano de estreia: 1996
Duração: 109’


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O Sétimo Selo de Bergman. 3ªf, 18h, Loulé: aqui tão perto.

Instituto D. Afonso III (Convento Espírito Santo). Entrada livre.

Numa manhã de Janeiro de 1956, Ingmar Bergman estava a fazer a coisa mais comum a todos os homens nesta hora do dia: barbeava-se. Para abafar o som da máquina, tinha posto o gira-discos no máximo, tocando "Carmina Burana". De súbito a música encontrou na sua mente as imagens de "Les Saltimbanques" de Picasso, e a litografia de Dürer "Cavaleiro, Morte e Demónio”. Começou assim a delinear-se, em tão prosaica manhã, durante tão trivial tarefa, a peça "Pintura em madeira", donde viria mais tarde a ser retirado o argumento de O Sétimo Selo.

Ao contrário do que é uma ideia feita, no cinema de Ingmar Bergman é pouco frequente, e muitas vezes inconsequente, aquela sensação de peso sufocante originada por uma qualquer repisada elaboração, que usualmente se diz ser comum aos seus filmes. Quando a atenção se vira ora para o conjunto da sua obra, ora para a sua cronologia, é uma diferente visão que acaba por transparecer. Em primeiro lugar, Bergman sempre teve mão exímia para a comédia - Uma Lição de Amor e sobretudo Sorrisos de uma Noite de Verão, filme que viria a consagrá-lo -, pelo que a Svensk Filmindustri se inclinava com maior facilidade a conceder-lhe créditos de produção nesse género de aceitação popular e êxito comercial, e tremia, com não menos facilidade, quando o realizador insistia nos dramas que asseguravam fiascos de bilheteira. Em segundo lugar, na fase da sua obra compreendida nos anos quarenta e cinquenta, Bergman deslumbra-se e deslumbra-nos com a luz de Verão onde se aquecem as paixões finalmente funestas mas brilhantes enquanto perduram de Rumo à Felicidade, Um Verão de Amor, Mónica e o Desejo ou Kvinnodrom. Em terceiro lugar, o cinema de Bergman é muito menos abstracto (quer dizer, desprendido das contingências da materialidade) do que um olhar desatento sobre os seus filmes poderia deixar supor; a angústia que em Fangelse, Torst e Gyclarnas Afton se desprende provém do facto de as misérias existenciais serem demasiado pequenas e o quotidiano demasiado trivial. Pode-se assim explicar porque razão O Sétimo Selo, quase sempre posteriormente tomado como um paradigma do cinema de Bergman, acabe por surgir um pouco à margem das tendências dramáticas que o realizador até aí demonstrara. Embora inaugurando uma nova frente nas motivações cinematográficas do realizador, O Sétimo Selo torna evidente o que até 1956 estava subjacente; esta será a sua novidade e ao mesmo tempo a sua coerência.

Novidade será, por exemplo a entrada - e fulgurante! - de Max von Sidow na família de actores de Ingmar Bergman, quer dizer, na família de actores cinematográficos, porque já era intensa a relação de trabalho entre eles no Teatro de Malmõ, que Bergman dirigia nesses anos. Também aqui se vê um Gunnar Bjornstrand que nunca se tinha visto nem nunca mais se verá, porque surpreendente numa interpretação bufa de um escudeiro nada grave e comedido, antes virado para as truculências carnais - um Sancho Pança em contraluz nórdica e protestante.

Com este filme Bergman inicia uma fase que genericamente termina em Luz de Inverno onde a pouco e pouco ganha consistência a dúvida sobre Deus. A resposta àquilo que até então parecia uma barreira intransponível à felicidade entre os seres humanos vai agora Bergman tentar encontrá-la junto ao divino; donde este súbito recuo no tempo e este súbito formalismo, quase ritual, que parece sustentar toda a narrativa do filme. Sendo grande o hiato temporal do ponto de vista da contemporaneidade, é permitido tomar a Idade Média como o terreno vago onde é possível que o formalismo dos conceitos informe totalmente os personagens. O que torna pois verosímil O Sétimo Selo não é qualquer efeito de realismo, mas precisamente essa ideia de fundação mítica do divino que nele decorre. Sabendo-se que uma das primordiais influências do primeiro Bergman foi Marcel Carné, seria impossível não entender em O Sétimo Selo uma resposta conclusiva a Les Visiteurs du Soir, se são flagrantes as diferenças entre os filmes, mais flagrante ainda se torna a sua relação. Aqui a morte e o cepticismo trazem-nas pela mão aqueles cuja acção é a de chegar: o cavaleiro Block e o escudeiro Jons; enquanto os saltimbancos, aqueles que passam, vivem ao largo de todas as questões que suscitam a infelicidade. Em Les Visiteurs du Soir quem chega - e assim traz o Mal consigo - são precisamente os saltimbancos, ao passo que os castelões, tal como Karin, a mulher de Block, aguardam, indefesos, os trabalhos do demónio. Mas em ambos os filmes assiste-se a um semelhante triunfo, que é o de Deus a escrever direito por linhas tortas, ou seja o da força inviolável do frágil amor. Um Deus dissimulado portanto, que aposta nas improbabilidades do afecto e despreza as virtudes da razão. Um Deus contraditório, portanto, com aquele que Bergman recebeu de seu pai, um pastor protestante (e contra cuja sombra o cineasta se debateu toda a vida), e muito mais próximo daquela imagem estranha e solar do Deus católico que, recorde-se, numa das falas decisivas de Luz de Inverno era interrogado com horror e fascínio. Mas, sobretudo, o que em O Sétimo Selo aparta Bergman de Carné é a ideia fundamental que o Mal não nasce estranho ao homem mas antes toma a imagem da Morte. Aqui não existe tentação, apenas uma perdição vista como inata.
Mas se em O Sétimo Selo Bergman salda de vez a sua dívida com Marcel Carné, não é menos certo que também ajusta contas com o teatro. De actores vistos como saltimbancos marginalizados é feito afinal o mundo em que vive o próprio realizador, e se A Noite de Circo propunha uma visão no mínimo apocalíptica do que é ganhar consciência de viver constantemente através da vida das personagens que se interpretam, agora cabe aos actores a felicidade de poderem ver o mundo - e Jof é um puro que tem visões - através desse limbo existencial que é a representação. Por isso é deles o privilégio dos amores solares, silvestres e livres de impurezas que já eram expostos em Um Verão de Amor e Mónica. Estão assim os actores, enquanto espécie humana que vive à margem das contingências do concreto, predestinados à compreensão da simplicidade das coisas transcendentes. Será este tema que Bergman irá reafirmar no futuro O Rosto e, de certo modo, desmentir, ou pelo menos interpelar, em Ritual. Será também a partir destas premissas que Tarkovski construirá o seu Andrei Rubliov, revendo O Sétimo Selo segundo a perspectiva daquele pintor de frescos da igreja, que por momentos conversa com Jons.

Viu-se no cavaleiro Block o símbolo do homem ocidental contemporâneo, crivado de dúvidas perante a presença da morte. Mas se já nesta altura Bergman tivesse a mesma opinião que manifestaria anos depois, a de uma total recusa do simbolismo nos seus filmes, poder-se-á então olhar para esse cavaleiro, em tudo o oposto de um crentíssimo D. Quixote, com olhos menos turvos e um pouco mais vastos de horizontes. Procurar o simbolismo num filme é interditar-se quase automaticamente para o transcendental, reduzindo a visão à segurança dos significados imediatos e O Sétimo Selo é, na sua essência, uma obra metafísica. E de tal modo o é que logo a primeira sequência evoca esse fabuloso Dies Irae de Dreyer, pelo acordo entre a tensão do preto e branco e a atmosfera soturna que naquela parcela de praia revela a alma dos personagens. Mais tarde veremos também, como se fosse marginal à ansiedade do cavaleiro, a mulher condenada por bruxaria, de tão resplandecente branco vestida que é impossível não ver logo (intuir, portanto) a sua inocência.

É um mundo desocupado pelos sinais de Deus este de O Sétimo Selo. A morte entrará de seguida em cena e de tal modo o faz, e sempre assim o fará, que por um genial raccord se entende que sempre ali esteve à espera do cavaleiro. Quando não acontece a sua presença, ficam os efeitos da sua passagem: a peste que destrói o rosto dos que se sentaram à beira do caminho, esses rostos sempre tão queridos do cinema de Bergman, ou a humilhação que se abate sobre os puros, tal como se vê na cena da taberna em que o pobre Jof é obrigado a passar por urso até à exaustão. Neste mundo sem sinais, logo sem símbolos de redenção, em que a Morte é um substantivo feminino encarnado por um actor masculino, a grande vitória é a de conseguir mexer os dedos dos pés perante a ansiosa eternidade e a grande moral de O Sétimo Selo vem contida na pergunta: "É assim tão inconcebível querer compreender Deus com os sentidos?" Nesta frase, afinal, condensam-se todas as questões que o cinema de Bergman tinha procurado colocar segundo diversos ângulos: a impossível supremacia dos sentidos contra as insistentes formulações da razão, ou seja, a felicidade que se sabe estar onde é inadmissível ir buscá-la. É disto afinal que, depois de se ver O Sétimo Selo, retrospectivamente nos acabam por falar Um Verão de Amor e Mónica e o Desejo, de forma talvez mais solar mas decerto tão contrastada, sempre num jogo entre duas pessoas que não admitem resguardar o seu envolvimento amoroso das violências do mundo e diante delas sucumbem. Porque aquilo que liga o cavaleiro ao seu escudeiro é a recíproca consciência que cada um deles tem dos limites do outro, ao contrário do casal de saltimbancos, Jof e Mia, que possuem o espelho de um filho - Mikael, certamente de S. Miguel, o santo protector das almas - tal como o farsante Skat, que ao seduzir Lisa, a mulher do ferreiro, obtém nesse gesto a satisfação assumidamente efémera dos sentidos, o que deixa de tornar inexplicável que morra ao simular a sua morte, quando ao fugir das iras do marido cornupto se recolhe na paz segura do anjo negro. O sétimo selo a ser aberto é o último do livro que desencadeará o apocalipse, então dos céus se ouvirá o cântico, à glória da ira de Deus. De um Deus que só se encontra na morte e tanto se procura nos filmes de Bergman, junto à terra e às paixões.

José Navarro Andrade in 100 Dias 100 Filmes, Cinemateca Portuguesa

(colaboração com Allgarve '10)
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O Canto dos Pássaros ouvido por Albert Serra. Ouça-o também. 2ªf, IPJ, 21h30.

(dado que este será o filme deste ciclo de Março com menores referências, deixamos aqui duas peças sobre o filme. Cremos que bastará ler algumas passagens delas para perceber que este é um filme imperdível)

Nada está perdido. Os aerólitos são cada vez mais raros, mas ainda caem no planeta cinema, são filmes inclassificáveis que parecem vir da origem dos tempos e abrem passagem a algo que há-de vir. Podia dizer-se que não há mais belo desafio para um cineasta do que criar a mise-en-scene do que não existe ou do que outrora pode ter existido mas desapareceu sem deixar rasto. O que desapareceu é aqui revelação de um mito da religião cristã que descobrimos permeável ao drama e até ao burlesco, repleto de imagens cristalinas e de sonhos infernais, sem que estes vasos comunicantes jamais fiquem compartimentados. Do muito que AIbert Serra nos contou sobre O Canto dos Pássaros há uma frase sua que intriga: "Quis captar o exacto momento em que o sagrado acaba de nascer, um momento de cinema antes do pecado." Ora, este desafio não só é gigante como é coisa rara de ouvir da boca de um cineasta, muito menos de um autodidacta com 34 anos. Dreyer tentou-o, Rossellini também. Depois deles, houve Pasolini, Godard, Herzog: todos perseguiram a mesma dimensão espiritual. Só que O Canto dos Pássaros - e é isto que é notável - consegue aparecer feito de uma audácia sem progenitura. Como se o tal 'momento do sagrado' pudesse de facto nascer sem qualquer blasfémia, graças a um milagre de cinema, inventando um tempo tão primitivo que é anterior à cultura. Um tempo tão solene e ascético que ainda é pagão. Um tempo em que o cordeiro acariciado pela Virgem Maria anuncia mas não figura ainda o Cordeiro de Deus das Sagradas Escrituras.



De todos os episódios do Novo Testamento, o dos Reis Magos é o mais secreto. A natureza destes monarcas, astrónomos e místicos, é tão incerta quanto a sua origem, e tão-pouco se sabe o que lhes aconteceu depois da adoração ao Deus Menino. Apenas se sabe que a viagem dos Magos ao presépio foi indicada por uma estrela e que o regresso tomou rumo distinto, para despistar a fúria do cruel Herodes, apavorado pelo nascimento do novo reino. Ou seja: do ponto de vista narrativo, esta história é uma página em branco. E o que faz Serra? Transforma três 'LIuíses' camponeses em reis: a Carbó e Serrat Masanellas, que são um ex-professor de ténis e um pedreiro rechonchudo (foram Quixote e Sancho Pança em Honra de Cavalaria), juntou-se Lluís Serrat Batlle, pai do último. A Virgem Maria é interpretada por uma amiga de infância de Serra e produtora dos seus filmes, Montse Triola. Todos eles são de Banyoles, pequena terra natal do realizador, e actores não profissionais. Praticamente, não há argumento, nem maquilhagem, nem iluminação (o filme foi rodado em exteriores, na Islândia, nas ilhas Canárias e em França, no Pays de la Loire). Serra usou duas câmaras HD e explorou a fundo o potencial da imagem digital a preto e branco, sublinhando os seus contrastes. E como se tudo isto não bastasse para estarmos já perante um filme raro, o realizador ainda chamou para o papel de São José um crítico de cinema canadiano, Mark Peranson, o único judeu do elenco. Peranson não fala catalão, mas ainda se recorda do hebreu que aprendeu em criança e foi convidado a falar nessa língua, aumentando ainda mais o efeito de estranheza de um 'canto' para recordar décadas e décadas a fio. Jamais houve um filme assim - e quantos, afinal, se podem orgulhar disso?

Francisco Ferreira, Expresso



O catalão Albert Serra, hoje já uma coqueluche cinéfila, faz filmes porque não consegue fazer literatura. O cinema, diz, é uma forma de não se aborrecer. Isso quer dizer que em O Canto dos Pássaros encontramos diversão? Não: encontramos fé.

Em Honra de Cavalaria, filme de estreia de Albert Serra, havia um Dom Quixote muito pessoal, aquele que (imaginamos) não fora descrito pelas palavras de Cervantes. Se quiséssemos uma sinopse jocosa do filme, podíamos dizer que se tratava de uma sequência de longos planos de Quixote e Sancho em caminhada pelo meio do mato - quase sem palavra.

Honra de Cavalaria não era apenas um pequeno cometa na tela - a sua feitura também parecia uma história mirabolante. Tinha sido realizado com meia-dúzia de tostões, um guião mínimo, uma equipa reduzidíssima e actores amadores. Era uma espécie de prova de que a imaginação e o talento valem mais que profissionalismo, produção esmerada e equipas de "marketing".

Dois anos depois, Serra prolonga essa linguagem de contemplação com O Canto dos Pássaros, de novo usando personagens que já fazem parte da nossa iconografia: desta feita o realizador segue os três Reis Magos no seu caminho de encontro a Cristo. A paleta de cores é diminuída para um preto e branco que nunca é austero, as palavras reduzem-se ao mínimo, os planos duram ainda mais - e começa a desenhar-se um imaginário: Serra parece querer filmar um desejo de transcendência, retirando aquilo que possa dar ao espectador guias de leitura. Somos deixados em suspenso, num exercício de adivinhação: o que querem estes homens?



Dificilmente se imagina Serra a partir dos seus filmes. É um catalão de 33 anos (faz 34 este ano), jovial e de palavra fácil, dado a pequenas provocações e com basto sentido de humor. Um homem de brincos nas orelhas e anéis nos dedos, de camisa branca, casaco azul escuro e gravata preta fina, bigodinho que podia pertencer a um chicano passador de droga, que recusa - com duas piadas - leituras excessivamente complexas da sua obra. Diz que só faz cinema para se divertir com os amigos. Há nisto uma qualidade de pose.

Esteve em Lisboa para apresentar O Canto dos Pássaros. Agora já não é um desconhecido que fez um pequeno e belo primeiro filme. É uma coqueluche do cinema, laudado em revistas e premiado em festivais. No seu registo uma-no-cravo-outra-na-ferradura, limita-se a dizer: "Não sei. Apenas fiz o que quis, o que gosto de fazer". Depois, não sem graça, começa a desmerecer o que faz. "Gosto muito de literatura, não de cinema. Mas a literatura dá muito trabalho e em Espanha é difícil ser melhor que os outros em literatura. No cinema não: é fácil fazer cinema e em Espanha é tudo muito mau, por isso é fácil ser melhor que os outros".

Há alguma verdade nisto, note-se. Serra licenciou-se em Literatura Hispânica e Literatura Comparada, pelo que o seu amor à literatura será verdadeiro. Mas insiste na mesma tecla: "Nunca estudei cinema, nunca estive numa filmagem que não fosse minha, só uso actores e técnicos da minha terra", insiste, recuperando o género de declarações que lhe conhecemos desde Honra de Cavalaria. Fiz cinema para quebrar a rotina. Era cinéfilo, certo, mas faço cinema para me entreter" - faz uma pausa e depois acrescenta, antes de desatar a rir: "Para me entreter a mim, porque os outros aborrecem-se com os meus filmes". Introduz uma ideia que repetirá: "Não sou profissional". Faz questão de que se perceba que nunca repete "a mesma cena", nem faz "ensaios porque são aborrecidos". A ideia de aborrecimento parece ser-lhe essencial.



Pelo menos admite que os seus filmes têm o mínimo grau de preparação, que "o filme está pensado antes da rodagem". Mas afiança que enquanto filma nunca olha "para o monitor", nunca vê "qualquer imagem antes de começar a montar". Vai para a rodagem "com um conceito preciso do que se vai fazer". Onde o filme se decide "é na montagem": "Demoro meses e meses a montar tudo com um amigo que domina mais a linguagem dos computadores. No último mês faço tudo sozinho, porque se trata de detalhes e sobre detalhes não gosto de discutir detalhes com ninguém".

Para o seu primeiro filme demorou "uma semana a fazer o guião". Foi escrito "numa viagem de avião do México para Madrid". Os guiões não são fechados: "Ponho o tema de um diálogo, o assunto acerca do qual os actores vão conversar, mas não escrevo o diálogo". Há uma cena em O Canto dos Pássaros em que os Reis Magos sobem uma montanha e vão conversando entre si. "Aí é tudo improvisado", explica, antes de atirar mais uma das suas frases laminares que parecem servir mais para despistar ou criar mistério que para explicar: "Um guião só serve para conseguir um subsídio".



É menos dado a provocações quando se dedica exclusivamente a pensar o seu cinema. Admite que este filme é, até certo ponto, um prolongamento do anterior, mas o mais interessante é ver como assinala as diferenças. Honra de Cavalaria, diz, "tinha muita contemplação", mas "a câmara era muito física, aproximava-se dos rostos, das ervas". O Canto dos Pássaros é "mais atmosférico, mais abstracto". "Neste filme há muita pedra vulcânica, muitas linhas definidas, o que provoca uma imagem muito gráfica. Há um fascínio, neste filme, com o nível superficial da imagem".

Tem visível prazer em pensar em termos imagéticos. Não o ouvimos discutir o "interior" das personagens - aliás, não gosta de "usar psicologia". A razão é óbvia: "Aborrece-me". A psicologia, adiante, "tem muitos clichés" e "a televisão faz isso melhor". É aqui que o humor de Serra se revela mais sério do que parece à primeira: "Os Sopranos fazem isso melhor, porque têm semanas para desenvolver uma personagem. Por isso o cinema tem de ir buscar algo mais poético, porque não pode fazer o que a televisão americana faz melhor. Porque é que nos recordamos de A Desaparecida, de John Ford? Interessa-nos o conflito com os índios? Não. Interessa-nos a coisa poética".

Isto explica a razão por que gosta de trabalhar "com figuras icónicas": "Toda a gente as conhece, não tenho de explicar a história", o que - imaginamos - o aborreceria fazer. "Não tenho interesse em fazer filmes sobre os problemas das famílias burguesas", acrescenta. Para que fique claro ao que vem, deixa uma frase pessoal em forma de programa estético (ou vice-versa): "Há filmes muito bons sobre isso, mas a mim não me interessa. Não me interessa na vida real (não tenho mulher, nem filhos, nem família) quanto mais em filmes".



O uso de figuras icónicas, no entanto, não implica que o tratamento delas seja sempre igual, e Serra assinala as diferenças entre Honra de Cavalaria e O Canto dos Pássaros: "No primeiro filme, aquelas personagens são arquétipos, porque já temos muita informação sobre elas. Mas os Reis Magos só os conhecemos da pintura, já que na Bíblia só há três linhas a respeito deles". Serra queria conservar esta origem icónica "de personagens planas, sem conflito dramático", o que leva a "uma intensificação do silêncio". Gosta de personagens que estejam "num esforço de superação", mas das quais "não vemos nunca a razão do seu esforço". O importante "está sempre fora do campo", o que implica uma cumplicidade entre espectador e filme: "O espectador tem de procurar o mesmo que os Reis Magos: tem de acreditar que no final do plano acontece algo". Chegamos ao fundamental da estética de Serra: o espectador que se senta para assistir a um filme seu incorre no mesmo que as suas personagens: "Uma busca de fé. O que se encontra no filme é a fé. Algo intemporal, alheado do tempo. A ideia de que ali vai nascer algo".

João Bonifácio e Luís Miguel Oliveira, Público




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