Teorema de Pasolini. Hoje, 18h, Loulé: aqui tão perto.

Auditório do Instituto D. Afonso III (Convento Espírito Santo). Entrada livre.

Palavras do realizador
A história da ideia de Teorema é muito curiosa e muito significativa. Há cerca de três anos comecei a escrever, pela primeira vez na minha vida, coisas de teatro; escrevi quase simultaneamente seis tragédias em verso e Teorema, era, como ideia inicial, uma tragédia em verso, a sétima. Já tinha começado a elaborá-la como tragédia, como drama em verso; depois senti que o amor entre este visitante divino e estes personagens burgueses era muito mais belo se fosse silencioso. Esta ideia fez-me pensar que talvez fosse melhor fazer disso um filme, mas parecia-me que, como filme, era irrealizável, e num primeiro momento, desmantelei uma narrativa que acabou por ficar muito esquemática e muito tosca num primeiro borrão; depois elaborei-a como argumento e ao mesmo tempo modifiquei também este primeiro esquema de notas que deram origem a uma obra literária bastante autónoma. Portanto Teorema tem dois momentos: um primeiro momento teatral que depois desapareceu, e um segundo momento que se dividiu em dois ramos: um cinematográfica, outro literário. Trata-se pois, de uma relação estranhíssima entre a literatura e cinema. (...)
O livro-Teorema nasceu, como sobre fundo de ouro, pintado com a mão direita, enquanto com a mão esquerda pintava um fresco numa grande parede (o filme homónimo). Numa tal natureza ambígua, não sei dizer sinceramente qual é a prevalecente: se a literária ou se a fílmica. (...)
Teorema fala também duma experiência religiosa. Trata-se da chegada de um visitante divino ao seio de uma família burguesa. Tal, visita destrói tudo aquilo que os burgueses sabiam de si próprios; aquele hóspede veio para destruir. (...)

O meu desconhecido - interpretado por Terence Stamp, explicitado pela presença da sua beleza - não é Jesus inserido num contexto actual, também não é Eros identificado com Jesus, é o mensageiro do Deus imperioso, de Jeová, que, através dum sinal concreto, duma presença misteriosa, faz sair os mortais da sua enganadora segurança. É o Deus que destrói a boa consciência adquirida sem custo, ao abrigo da qual vivem, ou antes, vegetam os bem-pensantes, os burgueses, numa falsa ideia de si próprios. (...)
É uma hipótese que pressupõe: 1) a falta de autenticidade da vida média burguesa italiana, isto é da burguesia em geral; 2) a impossibilidade do burguês italiano. dum modo geral, de resolver os seus próprios problemas. E, de facto, mesmo no caso de alguma coisa de autêntico irromper nos seus hábitos, de os destruir, de os deitar por terra, o mais que acontece é que o burguês natural, inconsciente de o ser, que vive a burguesia com naturalidade, torna-se um indivíduo problemático, ou seja, entra em crise - põe-se problemas que não pode no entanto, dentro do seu próprio âmbito, resolver. Assim, a chegada deste jovem à família burguesa provoca no filho uma veleitária vocação artística: tornar-se-á um pintor falido. Na rapariga uma nevrose, e acaba numa casa de saúde, numa espécie de greve dolorosa e angustiante; a mãe tem uma vida destrambelhada, um pouco por erotomania, um pouco com remorsos e acaba por voltar à igreja (à igreja tradicional, oficial) no fundo, aridamente. O pai dá tudo o que tem, despoja-se como. S. Francisco, mas isto não basta, porque até uma solução do tipo ascético - dada a mentalidade, a formação, o carácter deste personagem - agora já não pode ser tão exaustiva como o foi para S. Francisco, na Idade Média.
O único personagem que de algum modo se salva é a criada desta família, que veio dos campos da Lombardia, muito pobre, e por isso vive num mundo pré-industrial, pré-burguês, de alguma forma bíblico. (...) E portanto é a única em estado de perceber a autenticidade, o sagrado. Porém, é como um entalhe histórico, no fundo também está fora da história.
A conclusão do filme é portanto, por um lado, pessimista, por outro suspensa. E fica suspensa, porque no exacto momento em que fiz este filme, apresento objectivamente estes problemas da burguesia, insolúveis no seio da própria burguesia. A burguesia está a viver uma série de experiências que provavelmente a transformarão profundamente, e farão dela uma coisa diferente daquilo que nós estamos habituados a conhecer. (...)
A relação entre falta de autenticidade e autenticidade é impossível no plano da comunicação linguística: na realidade, o jovem hóspede não fala aos outros personagens, não tenta convencê-los com palavras, mas tem com todos uma relação de amor. (...) todo o filme é uma alegoria, e a relação erótica é sempre simbólica, e nunca naturalística ou realista.
Quero dizer que o erotismo do filme se identifica com a sua «linguagem». (...) a relação muda e o sistema de sinais eróticos constituem o único meio de comunicação dos personagens do filme.
Pier Paolo Pasolini

Análise Crítica
É um dos filmes clássicos do mestre do cinema italiano, Píer Paolo Pasolini. Produzida em 1968, roteiro (e depois livro) do próprio Pasolini, expressa uma perspectiva particular da crise estrutural do capital a partir de uma de suas principais instâncias sócio-reprodutivas: a família. O que Pasolini nos apresenta é o relato de dissolução de uma família burguesa a partir da chegada de um misterioso hóspede. É a representação estética da crise de reprodução social do capital a partir de um subgênero do cinema: o drama de família (por exemplo, só na década passada, podemos destacar: “Beleza Americana”, “Festa em Família”, “Tempestade de Gelo”, “Felicidade”).

Como grupo social primordial, a família é uma das mais importantes instâncias sócio-reprodutivas do sistema do capital como forma de metabolismo societário. A partir da crise orgânica do capital, ela tende a dissolver-se ou a assumir uma forma crítica. Na verdade, o seu drama interior é o drama da reprodução do sistema sócio-metabólico do capital. O cinema soube tratar disso com desenvoltura, principalmente a partir da última metade da década de 1960. Em Teorema, Pasolini trata de um processo de crise estrutural que ainda estava em seus primórdios, mas que ele soube apreender com genialidade (de certo modo, é a partir de meados de 1970 que se desenvolve a crise estrutural do capital com múltiplos desdobramentos na sociabilidade burguesa). Em Teorema, o drama de família é o próprio drama do esgotamento da sociabilidade burguesa. (...)

Deste modo, “Teorema” é um drama familiar que expressa, em si, de forma alegórica, a tragédia da sociabilidade burguesa em crise terminal. É a partir da presença – parousia – do hóspede misterioso, que cada personagem nega (e afirma, ao mesmo tempo) a si próprio.

A figura do hóspede é uma representação alegórica, um quase-Messias, cuja passagem pelo espaço familiar anuncia o que estava pressuposto: a dissolução da ordem do mundo burguês. É como um Cristo que veio trazer a desordem e não a ordem para o mundo. Seria Teorema uma versão profana de um outro filme de Pasolini, O Evangelho Segundo São Mateus (de 1964)? Inclusive, tanto a chegada do hóspede, como sua partida, é anunciada por um carteiro quase-angelical, chamado Ângelo (de Anjo?), sorridente, quase um anjo caído, cuja simpatia se contrasta com a sisudez e circunspeção da empregada que o recepciona. Pasolini é um diretor (e escritor) genial e maldito, pois profaniza algo que é caro à tradição conservadora italiana, o imaginário católico (o nome do pai em Teorema é Paulo e do filho, Pedro, e da mãe, Lucia...). Mas ele se apropria desse imaginário barroco para traduzir a crise da sociabilidade burguesa, sua venalidade e barbárie interior.

Pasolini trabalha com alegorias: a dissolução lenta da família é representada pela erosão continua de um terreno arenoso, o deserto que o industrial Paolo ira trilhar, no final do filme. O ambiente da mansão é simples, vazio, expressando a banalidade da existência burguesa. A absoluta incapacidade de comunicação no mundo burguês, do fetichismo das mercadorias, é representada pela relação silenciosa dos personagens da família. Não existe diálogo entre eles. A única relação que existe entre os personagens é consigo mesmo, com seus papéis e impostações de classe. O hóspede misterioso é um jovem regatado, também quase-angelical, e que vive imerso em sua leitura de Rimbaud.

O hóspede implode tais papeis e impostações sociais dos membros da família: o filho assume seu lado artístico; a filha Odetta, jovem introvertida, aficcionada pelo pai e pelos valores que a família representa, descobre o outro lado da vida; a matrona Lucia encontra no hóspede um escape para sua monotonia sexual; a empregada encontra no hóspede o verdadeiro senhor de seus desejos reprimidos e o industrial Paolo, seu canal de interlocução interior. O desejo na narrativa de “Teorema” é subversivo, pois o que cada personagem descobre é uma dimensão oculta do desejo, reprimida pelas relações sociais burguesas. É a projeção do desejo que expõe (e decompõe) a interioridade de cada um. O mediador do desejo reprimido é o hóspede. É a antítese que nega a personalidade-fetiche de cada membro da família burguesa.

O drama da família que Pasolini nos apresenta é posto no interior de uma perspectiva de classe. Pasolini é um diretor de visão de mundo marxista. A dissolução da família é a dissolução da hegemonia burguesa na Itália, de fundo católica; da sua incapacidade de conduzir a reprodução social, representada pelo elo orgânico da família. Em Teorema, Pasolini se utiliza bastante de alegorias. Quando Paolo, o industrial, renuncia à fábrica, temos a verdadeira representação da incapacidade hegemônica e produtiva da burguesia. (...)

Na crise estrutural do capital, a burguesia como “classe produtora” torna-se incapaz de encontrar a representação de si mesma. Logo no inicio do filme, num diálogo entre operários, surge a pergunta se todos poderiam se tornar burgueses, patrões de si mesmo. É a idéia da própria dissolução de uma identidade de classe. Deste modo, Teorema, de Píer Paolo Pasolini, é um filme visionário, pois, em 1968, conseguiu apreender o que, diante da lógica da financeirização, é a verdade do capitalismo global: a burguesia, como “classe produtiva”, perde sua identidade social, está despedia de si, vagando pelo deserto. O capital financeiro, ao criar a ilusão de que todos podem ser “burgueses”, ao possuírem ações de empresas, contribui para a sintomatologia de uma crise estrutural do capital e de suas representações de classe, inclusive, de classe produtiva (a burguesia).

Finalmente, é importante salientar o seguinte: o filme Teorema, de Pier Paolo Pasolini, nos remete a um dos traços marcantes da nova etapa de desenvolvimento capitalista que emergiria com a crise estrutural do capital a partir da década de 1970: a expansividade acelerada do metabolismo social da forma-mercadoria, expressa em valores-fetiches, expectativas e utopias de mercado capazes de desefetivar o ser genérico do homem.

Ora, Pasolini é um critico voraz do americanismo como cultura da perversidade humano-genérico. Por exemplo, seu último filme - Saló ou Os 120 dias de Sodoma, de 1975, é não apenas uma critica incisiva (e chocante) do fascismo, mas pode ser lido também como uma critica radical do "capitalismo de consumo" que, como a perversão sádica, promove a gratificação íntima espúria ao mesmo tempo que desefetiva o ser genérico do homem.

Crise e expansividade – eis um dos traços característicos da ordem burguesa. A expansividade capitalista que emerge com a globalização neoliberal é sintoma irremediável da crise estrutural do capital. A ordem burguesa se expande como meio de reprodução ampliada do seu metabolismo social estranhado. Por isso, Pasolini, em fins da década de 1960, vislumbrou um dos elementos compositivos da globalização neoliberal que iria se disseminar pelo planeta na próxima década: o aburguesamento universal. “Todos nós nos tornamos burgueses”, exclama ele.

Para Pasolini, o conceito de burguesia não possui apenas uma significação econômica, mas uma significação sócio-metabólica, ligada a valores de consumo. É burguês quem se coloca meramente no horizonte do consumismo inveterado que busca compensar através da obsessiva aquisitividade de produtos-mercadorias, a falta de sentido da vida sob a ordem capitalista. É necessidade intrinseca ao metabolismo social capitalista produzir individualidades frustradas, insatisfeitas e infelizes - no trabalho e nas relações afetivas - que buscam compensar sua deriva pessoal íntima pela prática de consumo obsessiva. O capitalismo liberal produz individuos aquisitivos, vorazes consumidores que não se reconhecem como produtores ou sujeitos humanos capazes de ir além do dado. Assim, o conceito de burguesia em Pasolini remete a um conceito moral. O burguês é a pessoa implicada com valores aquisitivos e instrumentais.

Pasolini, com Teorema, foi um visionário dos tempos neoliberais. É claro que ele criticava a expansão do capitalismo de consumo, que marcou o processo de modernização na Europa meridional, como Itália e França. Foram sociedades burguesas que no pós-guerra se “americanizaram” e incorporaram a lógica da sociedade afluente de mercado. Mas sob a globalização neoliberal, a lógica do aburguesamento iria assumir formas perversas, pois iria se colocar como horizonte de valores no interior de segmentos sociais excluidos das benesses da sociedade de consumo de massa. Isto é, o proletário miseravel também almeja ser burguês. Os "condenados da terra" cultivam o sonho da aquisitividade mercantil. Se o "capitalismo de consumo" criou indivíduos aquisitivos, o "capitalismo da exclusão social" produziu individuos monetários sem dinheiro. Isto é, burgueses ressentidos da sua exclusão irremediável da forma –mercadoria.

Enfim, no filme Teorema, Pasolini expõe a situação grotesca da vida burguesa, vida humana inautentica, imersa no vazio existencial de uma ordem familiar burguesa que se desestrutura em si e para si. Por isso, o filme Teorema trata, segundo Pasolini, de uma condição universal em sua forma extrema.

Giovanni Alves (na íntegra aqui)


.

Sem comentários: