«É estúpido escrever-lhe uma carta que você já não poderá ler. De qualquer modo vivemos num mundo em que já ninguém escreve cartas - as palavras escritas deixaram de ter cor, mão, respiração e compromisso, mesmo as mais íntimas. Despejam-se rapidamente em e-mails que se modificam, apagam e esquecem. É estúpido escrever-lhe uma carta mas aprendi nos seus filmes a amar a força das coisas estúpidas, que aparentemente não servem para nada e só nos atrapalham a vida. Um dos seus filmes de que mais gosto, "Conto de Inverno", narra a história de uma rapariga tão estúpida que se engana no nome da terra onde vive na hora de passar a morada ao grande amor que conheceu nas férias e mora noutro país. Encontramo-la cinco anos mais tarde, trazendo pela mão uma filha nascida desse grande amor e enganando a solidão entre dois amantes. Às tantas, estupidamente, decide ir viver com o mais fruste desses dois amantes, o seu patrão no cabeleireiro. A filha arrasta-a para o interior de uma igreja, porque é quase Natal e a criança quer ver o presépio. Sentada na igreja vazia a rapariga reza em silêncio pelo regresso do seu amor perdido, e o rosto banal ilumina-se-lhe de uma forma inesquecível. Não é católica, tem uma fé vaga, que não aprofunda - não é rapariga de leituras nem de aprofundamentos, desdenha mesmo aqueles que copiam a vida pelos livros, como o amante preterido. Esse amante intelectual dir-lhe-á uma frase belíssima: "Sabes porque te amo? Porque és bela, mas isso não basta. Amo-te porque tenho a impressão de ser capaz de ler o teu coração, e é raro poder-se ler o coração das pessoas". A força dessa rapariga advém da fidelidade absoluta ao seu próprio coração e da confiança que deposita nos sentimentos. Nunca, nem por um segundo, escondeu aos seus amantes que esperaria até ao fim da vida pelo pai da filha - e nunca, o que é ainda mais extraordinário, duvidou da reciprocidade do amor desse homem. Lá onde estivesse, ele seria dela como ela era dele. Nesse momento de revelação no interior da igreja decide deixar o amante que escolhera e viver só com a filha, aguardando o improvável reencontro. Mais tarde dirá que teve "uma premonição". E dirá também: "Não há boas nem más escolhas. É preciso que a questão da escolha não se coloque".
Você soube como ninguém mostrar a inteligência, a verdade, o valor imenso das coisas estúpidas. Há páginas e páginas escritas sobre a sua erudição e argúcia, os clássicos em que se inspirou - e que aliás aparecem delicadamente nos filmes, porque você não era um destes pós-modernos que empinam bibliotecas e as despejam como obras suas para brilhar em sociedade - mas a sua singularidade vinha de outra coisa: da observação apaixonada das escolhas humanas. Das justificações racionais fez capas de seda sob as quais refulge o brilho animal dos sentimentos imediatos. Você dá-nos a ver o modo como as pessoas se agitam através dos seus pequenos mundos pelo pavor de olharem para dentro de si mesmas, como se enganam de propósito por medo da felicidade - ou da liberdade, que é a mesma coisa. Você mostra-nos pessoas tristes que engendram esquemas para tornar os outros felizes.
Por estes dias revi os "Contos das Quatro Estações" recentemente editados em DVD, e tive saudades dos filmes que você já não vai poder fazer. Há cada vez mais gente a bradar pela falta de ética, para poder falhar gloriosamente em todos os valores - excepto o do trabalho, que se tornou o capataz dos novos deuses do sucesso e do dinheiro. Os seus filmes mostram, pelo contrário, que os valores estão nas nossas mãos, e que o mundo se altera, minuto a minuto, através das escolhas que fazemos. Quando decidimos não ter tempo para a tristeza de um amigo, ou sequer para decidir o que mais nos importa na vida, estamos a preferir um valor a outro. As escolhas, por sua vez, dependem de expectativas, e as expectativas dessa palavrinha imensa: fé. "O Signo do Leão", o seu primeiríssimo filme, é a história de um rapaz que passa de milionário a sem-abrigo da noite para o dia. Aquilo que o impede de se suicidar é a convicção de que, pertencendo ao signo astrológico de Leão, a miséria será temporária. Essa fé no signo, que é uma outra forma de fé em si mesmo, salvá-lo-á. Nos seus filmes, Eric Rohmer, as pessoas sabiam salvar-se, a si mesmas e umas às outras. E agora eu não sei como vou viver sem as pessoas dos filmes que você já não vai fazer.»
Inês Pedrosa
Texto publicado na edição da Única de 23 de Janeiro de 2010
Pronto. Está tudo dito.
No Pátio de Letras, a partir de sábado, e todos os sábados deste mês, pelas 17h, a série Contos das 4 Estações. A entrada é livre.
Começamos com
Conto de Primavera
Como dizer? Há no cinema de Rohmer, pelo menos nos filmes posteriores ao parêntesis Perceval, le Gallois/ A Marquesa d'O, um incomparável sentido da luz nos rostos. Ele filma personagens cujos rostos irradiam, numa espécie de exuberância da matéria humana que nos toca em primeiro lugar, em todo o caso um instante antes de olharmos a definição do «quadro» e de escutarmos as palavras. Eu sei que é quase sacrilégio, diante de um filme de Rohmer (esse habilíssimo manipulador de discursos, esse retorso ponderador de palavras imponderáveis e dos seus fluxos), afirmar que é possível e justo e infinitamente delicioso olhar para as pessoas e deixar os nossos olhos embeberem-se nelas, mesmo se para tal os nossos ouvidos se forçarem a ser momentaneamente distraídos (é uma pena que a prática das legendas não nos autorize por inteiro tal atitude). E que Conto da Primavera se pode desfrutar como um vaivém entre o que eles mostram e o que eles dizem, e que nesse ora-um-ora-outro há mais que tempo para vaguear sem destino fixo nem hora marcada.
Gosto de pensar que o Rohmer das Comédies et Proverbes e, agora, com os Contos das Quatro Estações (de que Conto da Primavera é o primeiro painel), se libertou da tirania de contar uma história. Sei que não é rigorosamente verdade, mas estes filmes têm qualquer coisa de contemplativo, no sentido de que cenas há que só lá estão porque há alguma coisa que é muito belo de se ver (como um muro, ou um jardim, ou um gesto, um sorriso, um movimento de mãos na orla de uma saia, um olhar) sem que haja qualquer decorativismo, o que quer dizer que é a beleza de olhar o seu ceme, que é o sentido de olhar o seu vector.
Como dizer? Conto da Primavera, hipotética e provável história de amor que se não cumpre, leva a disponibilidade de O Raio Verde até um ponto de equilíbrio entre a organização estrutural (tão cara a Rohmer e que esse filme não tinha) e uma deriva possível. Definitivamente, Rohmer não quer aqui ilustrar coisa nenhuma, esta sua fábula não tem moral nem mais-valia, ele salta - como dizer? - para uma espécie de hedonismo cinematográfico em que tudo desliza num encantamento a que ele sabe dar o seu iscozinho de pequeno mistério (a história do colar), a ironia doce (o personagem de Eva), um breve enredo de verdades e mentiras, como um «complot» para que os sentimentos aconteçam (a noite em que a protagonista e o pai da sua jovem amiga são deixados sós, como quem provoca uma situação a ver o que acontece), mas concluindo tudo como um parêntesis na vida, que antes existia e que, depois, volta à sua nonnalidade. Ou seja, é um fIlme sem consequências, que dura enquanto dura, nos deixa uma memória doce e nos atravessou em todas as direcções enquanto diante dele estávamos. Alguns pensarão que é em pura perda, mas não sei, finalmente, que coisa mais nobre se pode pedir à Arte, se ela nos dá o puro deleite dos sentidos e da inteligência.
Inteligência? Pois é: os primeiros quinze minutos deste filme, apontando-nos caminhos, fazendo-nos inquirir gestos e rotas, mas não nos dizendo nada, operando como quem desvenda pequenas pistas e guardando a revelação do seu sentido pleno, são sublimes como exemplo de uma arte de narrar que não pratica a obscuridade, mas inquire a nossa própria capacidade de interrogar e de ligar fios. Estou a ser injusto, porque Conto da Primavera não faz isso apenas durante os primeiros quinze minutos, todo ele se arquitecta num caminho que, assim que desvenda um facto assente (por exemplo: ela vive com um homem que está fora), logo multiplica imprecisões (ele deixou-a? é ela que o vai deixar enquanto ele está fora?) ou dúvidas (ela não o vai deixar nem ele a ela: mas será que ela não quereria deixá-lo? será que ela verdadeiramente o ama?) e que nos dá sempre mais aparências que certezas num jogo infindo, que a própria estrutura circular do filme deixa inconcluído, como se Rohmer nos incitasse a um olhar, a um ouvir e a um caminhar incertos.
Já vi filmes reconhecivelmente imponentes e outros que me deixam andar por eles, que não reconheço porque me propõem inusuais trilhos, como uma aventura feliz. São estes, porventura, os mais excitantes. Creio que se percebe que coloco Conto da Primavera nesta última e muito amável categoria.
Jorge Leitão Correia, Expresso, 11/1/1991
Título original: Conte de Printemps
Realização: Eric Rohmer
Argumento: Eric Rohmer
Interpretação: Anne Teyssèdre, Hugues Quester, Florence Darel, Eloïse Bennett, Sophie Robin
Direcção de Fotografia: Luc Pagès
Música: Jean-Louis Valéro
Montagem: Maria-Luisa Garcia
Origem: França
Ano de estreia: 1990
Duração: 103’
Pequena biografia:
O SIGNO DE ROHMER
Ao morrer no passado dia 11 de Janeiro, dois meses antes de completar noventa anos, Eric Rohmer deixou uma das obras mais coerentes e inteligentes de toda a história do cinema. E também muito variada, pois paralelamente às ficções que o tornaram célebre, Rohmer realizou diversos filmes educativos para a televisão.
De origem alsaciana, nasceu em Tulle, no centro da França, com o nome de Maurice Schérer e diz-se que adoptou o pseudónimo de Eric Rohmer para que a mãe não soubesse que ele fazia cinema, alterando também o seu lugar de nascimento, que nas suas biografias oficiais passou a ser Nancy. Diz -se também que proibiu que fossem publicadas fotografias suas enquanto a mãe vivesse. Com Godard, Truffaut, Rivette e Chabrol, todos cerca de dez anos mais novos do que ele, Rohmer foi um dos cinco nomes que revolucionou a crítica de cinema nos anos 50, nos Cahiers du Cinéma, onde continuaria a ter um papel fundamental e discreto durante muitos anos. Com os seus companheiros, também contribuiria para revolucionaram o cinema, no seio da Nouvelle Vague. Como crítico, foi o mais teórico e literário do grupo. Como realizador, surgiu em 1959, no mesmo ano que Godard e Truffaut, mas só alcançaria a consagração dez anos mais tarde, com MA NUIT CHEZ MAUD, já perto dos cinquenta anos. Em 1962, decidiu realizar uma série de seis filmes, a que chamou SEIS CONTOS MORAIS, sobre o mesmo tema, o que mostra a que ponto a sua arte é metódica e racional: “O narrador busca uma mulher e encontra outra, que monopoliza a sua atenção, até ao momento em que volta a encontrar a primeira”. Em todos estes filmes, Rohmer utiliza luz e cenários naturais e os diálogos, sempre num francês impecável e elegante, são abundantes e fundamentais, porque “na vida real, quando alguma coisa se passa, é sempre através da palavra”. Depois dos CONTOS MORAIS, Rohmer programou mais duas séries de filmes: as COMÉDIAS E PROVÉRBIOS (sem número preestabelecido, mas também foram em número de seis) e OS CONTOS DAS QUATRO ESTAÇÕES, fazendo diversas incursões a outros tipos de cinema: DIE MARQUISE VON O, PERCEVAL LE GALLOIS, A INGLESA E O DUQUE. Rohmer, que sempre trabalhou de modo independente dos grandes produtores, recusou-se a instalar-se numa perfeição rotineira. O seu cinema, aparentemente simples, é extremamente elaborado.
Cinemateca Portuguesa
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