Depois de muitos anos de glória, desde a emergência do neo-realismo, sobretudo no pós-guerra, com "Roma, Cidade Aberta" e "Libertação" de Rossellini, passando pela vitalidade perene da chamada "comédia à italiana" e prolongando-se até aos 70 com um cinema de autor fortemente personalizado (Visconti, Fellini, Antonioni), o cinema transalpino atravessa um período difícil, sem soluções visíveis, que não a de telefilmes, mais ou menos indistintos. Por isso é de saudar a estreia deste "Almoço de 15 de Agosto", se bem que haja na sua concepção elementos que poderíamos associar a influências televisivas, rapidamente superadas por um inteligente uso do cenário, por personagens complexas e bem construídas e por uma "mise-en-scène" inventiva, a explorar um microcosmo de bairro, numa Roma deserta pelas férias estivas.
A primeira questão a sublinhar é, aliás, o modo brilhante como se convoca a memória cinematográfica italiana. Roma deserta, no Verão, evoca, desde logo, o périplo de Nanni Moretti pelas ruas e lugares quase fantasmáticos, em "Querido Diário", mas Gianni di Gregório nesta sua promissora primeira obra vai mais atrás, aos tempos da comédia de Dino Risi ou Mario Monicelli, com possíveis citações de "A Ultrapassagem", embora aspirando a recompor o tom de género, preferindo-o à remissão para um filme particular. Há ainda no registo nostálgico de um quotidiano ficcionado e nas figurações tragicómicas das velhas senhoras ecos do Ermanno Olmi de "O Emprego" ou de "Lunga Vita a la Signora". O protagonista, meio ocioso, meio obcecado, repega numa caracterização que associamos ao Alberto Sordi de "Uma Vida Difícil", não sem que possamos descartar rimas internas com "Os Inúteis" de Federico Fellini. Do neo-realismo recordamos a alegria de filmar e de viver de um filme como "Domingo de Agosto" de Luciano Emmer. Tudo respira cinema e pequena aventura no espaço limitado de um apartamento claustrofóbico, embora aberto à Cidade Eterna (sintomáticos os belíssimos planos do terraço) entre objectos familiares e fingimentos lúdicos, numa festa permanente que confunde gerações e explora histórias sem futuro e com um passado filtrado por um olhar penetrante e universal.
A abertura, com a leitura de "Os Três Mosqueteiros", numa luz fosca de pintura holandesa de interiores, demonstra esta paixão pela ficção transposta, lida por um filho à velha mãe, caprichosa e "coquette", interessada nos traços fisionómicos de D''Artagnan (inacreditavelmente traduzido, nas legendas portuguesas, por Dartacão, como se Alexandre Dumas não existisse e se reduzisse aos desenhos animados do passado recente) e numa recriação do mundo vivido, a partir da imaginação. A personagem do filho, um perdedor nato, especializado numa sobrevivência feliz, funciona como centro da acção e distribui os seus dotes gastronómicos e protectores, procurando harmonizar o espantoso grupo de orgulhosas senhoras dignas.
E, se a memória é o motor do filme, o esquecimento joga-se nas relações entre as anciãs que, de certo modo, tomam nas mãos os protocolos deste intermezzo de Verão: uma delas foge para fumar e apanhar o ar fresco da noite, outra recusa a dieta, "imposta" pelo filho, e come, às escondidas, a proibida massa no forno; a dona da casa esquece os seus agravos e junta-se à festa. A sexualidade, a comida, os prazeres do convívio tudo vem à colação, num registo de transgressão contagiante e poroso.
Claro que poderíamos acentuar um certo cariz autobiográfico deste filmezinho quase artesanal, em que o realizador assume também o papel do protagonista, filmando a função na casa romana que partilhou com a mãe, durante anos. Mas o que o torna cativante e irresistível é a sua vertente onírica de escape à realidade omnipresente e determinante: um pequeno sonho de um fim-de-semana de Verão, em que tudo se transfigura, tudo reverte para uma carnavalesca imitação de vida.
Mário Jorge Torres, Público
O projecto de O Almoço de 15 de Agosto é antigo, ou este filme é uma ideia recente?
Gostou de ser produzido pelo Matteo Garrone?
Sim, ele tem muita coragem e também me deu muita coragem, porque era difícil fazer um filme destes, com as senhoras que não são actrizes profissionais, com pouco dinheiro. Eu não queria desempenhar o papel principal, mas na última reunião de produção, e perante a falta de dinheiro, toda a gente me disse: "Vais tu fazê-lo!" . E fi-lo, porque nem sequer tive tempo para pensar nisso.
Sim, mas nunca interpretei um papel a sério, apenas fiz pequeníssimas interpretações nos filmes que escrevi para o Matteo. E também fui assistente de realização. Mais nada.
Sim, mesmo que não saísse lá muito bem! (risos). Mas sim, apesar de ter acabado por ter sido eu também a interpretá-lo. Eu queria ser o realizador porque há coisas autobiográficas nesta história, há verdade nela. Vivi 10 anos com a minha mãe. A minha família já tinha desaparecido e eu estava com ela por ser filho único, e éramos muito ligados um ao outro. Foi assim que conheci o mundo dos idosos, através das amigas dela, das pessoas que a iam visitar, e passei a gostar muito desse mundo. É um mundo cheio de vitalidade, de coragem, de alegria de viver. E em 2001, como tínhamos a renda em atraso, o administrador do nosso condomínio veio propor-me tomar conta da mãe dele enquanto ia para fora no feriado prolongado do 15 de Agosto. Disse-lhe que não. Mas depois pus-me a pensar no que teria sucedido se tivesse aceite.
Sim. Ele já sente isso. Entretanto, eu tinha pensado em mais personagens para o filme que não apenas a minha e a das quatro senhoras idosas, mas descobri que, no argumento, estas tinham tanta força, que "eliminaram" as outras.
Ele é mesmo um amigo meu, uma personagem característica do Trastevere que conheço há muito tempo. Nós no filme falamos como na vida real. E o médico também é muito meu amigo. Como vê, há muita realidade neste filme.
Pois há. Eu queria também falar de Roma e das suas derradeiras personagens típicas, porque já não há muitos romanos genuínos nos bairros populares da cidade. O meu amigo é um desses velhos romanos. Valeria de Franciscis, a senhora que interpreta a minha mãe é uma das velhas grandes senhoras de Roma, que durante a rodagem nos falava dos tempos em que se movimentava nos círculos da alta sociedade. Ela foi recebida pela rainha Isabel II de Inglaterra quando visitou Roma, imagine. Tem 93 anos, é uma mulher formidável, viva, espontânea. Gosto muito dela.
Ela é um amiga da família do Matteo. Conheci-a porque ela participou num filme dele, Estate Romane. A senhora que faz de Grazia é minha tia. A minha própria tia entra no filme, tem 83 anos. As outras duas, encontrei-as em centros da terceira idade. Falei com muitas idosas e foi uma experiência formidável. Como era difícil dirigi-las, orientá-las, porque quase nunca seguiam as minhas indicações, decidi deixá-las improvisar bastante e movimentarem-se como elas quisessem. E depois elas diziam coisas mais bonitas e interessantes do que as que estavam no argumento. De modo que resultou tudo muito natural. É muito triste que os idosos tenham praticamente desaparecido do cinema,
Gosto muito da comédia italiana, adoro aqueles velhos filmes, mas Almoço de 15 de Agosto não é um filme predeterminado nesse sentido, A realidade e a humanidade desses filmes está lá, mas eu quis dar ao filme uma expressão moderna, dos nossos dias. Mas espero que se perceba que em Almoço de 15 de Agosto está patente esse meu amor pela comédia tradicional.
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