Séraphine de Sanlis, conhece? Em caso contrário, Martin Provost ajuda-o. 2ªf, IPJ, 21h30.

A vida da pintora Séraphine Louis entre as vésperas da I Guerra, em que é descoberta, e a altura da sua morte, durante a II Guerra. O filme dos Césares.

"Seraphine", que ganhou este ano vários Césares (incluindo o de melhor filme), baseia-se na vida da pintora Séraphine Louis, dita Séraphine de Senlis, entre o momento, nas vésperas da I Guerra, em que é descoberta pelo crítico alemão Wilhelm Uhde, seu futuro patrono, e a altura da sua morte, num asilo, durante a II Guerra. De certa maneira, Provost filma esta história (que toma algumas liberdades com a biografia de Séraphine, ao que podemos saber) como uma variação sobre a mitologia do "bom selvagem".



Séraphine, que já tinha 50 anos quando Uhde a encontrou, se não é uma "enfant sauvage" é uma "vieille dame sauvage", ensimesmada, de modos peculiares, profundamente devota, que pinta paisagens e visões de maneira compulsiva. "Naive?", perguntam a certa altura a Wilhelm Uhde; "gosto mais de dizer 'primitiva', uma 'primitiva moderna'", responde ele, e essa é a perspectiva do realizador Martin Provost. Em termos melodramáticos, o que se filma é o choque entre o "primitivismo" inerente a Séraphine e a "modernidade" em que Uhde a lança. Se a psicologia de Séraphine é, digamos, instável desde o primeiro momento, o sucesso das exposições de Uhde e das decorrentes vendas de quadros vêm criar um curto-circuito à pobre mulher. E quando Provost a deixa, nos planos finais, em pacificadas imagens de um bucolismo curiosamente "impressionista", em remissão para o ambiente em que víramos Séraphine várias vezes na primeira parte do filme fecha-se o círculo: o "primitivismo" e a "naiveté" de Séraphine só vivem em paz com o seu "ecossistema", no sentido mais literal e naturalista do termo, numa continuidade propriamente religiosa (como a devoção dela reforça). Interrompida essa continuidade, o equilíbrio perde-se - e o "selvagem" perde-se, enlouquece, às mãos do século XX, representado menos pelas grandes guerras que cronologicamente balizam o filme do que pelo "circuito artístico".



"Seraphine" não está isento de clichés do "filme sobre artistas", apenas ambiguamente contornados pela semi-loucura da personagem. A interpretação de Yolande Moreau segura as pontas, equilibrando uma personagem que facilmente entraria em roda livre e se mantém sempre credível. Provost revela-se um ilustrador sólido (alguns belos planos de natureza e de Séraphine na natureza), um pouco mais académico quando se trata de filmar a narrativa e os diálogos. É um filme digno e interessante.
Luís Miguel Oliveira, Público

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