CITIZENFOUR | 2 AGOSTO | Q - ESPAÇO CULTURAL | 21H30

LES BARBARES
Jean-Gabriel Périot, França, 2010, 5’ 


Em “Les barbares”, o confronto entre a classe política e todas as outras.


CITIZENFOUR
Laura Poitras, EUA/Alemanha, 2014, 114’, M/12


FICHA TÉCNICA:
Título Original: Citizenfour
Realização: Laura Poitras
Imagem: Kirsten Johnson, Trevor Paglen, Laura Poitras, Katy Scoggin
Montagem: Mathilde Bonnefoy
Origem: EUA/Alemanha
Ano de Produção: 2014
Duração: 114´


CRÍTICA
Óscar do melhor documentário, inscreve-se na linhagem do thriller político mas funciona como um retrato de um homem que embate de frente com o mundo real.
Citizenfour era o pseudónimo electrónico que Edward Snowden usava na sua correspondência com a documentarista americana Laura Poitras; é agora o nome do filme com que ela venceu há poucas semanas o Óscar de melhor documentário.
E esse nome é central, porque explica como, para Poitras, Citizenfour é uma oportunidade de desviar o olhar da revelação que Snowden fez dos programas de vigilância electrónica das agências de informações americanas para o homem e para os seus motivos. Citizenfour não é um denunciante anónimo; é uma pessoa de carne e osso, Ed Snowden, 29 anos, que se esconde num hotel de Hong Kong poucos dias antes do interminável acervo de documentos a que o seu estatuto de consultor informático para a NSA lhe dava acesso começar a ser divulgado.
Citizenfour não deixa por isso de reivindicar uma dimensão activista, de querer discutir as questões sobre o poder do estado que as revelações de Snowden trouxeram para o debate público. Poitras sofreu “na pele” as intimidações do estado americano devido aos documentários “incómodos” que realizou anteriormente sobre as consequências do 11 de Setembro (My Country My Country sobre o Iraque e The Oath sobre o Iémen) e terá sido em parte por isso que Snowden “escolheu” a cineasta como interlocutora privilegiada. Mas, ao registar e contextualizar os sete dias em que Poitras, Snowden e os jornalistas Glenn Greenwald e Ewen MacAskill estiveram em Hong Kong e, confrontados com a enormidade das revelações do consultor, gizaram o plano da sua revelação pública, a cineasta está também a desenhar um retrato do homem. E Poitras resiste a filmar Snowden como mero herói liberal ou como lutador pela liberdade; em vez disso, a sua câmara filma-o, incrédula, com a surpresa de que alguém assim exista realmente, mas também com o receio de um espectador que vê alguém enfiar-se na boca do lobo. O Snowden que aqui vemos é um vizinho do lado ou melhor amigo que se fartou de ser peça da engrenagem, alguém que pensou e racionalizou o que está a fazer mas que, ainda assim, não está preparado para o que vai acontecer a seguir.
É isso que é fascinante e sedutor no filme: mais do que reiterar a omnisciência do colete de forças electrónico que nos vigia diariamente e perceber que daqui para a frente vai ser preciso lutar pelo direito à privacidade, Citizenfour dá a essa abstracção o corpo de um idealista que se vê de repente confrontado com as consequências e as responsabilidades do seu idealismo. Há em Citizenfour um “antes” e um “depois” de Edward Snowden revelar a sua identidade – e é no momento em que o próprio Snowden se apercebe disso que o filme de Laura Poitras deixa de ser um simples documentário activista para se tornar num retrato pungente da relação equívoca entre o homem e a política, sem desencantos nem ilusões mas com uma espécie de resignação. Ao fazê-lo, Citizenfour coloca-se na linhagem do thriller político em que Hollywood se especializou na década de 1970 – títulos como A Última Testemunha ou Os Homens do Presidente de Alan J. Pakula, ou Os Três Dias do Condor de Sydney Pollack. E é impossível não ver em Edward Snowden uma espécie de “equivalente” da personagem de Robert Redford neste último, o analista que se tornou incómodo, o espião improvável que não percebeu exactamente no que se estava a meter.
Jorge Mourinha, publico.pt/

O JOGO DA IMITAÇÃO | 30 JULHO | Q - ESPAÇO CULTURAL | 21H30

PLUG AND PLAY
Michael Frey, Suíça, 2013, 6'

Criaturas antropóides, com tomadas em vez de cabeças, preparam-se para fazer estragos. Em vez de se abandonarem aos ditames do dedo erguido, rapidamente se submetem a si mesmas. Mas os dedos também “dedilham” por aí. Será amor?




O JOGO DA IMITAÇÃO
Morten Tyldum, 2014, EUA, 113’, M/12







FICHA TÉCNICA
Título original: The Imitation Game
Realização: Morten Tyldum
Argumento: Graham Moore, baseado no livro "Alan Turing: The Enigma", de Andrew Hodges
Montagem: William Goldenberg
Fotografia: Oscar Faura
Música: Alexandre Desplat
Interpretação: Benedict Cumberbatch, Keira Knightley, Matthew Goode
Origem: GB/EUA,
Ano: 2014
Duração: 114’

PRÉMIOS 
Oscar para o Melhor Argumento Adaptado 
Nomeações para os Oscares 2015:
Melhor Actor - Benedict Cumberbatch 
Melhor actriz secundária-Keira Knightley 
Melhor filme 
Melhor Realizador
Melhor Edição 
Melhor banda sonora original 
Production Design


CRÍTICAS
Uma interpretação soberba de Benedict Cumberbatch numa meditação sobre a diferença disfarçada de thriller de guerra.
Pode parecer algo “insensível” evocar a popular série de comédia A Teoria do Big Bang para falar de Alan Turing, matemático inglês que lançou as bases dos computadores modernos e teve um papel fulcral na decifração dos códigos militares alemães durante a II Guerra Mundial.
Não é, por uma simples razão: a própria estratégia do argumentista Graham Moore e do realizador Morten Tyldum em O Jogo da Imitação é introduzir a personagem ao espectador (numa cena notável que brinca com o conceito das “entrevistas de emprego”) como um idiot savant que parece existir numa realidade alternativa, um génio matemático incapaz de jogar o jogo social. Esse início algo brusco e picaresco remete invariavelmente para Sheldon Cooper, o físico imaturo da Teoria do Big Bang – e é essencial para estabelecer a base do que se seguirá. O filme é a história da “aprendizagem” que Turing faz da necessidade de se integrar na estrutura social de uma Inglaterra classista e rígida, mas também a história de um homem condenado pela sua genialidade que acabou por se suicidar em 1954 sem que a importância do seu trabalho fosse reconhecida em vida.
O Jogo da Imitação esconde essa dimensão trágica por trás de uma narrativa clássica de thriller de guerra, ligada à corrida contra o tempo da equipa de criptógrafos recrutada pelo governo inglês para descodificar as comunicações militares alemãs. Por trás desse problema matemático, é uma metáfora da própria humanidade de Turing que se gere: o título refere-se ao célebre “teste de Turing” onde um pequeno número de perguntas seria suficiente para identificar e diferenciar uma inteligência humana de uma inteligência artificial. Mas esse “jogo da imitação” é também o jogo da identificação e diferenciação da “normalidade” e do “desvio”. Reflecte a tragédia de Turing como um visionário desfasado do seu tempo, uma personalidade quase autista que, apesar dos seus melhores esforços, nunca conseguiu integrar-se completamente na sociedade rígida da Inglaterra pós-imperial. E o filme ganha-se precisamente na elegância com que Morten Tyldum tece o seu retrato de Turing como prisioneiro do seu tempo histórico mais do que como símbolo do que quer que seja.
Para isso contribui sobremaneira a interpretação espantosa de Benedict Cumberbatch, que transforma o cientista quase sem esforço de proto-Sheldon Cooper em figura trágica, que transporta às costas um filme mais inteligente do que a aparência de “filme de época britânico” daria a entender (e é uma produção americana dirigida por um cineasta norueguês). E é a maneira certa de falar de Alan Turing: como uma pessoa demasiado complexa para um mundo que não aceitava essa complexidade. 
Jorge Mourinha, publico.pt/

[...] Aquilo que é especial neste filme é que não é a típica história sobre a Segunda Guerra Mundial. Pelo contrário, toda a acção de campo é praticamente ignorada, e o maior foco encontra-se no trabalho de bastidores que permitiu que a vitória dos Aliados fosse possível. São ilustradas todas as decisões difíceis e todo o trabalho árduo que raramente é mencionado, quanto mais glorificado.
Para além disto, o enredo toca em pontos essenciais acerca da incompreensão humana em relação à diferença, sendo esta vista como uma fraqueza, e não como uma eventual fonte de inovação e genialidade. Tudo o que de positivo possa surgir de alguém considerado invulgar é visto como insuficiente, por muito brilhante que possa ser, algo que aconteceu exatamente a Alan Turing. Outro aspecto muito positivo é a forma como a homossexualidade de Turing está presente e é importante, mas não se sobrepõe ao resto da sua identidade, não sendo de todo o foco da história, de maneira a não retirar a principal relevância aos seus feitos intelectuais.
A representação é fabulosa, especialmente da parte de Benedict Cumberbatch, sendo este capaz de comover com a sua subtileza na interpretação de Alan Turing. Todos os outros atores também representam de forma cativante, fazendo com que o enredo seja ainda mais envolvente.
Alan Turing permitiu, com a sua mente, que muitas vidas fossem poupadas, diminuindo a duração da guerra em dois anos. No entanto, ao contrário do que seria esperado, chegou ao final da sua vida de forma humilhante e indigna. “O Jogo da Imitação” é o reconhecimento que merecia ter recebido há dezenas de anos atrás.

Sara Lopes, magazine-hd.com


O PAÍS DAS MARAVILHAS | 26 JULHO | Q- ESPAÇO CULTURAL | 21H30

A OLHAR PARA CIMA
 João Figueiras, Portugal, 215, 15’, M/6

Pedro observa escondido na igreja as raparigas a vestirem fatos de anjo para a procissão.

Escondeu-se para que não lhe vistam aquela fatiota ridícula. 
Pedro deseja que a procissão não aconteça. 
Deseja que chova, que caia um temporal sobre a ilha.
Pedro começa a acreditar que a procissão não vai acontecer.

O PAÍS DAS MARAVILHAS
Alice Rohrwacher
Itália/Suíça/Alemanha, 2014, 111', M/12






FICHA TÉCNICA
Título Original: Le Meraviglie
Escrito e Realizado por Alice Rohrwacher
Música Original: Piero Crucitti
Montagem: Marco Spoletini
Fotografia: Hélène Louvart
Interpretação: Maria Alexandra LunguSam Louwyck,Alba RohrwacherSabine Timoteo e Monica Bellucci
Origem: Itália/Suíça/Alemanha
Ano: 2014
Duração: 111' 

FESTIVAIS
Festival de Cannes - Grande Prémio do Júri

CRÍTICA
Há algum tempo que não víamos “o campo”, a ruralidade, a entrarem num filme de maneira tão expressiva e tão palpável, a ponto de se tornarem a sua matéria.
Ainda sem sabermos que família protagonista de O País das Maravilhas se dedica à apicultura já estamos a pensar em abelhas ou, vá lá, em insectos: aqueles planos iniciais, os faróis de um automóvel a iluminarem a noite e a sugerirem um bicho alado, suspenso no ar.
Não é que seja um pormenor especialmente significativo, mas indicia qualquer coisa: a enorme intenção, e a enorme atenção, que a jovem realizadora italiana Alice Rohrwacher pôs neste filme que é a sua segunda longa-metragem de ficção.
O País das Maravilhas é um relato de inspiração auto-biográfica, a história de uma família que vive um modo de vida “alternativo”, com uma certa rigidez ideológica (a personagem do pai), algures na paisagem rural da Toscana. O pai, a mãe e as crianças formam uma espécie de pequena “comuna”, partilhando as responsabilidades do trabalho diário e da condução da família, a ponto de a filha mais velha, com nome de personagem de Fellini (Gelsomina), se vir investida da liderança familiar. A questão da autoridade é um dos temas do filme, dada, como muita coisa em O País das Maravilhas, em tensão e em contraste. Tensão e contraste, nesse caso, entre o fundamento ideológico – a recusa teórica de uma autoridade absoluta e “natural” por parte do pai – e a autoridade efectiva, e efectivamente paternal, que ele revela ao proibir a miúda mais velha de concorrer a um concurso televisivo sobre “maravilhas rurais” (a televisão também é uma entidade pouco grata naquela família). Se este é o conflito subjacente à narrativa, ele vem lançar, ou servir de diapasão, outro conflito essencial, que seria resumidamente o que opõe a “natureza” e o “espectáculo”. O filme de Rohrwacher tem a subtileza e a inteligência suficientes para também virar esses termos do avesso, e conter tanto uma reflexão sobre o “espectáculo da natureza” – todas, e são muitas, as cenas em que o que está em causa é a relação entre aquelas pessoas e o ambiente em que vivem, o campo, os lagos, as abelhas e os outros animais – e a “natureza do espectáculo”, as cenas de rodagem do tal programa televisivo (onde pontifica a maior vedeta do elenco, Monica Bellucci), dadas desde o primeiro momento a partir do seu carácter artificial e artificioso (todo o aparato da produção). Será este, porventura, o ponto em que o filme, depois de chamar Gelsomina (que, recorde-se, era o nome da personagem de Giulietta Masina em A Estrada) à sua protagonista, mais entra dentro dum território aparentado ao fellinianismo, mas que também convoca – a partir da reconstituição do tempo dos Etruscos – uma espécie de subconsciente telúrico, como que uma assombração cultural daquelas terras.

Mas ainda assim, notável é o modo como Rohrwacher filma o “espectáculo da natureza”, a presença dos elementos, o calor do Verão e a humidade da chuva súbita, o à-vontade dos miúdos (e dos adultos) a fazerem “corpo” com o ambiente natural. Lembramo-nos de um texto de Serge Daney, ainda nos anos 80, a comentar a tendência para a desaparição do campo no cinema contemporâneo, cada vez mais urbanizado (e se isto era verdade nos anos 80, mais o será nos anos 2010) – e lembramo-nos disso porque, de facto, há algum tempo que não víamos “o campo”, a ruralidade, a entrarem num filme de maneira tão expressiva e tão palpável, a ponto de se tornarem a sua matéria. Não exclusiva, claro: a festa não fica completa sem os humanos, sem a profunda impressão de realidade exalada por aquela família, as cenas de conjunto, em paz ou em tensão mas sempre cheias de souplesse, e a forma como daqui se vai recortando uma protagonista, Gelsomina, que atravessa o filme a crescer e, sem nunca verdadeiramente se rebelar, a encontrar-se enquanto criatura autónoma, dotada de vontade e... autoridade.
Luís Miguel Oliveira, publico.pt/


ENTREVISTA À REALIZADORA
A sua trajectória pessoal já passou por Portugal?
É verdade. Comecei por viver em Portugal como aluna do programa Erasmus; depois, estudei documentarismo na Videoteca Municipal de Lisboa e trabalhei como assistente de montagem de Luciana Fina, uma italiana, realizadora de documentários, que vive em Lisboa. E era frequentadora regular da Cinemateca.
Esta sua segunda longa-metragem de ficção, O País das Maravilhas [depois de Corpo Celeste, 2011], quase começa como um documentário sobre uma família no campo — o projecto envolvia essa vontade de documentar uma determinada realidade?
Em boa verdade, no filme tudo é falso, no sentido em que nada funciona num plano documental. Ao mesmo tempo, gosto de dizer que inventámos um mundo e, depois, de certa maneira, fizemos um documentário sobre esse mundo. Tudo é fabricado, estava tudo escrito, mas devido à consistência dessa fabricação, pode parecer um documentário.
Por exemplo?
Por exemplo, quando num filme há necessidade de ter uma horta, ou um jardim com plantas, muitas vezes compram-se as plantas já crescidas e colocam-se na terra — o que se procura é “aquela” imagem das plantas. No nosso caso, plantámos mesmo uma horta, ou seja, cinco meses antes da rodagem definimos que plantas queríamos, semeámo-las, tratámos delas e, no fim, tínhamos uma verdadeira horta. E durante a rodagem consumimos aquilo que tínhamos criado na horta.
Que efeitos esse processo teve no trabalho dos actores?
Sempre me interessou um cinema em que o método, a maneira de chegar a determinadas coisas, acaba por ser mais importante que as próprias coisas. Nesse sentido, os actores acabaram mesmo por viver naquele mundo, a ponto de todos acreditarmos profundamente naquela família — afinal, os seus membros existiam ali mesmo, à nossa frente.
E até que ponto os actores marcaram as personagens com elementos do seu próprio mundo interior?
Marcaram mesmo para além do próprio filme. Há até casos, como o de Cocò, interpretada por Sabine Timoteo, em que a personagem acabou por existir mais para nós do que na montagem final.
 certa altura, algo muda no filme quando chega uma equipa de televisão para fazer um programa mais ou menos poético sobre aquela região — é um reflexo da própria televisão que existe hoje em Itália?
Não, não é. Aquela televisão aparece antes como produto da imaginação de uma criança, como qualquer coisa de pré-histórico. A televisão que se faz em Itália é horrível, está muito comprometida com a política.
Vimos outros filmes italianos, por exemplo de Nanni Moretti ou Matteo Garrone, que nos levam a pensar que a discussão do cinema, hoje em dia, em Itália, passa necessariamente pela discussão do poder da televisão.
Por um lado, podemos falar de cinema sem falar de televisão. Por outro lado, é um facto que, trabalhando nós sobre o presente, não podemos esquecer que é da televisão que provém a maior influência sobre a consciência política.
Pode dizer-se que, em Itália, como noutros países europeus, há muitos espectadores que abandonaram as salas de cinema e apenas consomem televisão?
É um problema, sem dúvida — tem a ver com a abandono dos rituais colectivos. E escusado será dizer que o cinema, a ideia de sair de casa e participar colectivamente na visão de um filme, é um desses rituais que pode estar a desaparecer. Em todo o caso, creio que algo mudou nos últimos dois ou três anos: há uma disponibilidade maior para ir ver determinados filmes, digamos filmes algo especiais.
E Rossellini, Fellini, Antonioni... existe alguma memória dos grandes clássicos?
Digamos que há uma parte de memória inconsciente, porque esses grandes cineastas mudaram o imaginário colectivo. Ao mesmo tempo, há uma enorme ignorância, já que muito poucos viram os seus filmes. Temos a sorte de, em Itália, existirem entidades como a Cinemateca de Bolonha que têm desenvolvido um trabalho importantíssimo de restauro e apresentação pública de filmes antigos. Em Itália, também existe a televisão de Berlusconi, mas é mais interessante falarmos da Cinemateca de Bolonha...
João Lopes, sound--vision.blogspot.pt

MR. TURNER de Mike Leigh | 23 JULHO |Q - Espaço Cultural | 21h30


MR. TURNER
Mike Leigh, Reino Unido, 2014, 150’, M/12


FICHA TÉCNICA
Título original: Mr. Turner
Realização e Argumento: Mike Leigh
Montagem: Jon Gregory
Fotografia: Dick Pope
Música: Gary Yershon
Interpretação: Timothy Spall, Paul Jesson, Dorothy Atkinson, Karl Johnson, Marion Bailey, Paul Jesson, Ruth Sheen, Sandy Foster
Origem: Reino Unido
Ano: 2014
Duração: 150’






CRÍTICA

Uma interpretação extraordinária de Timothy Spall transporta um filme inteligente sobre as contradições entre o artista e a sua arte.
Costuma dizer-se de alguém que está a fazer “figura de urso” quando se está a comportar de modo estranho ou caricato ou excêntrico. É, de caminho, a melhor definição para o que o grande Timothy Spall faz na pele do pintor britânico do século XIX J. M. W. Turner: dá-lhe qualquer coisa de animal não inteiramente domesticado, um urso que procurasse encaixar-se na sociedade civilizada do melhor modo possível, mas incapaz de esconder a sua natureza selvagem, comunicando por grunhidos e rosnados, mesmo quando articula frases rebuscadas e elaboradas como se esperaria da Inglaterra vitoriana. Turner é uma figura de urso de cujas patas saem quadros de uma beleza delicadamente poderosa, explorações impressionistas de cor, luz e textura que compõem uma imagem. É esse o segredo da arte: como transmutar o banal em transcendente, como colocar emoção numa sucessão de traços e pinceladas. 
Mike Leigh, o resmungão cineasta inglês que tem passado toda a carreira a transmutar os metais aparentemente pobres da vida quotidiana no ouro precioso de uma série de retratos de gente normal que tem tudo de excepcional, pode muito bem estar a falar de si quando está a contar a história dos últimos anos de vida e obra de Turner. Mr. Turner gira todo à volta da aparente contradição entre a transcendência gloriosa da arte e a banalidade e fragilidade do artista, do divórcio entre aspiração e realidade, inspiração e transpiração. Não há melhor exemplo para isso do que a espantosa cena em que o que parece ser uma “provocação” ao colega e rival Constable se revela ser uma pequena inspiração que dá uma dimensão adicional a um quadro que pareceria acabado – momento que também diz como inspiração e transpiração, petulância e talento são indissociáveis.  
É por aí que percebemos como Mr. Turner encaixa na filmografia mais tradicionalmente “socio-realista” de Leigh, mais atenta à Inglaterra contemporânea e que só no magistral Topsy-Turvy(1999) se arriscara pelos caminhos do filme de época: tal como a pintura de Turner, também o seu cinema se constrói numa metódica abordagem de preparação e trabalho de casa que permite, depois, que tudo floresça frente à câmara. E, por muito que não pareça ser um dos filmes maiores de Leigh – é um tudo nada mais pesadão e flácido do que o seu habitual - , a riqueza de pormenores, a inteligência da abordagem e o rigor da reconstituição tornam Mr. Turner num dos melhores filmes que se podem ver agora por aí. Com o bónus da interpretação absolutamente extraordinária de Timothy Spall, cúmplice de longa data de Leigh que parece habitar a complexidade e as contradições de Turner como se não fossem nada de mais. É uma figura de urso que merece ser vista e aplaudida.
Jorge Mourinha, publico.pt


ENTREVISTA AO REALIZADOR
Interessa menos a Mike Leigh seguir as convenções do filme biográfico (que ele habilmente contorna), sublinhar a excentricidade do homem que homenageia, do que interrogar o mistério intemporal da criação
— afinal, o verdadeiro tema do seu último trabalho, “Mr. Turner”.
Timothy Spall, um dos seus atores prediletos [e que sairia de Cannes 2014 com o Prémio de Melhor Ator], ‘apodera-se’ da figura do pintor numa encarnação que está muito longe do retrato caricatural deste género de filmes. Este é o ‘seu’ Turner? E interessou-lhe distinguir o homem do artista?
Espero que essa distinção se note no filme, francamente. Aliás, foi esse contraste que me fascinou. Estamos perante um pintor extraordinário mas também um homem conflituoso, complexo, vulnerável. Quando me comecei a interessar por Turner [1775-1851], dei-me conta de que a sua vida qualificava muito a ousadia dos seus quadros. “Mr. Turner” nasce, portanto, da soma destes elementos. Da minha curiosidade pelo gesto criativo unida à minha curiosidade pela biografia. E, sim, este é o ‘meu’ Turner.
Quais foram os perigos que um flime destes, raro na sua carreira, lhe levantou?
Ficar cercado por um tema e ao mesmo tempo sentir que não podia sair dele, que era preciso ‘meter as mãos na massa’. Ficar à superfície da história, do biografado, do seu trabalho. Quis que Turner - e digo-o com a maior modéstia possível - entrasse na minha circulação sanguínea. Esta é a melhor resposta à sua pergunta.
Acha que o trabalho de Turner lhe exigiu uma distância necessária face à realidade do seu tempo?
O que é que lhe parece?
Acho que sim. Mas os seus filmes sempre precisaram da realidade, do presente, de um aqui e agora...
Não discordaria da observação...
Pensou ou reviu outros filmes sobre pintura antes de realizar este?
Vi vários, mas não para procurar uma inspiração. Sabe como é, os filmes levam a outros, influenciam-nos quase sempre mal. É claro que há bons filmes sobre pintura, mas não sobre Turner. Eu queria que ele entrasse nessa galeria.
Van Gogh”, de Pialat?
Seguramente é um dos melhores, sim. Estou a lembrar-me de um bom filme de Alexander Korda, “Rembrand”, feito em 1936, com Charles Laughton. Por outro lado, e embora eu tenha sido um grande amigo de Derek Jarman, acho o seu Caravaggio” muito aborrecido.
Porque é que não há filmes sobre Turner?
Foram feitas, no Reino Unido, algumas dramatizações televisivas sobre ele. Todas péssimas... Não lhe sei responder. O que é espantoso é que a vida de Turner é muito cinematográfica.
A última linha do filme está documentada ou foi uma criação sua?
O quê: “The sun is God”? Foram as últimas palavras de Turner no leito da sua morte. Não me parece que seja uma frase que possa ter sido inventada... Os biógrafos, é claro, disputam estas coisas. Eu li essas biografias... para melhor me conseguir desembaraçar delas.. Por exemplo, um dos episódios mais célebres sobre Turner é esse, lendário, em que ele se terá feito amarrar ao mastro de um navio para contemplar, lá de cima, uma grande tempestade em pleno mar alto. Pintou essa tempestade depois. Biografias recentes salientaram contudo que essa aventura nunca aconteceu. Mas nós estamos a fazer um filme. Não podíamos evitar esse episódio.
Coleciona pintura?
Quem me dera... Vivo num apartamento. Com muitas janelas... Não sou muito rico. Não tenho um Turner em casa... Acho que me está a perguntar isso por saber que eu venho da pintura, que estudei numa escola de arte... O meu avô foi pintor. Considero-me apenas um entusiasmado cineasta de 70 anos, 100% dedicado à minha profissão.
 Durante o filme, pensou no sofrimento que Turner teve de atravessar para realizar o trabalho? “Mr. Turner” sublinha-o. È um sofrimento inerente a qualquer artista?
Se mudarmos ligeiramente a direção dessa pergunta podemos pensar nisto: não é o sofrimento necessário a tudo o que vale a pena? O trabalho exige sofrimento. As coisas não aparecem do nada. E há coisas que nos exigem muito mais do que uma rotina de trabalho das 9h às 17h; um filme, por exemplo. O sofrimento não é uma necessidade, é uma inevitabilidade.
Pensei também no momento em que o filme incide um foco sobre a crítica - que Turner, então
incompreendido, teve de enfrentar com particular acidez...
O que esse foco nos diz é que haverá sempre uma ideia preconcebida, tão elitista quanto académica, em relação à arte que, no meu filme, John Ruskin [escritor e crítico de arte britânico, 1819-1900] representa. lsto é muito claro no momento Ruskin surge a contemplar aquele célebre quadro de Turner em que os escravos africanos se estão a afogar durante um naufrágio [“Slave Ship (Slavers Throwing Overboard the Dead and Dying. Typhoon Coming On)”, de 1840]. Turner explica o dramatismo desse episódio. mas Ruskin responde-lhe friamente em termos formalistas, desprovidos de qualquer substância emocional. Era com isto, com estas atitudes, que eu estava preocupado, não com um ataque à critica... Se quer que lhe diga, estou à espera que me caiam agora em cima pelas liberdades que tomámos... Mas “Mr. Turner” não é um documentário.
Há uma momento em que Turner se pergunta - e numa altura em que, economicamente, podia permitir-se esse ‘conforto’ se deve vender ou não os seus quadros, ‘entrar no sistema’. Esta questão já se atravessou ao longo do seu percurso de cineasta?
É muito difícil comparar os casos. Não nos podemos esquecer que, no tempo do Turner, o canal de saída da arte estava na mão de meia dúzia de privados. Quase não havia galerias nacionais em Londres. Paris já tinha as suas, mas Londres não. Turner deu-se conta disso. O seu trabalho salvava-se ou morria às mãos daquela meia dúzia... Acontece que ele tinha outra ambição, e também aqui estava à frente do seu tempo: libertar os seus quadros, mostrá-los a quem os quisesse ver. Não há paralelo com aquilo que faço. Agora, se me perguntar se eu quero fazer filmes em Hollywood... A resposta é NÃO! Seria um desastre!
O facto de ter feito um filme de época condicionou de alguma maneira o seu trabalho de direção de atores - aspeto que sempre considerou ser o mais primordial no seu trabalho?
De modo algum. O trabalho é o mesmo. Pode investigar Turner durante cem anos, ler mil livros, que isso jamais o ajudará quando os atores estão em frente à câmara.
Continua a ensaiar imenso com os atores antes da rodagem?
O mais possível, não sei fazer filmes de outra maneira.
Os conflitos entre homens e mulheres, rodeados por contextos sociais específicos, sempre foram importantes no seu trabalho, desde “Bleak Moments” [1971]. Gostava de pedir-lhe um comentário sobre a relação de Turner com a governanta e o modo como essa relação evolui no filme.
Sabemos que Mrs. Booth existiu, que Turner teve uma relação muito especial e eventualmente viveu com ela, mas não sabemos muito mais. Não se provou que essa relação fosse sexual, por exemplo, mas pareceu-nos muito natural explorar isso no filme. Porquê? Turner era um homem dado a vidas duplas. Gostava do anonimato. Viajava e instalava-se com nomes falsos nos albergues. Escondia que tinha família e filhos. Refugiava-se nisso, e eu acho que era uma defesa para conseguir estar a sós com o seu trabalho. Decidimos pois dar à governanta uma maior importância. Aparentemente, ela tinha uma doença rara que lhe desfigurava a cara, ninguém sabe ao certo o que era, estávamos no século XIX...
Timothy Spall tem muitos momentos divertidos no filme. Também o escolheu pelo seu sentido de humor?
Ele é mesmo muito divertido, não é? E este filme pouco tem de comédia... Não, além do facto de trabalhar com ele há muito tempo, o Timothy está familiarizado com Turner, estudou pintura e é um Iondoner puro, conhece a cidade como ninguém e é um apaixonado pelo século XIX. Estudou Dickens profundamente. Eu sabia que ele podia carregar essa sensibilidade para a personagem. Compreender o pano de fundo daquela classe operária e cockney, muito presente em Dickens.
Já se pensou em retirar do cinema, agora que o Ken Loach disse em Cannes que o novo filme dele será o último?
Bom, ainda bem que o Ken Loach é mais velho do que eu... Eu tenho adotado esta rotina de fazer um filme a cada dois anos, se tudo correr bem cá estaremos em 2016.

Se tivesse tido mais dinheiro, “Mr. Turner” seria um filme diferente do que é?
Seria, porque teria ido filmar a Veneza. São famosas as suas viagens a Itália e os quadros que ele lá pintou. Mas tínhamos um orçamento para cumprir. E algum trabalho informático para fazer em CGI, na cena da tempestade, que ficou muito bem. Eu desconfio da tecnologia. Este é apenas o meu segundo filme em digital. Pensando agora, acho que “Mr. Turner” não precisava assim tanto de Veneza: o homem já é enigmático que baste.
Francisco Ferreira, Expresso, 27/12/14