ORNAMENTO E CRIME | 4 ABR | TMF | 21H30



ORNAMENTO E CRIME
Rodrigo Areias
Portugal, 2016, 90’, M/14

PRESENÇA DO REALIZADOR
 
FICHA TÉCNICA

Realização: Rodrigo Areias
Argumento e Diálogos: Pedro Bastos, Rodrigo Areias
Fotografia: Jorge Quintela
Montagem: Eduardo Nunes
Música: Rita Redshoes, The Legendary Tigerman
Interpretação: Vítor Correia, Djin Sganzerla, Tânia Dinis, António Durães
Origem: Portugal
Ano: 2016
Duração: 90' 



CRÍTICAS

O realizador Rodrigo Areias reinventa os filmes noir americanos dos anos 40, deslocando o seu contexto e deixando a sua marca.
Rodrigo Areias prossegue o seu caminho de desconstrução do cinema de género, concedendo-lhe traços autorais que fazem do seu cinema um caso único no panorama português. Se em Estrada de Palha revisitara o western (fazendo, em termos muito próprios, uma espécie de western cozido à portuguesa), em Ornamento e Crime, deleita-se na reinvenção do filme noir. Mas a sua linguagem é tão marcante que, de alguma forma, se inscreve para além do próprio género, transformando-o num utensílio e não num fim em si próprio.
Tal como Edgar Pêra, que não por acaso aparece no próprio filme, no papel de realizador assassinado, Areias diverte-se com a autocitação, com o cinema a conviver e a descobrir a sua própria história, as suas próprias referências, mas nos antípodas de La La Land. Diz-se nos antípodas de La La Land sobretudo porque onde uns, numa produção luxuosa, procuram cor e brilho, Areias, com meios escassos, se deixa atrair pelas trevas. É no contraste do preto e branco que constrói um universo próprio, num conceito de noir pessoal, que até lembra, por essa capacidade de criar um universo, o finlandês Aki Kaurismäki. Areias é esteticamente muito seguro, implacável, sem cedência na pautação do ritmo, na coerência dos elementos, na consistência da montagem e da fotografia, que não vacila nem por um momento para fora do contexto que ele criou. Preto no branco.
Tal como em Estrada de Palha, em Ornamento e Crime, há uma adaptação fantasiosa de um universo externo e longínquo – os film noir americanos dos anos 40 – ao cenário português, de um tempo irreal, que apenas existe enquanto citação e memória do próprio cinema. Por isso, apesar de ter um detetive duro e charmoso, uma mão-cheia de mulheres fatais e uma trama sedutora, não deixa de ser, na sua essência, um filme sobre o próprio cinema.
Em termos estéticos funciona, com grande segurança, através da construção de quadros, com câmara fixa, em que a ação nunca é dada pelo movimento de câmara, apenas pela delineação minimal das cenas. As próprias personagens obedecem a essa cadência. Sobretudo Vítor Correia, num frigidíssimo papel de detetive, que nunca pestaneja, que nunca se assusta, fiel aos seus movimentos, com uma confiança demolidora. Cresce e desenvolve-se sempre ao ritmo de uma banda sonora que, aliás, funciona quase como uma personagem (o trabalho de Legendary Tigerman e Rita Redshoes é, desse ponto de vista, notável e enquadra-se plenamente do filme, alimentando-o e acolhendo-o).
Manuel Halpern, visao.sapo.pt


Trabalhando a partir de Guimarães, Rodrigo Areias tem sido um exemplo modelar de criatividade e independência — no seu novo filme, "Ornamento & Crime", os cenários da sua cidade servem de pano de fundo a uma redescoberta da tradição do cinema "noir".
Por vezes, uma certa visão "automática" do cinema que se faz em Portugal gera descrições generalistas, pouco ou nada atentas à pluralidade interior da nossa produção. Na dupla qualidade de produtor e realizador, Rodrigo Areias é um magnífico exemplo dessa pluralidade, desenvolvendo a sua actividade através do colectivo Bando à Parte, sediado em Guimarães (em termos pessoais, recordo com todo o gosto que tive o privilégio de trabalhar com ele na programação/produção da área de cinema de Guimarães 2012 - Capital Europeia da Cultura).
Agora, Rodrigo Areias propõe um exercício de estimulante experimentalismo. Depois de "Estrada de Palha" (2012), a sua nova longa-metragem de ficção, "Ornamento & Crime", aposta na possibilidade de reinventar as matrizes do clássico género "noir" de Hollywood, fazendo-o através de lugares e rostos de Guimarães. Dir-se-ia que há, aqui, um realismo insólito, no sentido em que realidade retratada é a abstracção do próprio cinema como máquina de produção de ficção.
É, obviamente, significativo que o título escolhido para o filme seja "roubado" ao ensaio do arquitecto austríaco Adolf Loos (1870-1933), publicado em 1913. Trata-se, afinal, de procurar estabelecer uma cumplicidade formal com uma arquitectura em que o rigor das linhas e o equilíbrio das composições dispensa o gratuito dos ornamentos. Dito de outro modo: este é um filme elaborado também a partir da memória do arquitecto português Fernando Távora (1923-2005), personalidade essencial na conservação e consolidação do património urbano de Guimarães.
Num contexto em que, mais do que nunca, importa defender — e, mais do que isso, preservar — a diversidade da produção cinematográfica portuguesa, "Ornamento & Crime" exemplifica uma atitude criativa descentralizada, independente e experimental. As suas singularidades merecem ser conhecidas e pensadas — a cinefilia começa, afinal, na disponibilidade do olhar e do pensamento.
João Lopes, rtp.pt/cinemax


 

O DIVÃ DE ESTALINE | 28 MARÇO | IPDJ | 21H30



O DIVÃ DE ESTALINE 
Fanny Ardant
França/Portugal, 2016, 92´, M/12

FICHA TÉCNICA
Realização e Argumento: Fanny Ardant
a partir do romance “Le Divan de Staline” de Jean-Daniel Baltassat
Montagem: Julie Dupré
Imagem: Renaud Personnaz, Renato Berta
Som: Pierre Tucat, Yves Servagent, Roman Dymny
Interpretação: Gérard Depardieu, Emmanuelle Seigner, Paul Hamy, François Chattot, Luna Picoli-Truffaut, Tudor Istodor, Alexis Manenti
Com a participação de Joana de Verona, Lídia Franco e Miguel Monteiro
Origem: França/Portugal
Ano:2016
Duração: 92’




CRÍTICA

Num determinado momento de O Divã de Estaline, uma fotografia do verdadeiro líder soviético é gradualmente sobreposta por uma imagem da personagem homónima encarnada por Gérard Depardieu. Não existem muitas semelhanças entre os dois (o real e o da ficção), mas somente a vontade de recriar e trabalhar a História, tirá-lo do seu estatuto imaculável e intocável, e fazer o Cinema exercer-se como um poço de criatividade em vias de exploração.
O homónimo livro de Jean-Daniel Baltassat (uma perspectiva freudiana a uma das figuras incontornáveis da nossa História) é transportada para o grande ecrã pelas mãos de FannyArdant, a emblemática atriz que teima em deixar a sua marca como realizadora. A sua terceira longa-metragem vem inicialmente evitar os "becos sem saída" e o pedantismo "farsolas" de Cadências Obstinadas. Onde antes havia vazio emocional, agora há um outro sob o desejo de ser preenchido, como uma tela aguardando pelas suas cores. É nesse aspeto que o filme vem ganhando a sua devida forma. Assume-se então uma representação de um pedaço de História vencida, onde o teor psicológico aventura-se acima da veracidade dos factos.
Há um regresso à ritualidade de Cinzas e Sangue, aquele fascínio pela plasticidade do organismo fílmico e a aspiração pela arma mais potente do teatro: a sua recorrente imaginação, aquele "faz-de-conta" na recriação. Talvez seja por isso que Depardieu funciona simbioticamente como uma alternativa estalineana, mais do que as vestes camaleónicas que um qualquer biopic de Hollywood tentaria culminar.
Neste universo, o ator é o perfeito Estaline, numa versão que anseia respirar a breve emancipação. Um homem frio, calculista, inteiramente regido às ideologias criadas por ele próprio e estabelecidas no seu regime, um reinado com tamanho medo. O líder soviético espera aqui o seu momento de fragilidade, a desmistificação dos métodos de Sigmund Freud - a psicanálise - que o próprio considera charlatanices igualmente competentes que "roubam segredos a burgueses ricos" do outro lado da Europa. As sessões improvisadas, ensinadas no momento, servem de catarse para a desconstrução dessa mesma personalidade.
Em contracampo, surge Emmanuelle Seigner como Lídia, a referida improvisada "psicanalista", a mulher "privilegiada" no seio afetuoso de Estaline, encarada como uma "ponte quebradiça" entre a emocionalidade resgatada do seu líder. As duas figuras constituem dois vértices de um triangulo formado por ódio / amor / medo, completado pelo pintor Danilov (Paul Hamy), um artista reprimido por uma expirada inspiração. Mas este triângulo é isósceles, dois lados servem como "sessões" de teor psicanalista a uma só figura, e a esta altura o leitor já se apercebeu qual sai beneficiada neste registo.
Mesmo que a psicologia não esteja no ponto(uma ciência não exata neste filme) é indiscutível o passo em frente que Fanny Ardant dá na sua carreira de direcção. O Divã de Estaline, é até à data, a sua obra mais completa, concisa e sobretudo, cinematográfica. Acreditando que o Cinema é uma arte de criação desprovida de rédeas, eis a minha saudação a Madame Ardant!
Hugo Gomes,.c7nema.net

 

 

ENTREVISTA À REALIZADORA

O que é que a fez querer adaptar para o cinema "Le Divan de Staline" (Seuil, 2013), o romance de Jean-Daniel Baltassat?
Fanny Ardant: Havia em "Le Divan de Staline" uma concordância entre a minha paixão pela Rússia, o meu interesse pela época trágica da União Soviética e a resistência subterrânea que ela provocou. Por outro lado, havia o amor que tenho pelo Gérard Depardieu. Tinha encontrado um papel à sua medida. Na história que eu queria contar, o Gérard traria a sua ambiguidade, o seu conhecimento do ser humano, a sua jovialidade e sedução, a sua inteligência brilhante e também, apesar de tudo, a sua vulnerabilidade.
De onde vem o seu interesse pela Rússia?
A partir dos 15 anos, comecei a ficar fascinada pela Rússia, pela sua história, música, literatura e poesia. Comecei por ler os grandes clássicos, depois os dissidentes e os poetas. E tudo me tocou de uma forma extraordinária. De início, os heróis como o príncipe Myshkin, os irmãos Karamazov, Stavroguine, Natacha, Anna Karénina, Oblomov, etc... e depois conheci os poetas, Pushkin, Essénine, Ossip Mandelstam, Vladimir Maiakovski, Anna Akhmatova, Marina Tsvetaieva... O seu espírito de resistência fascinou-me. As suas vidas eram poemas por si só. Só na Rússia é que os poetas são assassinados porque causam medo ao poder. Durante a minha juventude, os meus estudos, reuniões, tristezas e alegrias, ilusões e fracassos, eles ajudaram-me a viver.
Em que medida?
Graças a eles, aprendi que o mundo interior é mais importante que o mundo exterior, aprendi como resistir quando se perde tudo, excepto a alma, viver clandestinamente em mundos onde o poder, a fama, o dinheiro e a subjugação não têm poder sobre si.
Durante os anos trágicos da ditadura, muitos dissidentes salvaram-se apesar de terem sido presos ou das perseguições, ao recitarem poemas que sabiam de cor. Resistiram à escuridão à sua maneira.
No início, eu queria chamar ao filme "Atrás de mim uma gaiola vazia" em homenagem aos versos de Osip Mandelstam "... À minha frente vultos de névoa espessa e atrás de mim uma gaiola vazia". Versos que coloquei no final do filme.
No romance de Jean-Daniel Baltassat, Estaline, três anos antes de sua morte, em 1950, instala-se em Borjomi, Geórgia, no antigo palácio do Duque Mikhaïlovitch. Por que é que não datou o filme e precisa o local onde se passa a acção?
Eu queria contar uma fábula sobre a relação entre poder e arte, aquilo que o poder faz nascer nos que o exercem e nos que o sofrem. Eu queria fugir do documentário, a verdade interessa-me mais do que a realidade. Durante as repérages, procurei uma mansão aristocrática. Toda a nova autoridade se instala nos símbolos do poder da autoridade que é deposta. A República toma para si os castelos dos reis e da aristocracia. Os bolcheviques requisitam os símbolos do poder e da riqueza.
Cheguei ao Palácio Hotel do Buçaco e soube imediatamente que este seria o cenário perfeito. Uma vez que queria contar um conto, este castelo do "Barba Azul", as muralhas e torres de lendas de cavalaria, com gárgulas como nas catedrais, era exactamente um lugar fora de qualquer contexto. Eu queria contar a história numa unidade de tempo, de lugar e acção. As portas do palácio abrem-se no início, como "era uma vez" e fecham-se novamente no fim da história. Entre o conto e a fábula.
Conseguiu recriar dentro do palácio um ambiente pesado, carregado de mentiras, medo, submissão, humilhação, manipulação, próprio ao universo bolchevique.

Sempre quis opor o indivíduo ao grupo, ao partido, à sociedade, ao pensamento comum.
A sociedade é aqui representada pelos guardas armados, pela polícia secreta, as empregadas domésticas, os cozinheiros. Movem-se sempre todos em conjunto como uma massa, como uma entidade única, uma forma de simbolizar a liberdade face à arregimentação, a identidade face ao grupo.
Como é que Gérard Depardieu reagiu à ideia de interpretar Estaline?
O Gérard é curioso em relação a tudo. Ele explora caminhos que não conheceu. Ele confiou em mim, porque a vida é uma aventura. Interpretou Estaline como poderia interpretar uma personagem de Shakespeare, com a ambiguidade e a complexidade das personagens enigmáticas, monstruosas mas humanas, muito humanas.
Fisicamente, Depardieu, não se parece realmente com Estaline.
Eu não queria fazer um documentário. Não era primordial que Gérard se parecesse excatamente com Estaline. O importante era conseguir o arquétipo, a imagem de Estaline que existe na memória colectiva.
Para voltar sempre à fábula, ao conto, tanto é Estaline e ao mesmo tempo não é o Estaline dos livros de História e dos documentários.
Eu disse ao Gérard: Estaline fala com uma doce voz de barítono e tem sempre um meio-sorriso como os felinos.
Como é que dirigiu Gérard Depardieu?
Gérard é um actor genial. Possui uma natureza complexa, rica e inesperada. Ele entra na pele de uma personagem com aquilo que sabe e com o que não sabe.
Há muitas verdades. Quando contamos uma história fazemos entrar os actores num mundo que é seu, com as suas obsessões, a sua visão sobre as coisas e os seres, que começa com eles e acaba com eles. Eles jogam o jogo que lhes é proposto. Eu gosto da ideia de batalhar por um silêncio, um sorriso, um movimento dos olhos ou da mão, os detalhes são tudo, porque tudo já foi dito.
"O Divã de Estaline" é o primeiro mergulho na intimidade quimérica do carrasco. À noite, no seu palácio, Estaline alonga-se no divã - estranhamente idêntico ao de Freud em Londres - e conta os seus sonhos à sua amante, Lidia Semoniova Vodieva, interpretada por Emmanuelle Seigner.
Estaline pediu à sua amante que lhe trouxesse "A Interpretação dos Sonhos", de Freud. Estaline vem muitas vezes a este palácio e percebe que o divã em que ele dorme no seu pequeno escritório é muito semelhante ao de Freud em Londres. Estaline mostra uma imagem de um jornal Inglês a Lidia e mostra-lhe o sofá, acrescentando que "este é o lugar onde os burgueses perversos se deitam para debitar os seus disparates neuróticos". Estaline será o paciente e Lidia irá decifrar os seus pensamentos. Desde o início, ele diz tudo, quer saber como funciona, como age Freud para que eles confessem, para extorquir os segredos destes burgueses.
Em Estaline, há uma mistura entre curiosidade científica e o gosto pelo jogo do gato e do rato, o prazer de lidar com materiais perigosos que podem explodir a qualquer momento, na cabeça dos que o ouvem. Ouvir os segredos de Estaline é condenar-se. E Lidia sabia-o.

Que análise retira dos seus sonhos?
No seu primeiro sonho, Estaline conta a Lidia uma memória de infância, a idade da inocência. Mesmo Estaline foi uma criança. Quando Lidia lhe pergunta se a perda da inocência é inevitável, Estaline recusa responder, é a pergunta que todos nós nos colocamos, até mesmo os monstros. É a perda inconsolável.
E no segundo sonho?
Ele sonhou com sua esposa, Nadejda Sergueïevna Allilouïeva, que realmente amava. Ela suicidou-se, mas a versão oficial foi que morrera de apendicite. Lidia sabe bem que é uma mentira.
"Este é o arquétipo da mulher que te assusta, uma mulher suficientemente livre para decidir quando quer morrer", diz Lidia a Estaline, para quem o suicídio é uma traição. Não ter medo da morte é a liberdade suprema sobre a qual nenhum carrasco pode ter força. E Lidia atira a Estaline a verdade sobre a sua esposa, e também sobre ela, que entende que o seu tempo é limitado.
Através de Lidia, faz um belo retrato de uma mulher, interpretado com sensibilidade e delicadeza por Emmanuelle Seigner.
Eu sempre gostei da Emmanuelle. Ela é clara e misteriosa, enérgica e sensual. Ela pode sorrir como uma vamp e de repente voltar a tornar-se uma criança. Isso faz-me pensar na terra.
Deu à personagem de Lidia mais importância do que ela tinha no romance. Porquê?
A personagem de Lidia permitiu-me fazer viver uma mulher que acreditava na utopia da Revolução Bolchevique, que estava submissa de corpo e alma ao poder de Estaline, que perde gradualmente as suas ilusões, vê a realidade do terror vermelho, tentando manter-se à tona, compreende que perdeu a sua alma, escolhe dizer não e decide acabar com aquilo.
Se Estaline pede a Lidia que lhe traga o livro de Freud é porque ele sabe que ela é muito inteligente. E mesmo que se trate de psicanálise barata, é um adversário de peso. Ela é capaz de discorrer e entender que desvendar os sonhos e os segredos de Estaline é uma condenação à morte.
Precisamente, em paralelo, transparece o destino de Danilov (Paul Hamy), prestes a vender a sua alma ao diabo.
Danilov chega a um mundo no qual não conhece os códigos. E ele acredita ser o mais forte. Ele representa o cidadão comum, ingénuo, quer ter sucesso, é ambicioso, disposto a um compromisso, não completamente desonesto, mas também não é um herói... E é colocado numa situação extrema: fazer o retrato de Estaline. Esta é uma oportunidade inesperada para se tornar famoso. Danilov representa a posição do artista face ao poder. Se começarmos a fazer compromissos, renegar-nos a nós próprios, não estamos a perder a alma e a nossa arte? É Lidia que coloca a questão: "E tu, o que fizeste para perder a alma? ". É a eterna questão. Todos nós podemos colocá-la em cada fase da vida.
Que olhar tem sobre o passado de Danilov?

Com a morte dos seus pais, Danilov foi adoptado, em criança, por Moukhina, uma grande escultora da era soviética, que existiu realmente. Ela é a autora da famosa escultura " O Operário e a Camponesa". Ela descobriu em Danilov um dom para o desenho e acredita que ele poderia tornar-se o orgulho da arte da União Soviética. Para ela, ele pode ser um exemplo da reeducação que permite a nova sociedade comunista. O regime tornou-o um bom soviético.
Ao longo de todo “O Divã de Estaline”, existe este jogo cruel e perverso em torno da mentira salvadora e da verdade que destrói.
Estaline revela cinicamente a Danilov o terrível fim dos seus pais nos campos do regime. Estaline diverte-se com este dilema perverso. Será que a verdade fará nascer um novo homem, disposto a morrer para defender os seus pais ou um cínico ambicioso disposto a todas as cedências para ser bem-sucedido? Estaline sempre se intitulou o "engenheiro das almas". O pouco tempo que passa com Danilov permite-lhe perceber o seu oportunismo e o seu desejo de se submeter. A verdade poderia ter construído a dignidade de Danilov, mas levá-lo-ia à prisão e à morte. O cinismo de Estaline (ou de qualquer poder arbitrário) é colocar o indivíduo face à sua própria cobardia e dignidade.
Mas ainda voltando à relação entre Estaline e Ossip Mandelstam é a posição irredutível do poeta que torna o ditador impotente. Mandelstam irá morrer, é claro, mas permanecerá eterno por ter dito não. Danilov faz um pacto com o diabo, com Estaline. Ele é manipulado e todo o pacto com o diabo, com o poder, mais cedo ou mais tarde acaba mal.
No filme, não hesita em usar a metáfora, especialmente em torno da obra em aço de Danilov e dos efeitos de espelho.
Muito jovem, eu era assombrada pela noção de reflexo, como uma mise en âbime. Em que é que nos reflectimos? Ao que é que, de repente, pertence o meu reflexo num quadro, numa imagem, numa vitrina ou num espelho? Numa das últimas cenas do filme, Estaline visita a oficina de Danilov, descobre o seu reflexo na criação do artista, e volta-se de forma violenta, como se tivesse visto passar um fantasma, os seus fantasmas, a sua acção, os seus assassinatos? Mesmo Estaline tem medo... E o medo, como ele sublinha "é o maior inimigo do homem" …
Há também uma frase que surge como tema recorrente em momentos-chave do filme: «Olharmo-nos é persistir em ver o invisível da alma que é necessária fazer renascer para compreender a verdade».
Li esta frase num romance de Chrétien de Troyes. Manipulei-a um pouco. Quando nos olhamos, paramos e vemos para além da aparência física, vemos o outro que nos habita e nasceu de nós e das nossas ações.
A sessão de cinema é um episódio muito evocativo da personalidade de Estaline.
Estaline amava os westerns americanos, os homens solitários que cavalgavam durante horas nas planícies infinitas.
Identificava-se, sem dúvida, com o homem só face a um destino a cumprir.
Entre os filmes que vão ver, o capitão Dovitkine (Tudor Istodor), o projeccionista, sugere um filme alemão, "O Anjo Azul" de Sternberg, filme de guerra após a derrota da Alemanha. É uma escolha artística. Estaline gosta deste capitão do Exército Vermelho. Ele deixa-se levar e começa a ver a o filme. Mas rapidamente, Estaline identifica-se com o professor ridicularizado pela sua amante (Marlene Dietrich) e o seu pretendente. Estaline não pode suportar esta imagem que remete para o seu próprio ciúme contra a cumplicidade entre Lidia e Danilov. Fica furioso com a possibilidade de que possam rir-se dele nas suas costas, e pune todos os que acham divertido ridicularizá-lo ou contrariá-lo.
Para além do formidável General Vlassik (François Chattot), de Poskrebyshev (Xavier Maly), do secretário particular de Estaline, a personagem de Varvara (Luna Picoli-Truffaut), a empregada, é particularmente interessante.

Ela é na verdade uma agente secreta do MGB. A tenente Machkova revela a sua identidade quando vem prender Lidia.
Varvara entrou na vida privada de Lidia fazendo passar-se por empregada doméstica. Elas tiveram tempo para conversar, para contar confidências, mesmo para falar de canções de amor. "Nos teus grandes olhos negros, eu perdi-me, aguardo o teu olhar com o coração suspenso", canta Lidia no momento da prisão depois de declarar: "É a última esperança que me abandona, a de sobreviver." Através da personagem de Varvara- Machkova eu queria mostrar que nesta sociedade, neste século “cão e lobo”, todo a gente joga um jogo duplo, são vítimas e carrascos, escondem-se e mentem. Varvara não é cruel por gosto, é parte de um sistema. É ao mesmo tempo dura e vulnerável. Ao ler a Estaline "O Conto do Czar Saltan", de Pouchkine como Lidia costumava fazer, ela sente que estando na linha de frente, vai estar em perigo.
Estaline era um carrasco que também gosta de jardinagem enquanto pensa no poder, maneja a tesoura como se estivesse a cortar cabeças!
Estaline traça um paralelo entre a natureza e as grandes purgas, e salienta que "a natureza é feita de tal forma que tudo acaba por se estragar. As doenças atacam mesmo aquele que foi purgado e recuperou completamente. O mundo é apenas uma ferida em remissão permanente."
A música ocupa um lugar importante em “O Divã de Estaline”. Porque escolheu a música de câmara de Chostakovitch ou a ária de Lady Macbeth " Vieni ! T’affretta "?
Chostakovitch representa para mim o artista que lutou e sobreviveu apesar do terror, sem abandonar nada do seu génio para agradar. Diz-se que ele estava sempre à espera de ser preso e que a mala estava pronta debaixo da cama. O Quarteto para cordas em Dó Menor desenrola-se ao longo da história, como uma ameaça e um consolo.
Estaline ouve a ária de Lady Macbeth que resume os poderes do mal pela ambição do seu marido: tornar-se rei. Callas tem na voz a loucura dos sonhos e o terror das visões.
Você que adora tanto os símbolos e os signos, coloca nas mãos de Lidia a capa de um disco da pianista Maria Yudina. Quem era ela realmente?
Oponente do regime soviético, convertida à fé Ortodoxa, ela era admirada por Estaline! Maria Yudina é uma mulher extraordinária. Diz-se que uma noite, Estaline ouviu o concerto Nº23 de Mozart, interpretado por Maria Yudina. Ele gostou tanto da interpretação que pediu para ter um disco. O disco não existia. Houve uma noite em que a pianista e todos os músicos da orquestra foram acordados para gravar este trabalho. E às três da manhã, o disco foi levado a Estaline. Para honrar o seu talento, Estaline ofereceu-lhe dinheiro. Ela respondeu que agradecia, mas que iria dar o dinheiro todo aos pobres, até ao último rublo e que iria “rezar por todos os pecados cometidos contra o povo russo”. Estaline não a importunou. Ela nunca foi para o gulag. Mais tarde, na época de Khrushchev, ela é posta de lado mas cada vez que toca em público, os concertos estão cheios. Quando o público reclama um encore, em vez de tocar o piano, ela levanta-se, e recita poema de poetas dissidentes. O público não percebe nada do que ela diz, porque já não tem dentes, mas cada um entende o que quer.
O retrato de Maria Yudina funciona como leitmotiv no escritório de Estaline. Como o fio condutor desta história entre o poder que corrompe e a luta para permanecer intacto.
Entrevista realizada por Emmanuelle Frois, http://ledivandestaline-lefilm.com/pt/entrevista.html