3 de Agosto, ao Ar Livre, é tempo para uma obra-prima: SHUTTER ISLAND. Scorcese voltou!

Fábrica da Cerveja, 22h, sócios 1€, não-sócios 3,5€ (ou Passe para os 10 dias por 20€).


Não vou usar meias-palavras: Shutter Island é uma Obra-Prima. É-o do primeiro ao último frame; da primeira à última linha de diálogo; do primeiro ao último som; do primeiro ao último momento. É um filme que se ama verdadeiramente do início ao fim, que envolve, assusta, impressiona e comove, entre vários outros sentimentos. É um filme que só um dos maiores realizadores do cinema contemporâneo poderia fazer, um filme onde tudo é perfeito desde a fotografia às interpretações e à banda-sonora. Desde o Shining do Kubrick ou o Vertigo do Hitchcock que não se via algo assim; e isso é por si só um elogio do tamanho do mundo.

Nada tenho a dizer de mal a respeito de Shutter Island. Entrei curioso e expectante (é um filme do Scorsese…), saí arrebatado. Por inúmeras vezes ao longo do filme senti estar na presença de uma obra espantosamente bem filmada; em várias cenas achei estar na presença da mais pura perfeição fílmica. Não há outra forma de o dizer: Shutter Island funciona espantosamente bem porque é espantosamente bom em todos, mas rigorosamente todos, os aspectos. É uma experiência sensatorial, emocional e racional; perturba, agarra e impressiona verdadeiramente o espectador com o seu ambiente e com seu notável estudo da natureza humana, da sua loucura e violência, este último um aspecto tão presente no cinema de Scorsese. E além de tudo isto, consegue verdadeiramente comover.



A história é a de Teddy (Leonardo DiCaprio), um agente destacado com o seu parceiro (Mark Rufalo) para o estranho desaparecimento de uma doente do hospital psiquiátrico Ashecliffe, em Shutter Island (ou a ilha Shutter, como preferirem). Sem saberem naquilo em que se estão a meter, os dois agentes tentam ao máximo desvendar um mistério onde, efectivamente, nada é o que parece.

A premissa soa simples e não muito original, mas o argumento em si é notável, e as reviravoltas que a história vai dando agarram facilmente o espectador do início ao fim. As personagens e o filme em si têm características de um filme noir (particularmente na perturbada e complexa personagem principal), e o suspense e o ambiente criado relembram alguns dos maiores thrillers de terror do cinema (Shining, já mencionado, é uma referência óbvia). O filme mete medo e perturba profundamente, mas não por ter sustos nem nada que se assemelhe; fá-lo pela própria trama, pelo mistério, pela forma como Scorsese cria e filma todo o ambiente do filme.



Efectivamente, o filme visualmente é fenomenal. Scorsese filma como ninguém, atento aos pormenores, sabendo onde e como colocar a câmara, e aqui isso vê-se em cada plano. Além disso, a sua imaginação é notável: algumas sequências mais “irreais” (irei discutir a história o menos possível) revelam um primor visual e ideias que só um verdadeiro e absoluto génio teria. Shutter Island é um thriller, mas não assusta apenas: perturba, envolve, aterroriza, cria uma tensão envolta num manto de puro medo. É, nesse aspecto, um filme que não vive de forma alguma à base das típicas fórmulas que se vê hoje em dia nos filmes do género. Shutter Island não é só magistral: é único.

A verdade é que, como já aqui disse, o filme é rigorosamente exemplar em todos os aspectos. As interpretações, por exemplo, são todas elas fenomenais. Nunca fui dos maiores fãs de DiCaprio, e este só me convenceu verdadeiramente em The Departed. Aqui, o actor mostra bem o seu crescimento, interpretando na perfeição uma personagem que é, no mínimo, complexa. É, facilmente, o seu melhor papel até agora. Mas o elenco de secundários não fica nada atrás: todos estão espectaculares, desde Ben Kingsley, sempre com uma presença notável, que aqui tanto encanta quanto arrepia, a Michelle Williams, notável, mesmo sendo das que menos aparece. Scorsese é um mestre a escolher actores e a arrancar deles o melhor que estes podem dar, e volta a mostrá-lo aqui. Destaque também para Mark Ruffalo: um actor subvalorizado que mostra aqui mais uma vez um talento que deve ser mantido debaixo de olho, e, claro, Emily Mortimer, que tem uma das mais belas e poderosas cenas de todo o filme.



A própria banda-sonora é perfeita e escolhida ao pormenor. Em vez dos típicos clássicos do rock’n'roll a que nos habituou, Scorsese usa aqui músicas de vários compositores de música clássica contemporânea (alguns deles também favoritos de Kubrick) para criar um ambiente fenomenal. Mais uma vez, o realizador mostra um conhecimento e uma mestria notável no uso do som nos seus filmes e na importância da banda-sonora para dar ao filme o tom correcto. Em Shutter Island, tudo é negro e envolvente, e dá-se uma fusão perfeita entre o sonoro e o visual.
Martin Scorsese é um mestre, e eis mais uma prova disso. Temos aqui uma Obra-Prima ao nível de um Goodfellas ou de um Raging Bull (num género completamente distinto, claro). Toda a perícia do realizador é aqui mostrada ao máximo, na criação de um filme virtualmente monumental em todos os seus aspectos. São raros os filmes com momentos em que nos sentimos verdadeiramente perante algo de arrebatador, algo que roça a perfeição. Dei por mim por várias vezes neste filme arrebatado dessa forma, absorvido pelos planos deste mestre, pelo que aqui foi criado. É um filme que certamente não agradará a todos – lá por fora dividiu opiniões… – , mas estamos aqui perante um verdadeiro clássico contemporâneo. Com elementos do noir, do thriller, do terror (psicológico), Scorsese criou um filme nada abaixo do incrível. Poderei estar (ou não) sozinho no meu respeito e verdadeiro amor por este verdadeiro noir contemporâneo, que mostra novamente o porquê de Scorsese ser por muitos considerado um cineasta tão talentoso como Kubrick ou Hitchcock.



Shutter Island certamente não agradará a todos (a trama em si não agradará muita gente, principalmente com aquele final…), mas estamos aqui perante o que é, na minha opinião, uma verdadeira Obra-Prima do cinema contemporâneo. Porque, para todos os efeitos, desde Shining que não se via algo assim: um medo tão envolvente, tão visual e sonoro, tão perfeito, num filme que transpira genialidade do início ao fim. Um filme que tanto nos faz tremer como comover; um filme complexo, completo e monumental.

O ano ainda mal começou, mas quase me atrevo a dizer que o melhor já chegou às salas. Shutter Island é, simplesmente, algo que tem de ser visto e, acima de tudo, sentido.
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Gonçalo Trindade, espalha-factos.com


Após quatro colaborações podemos dizer que Leonardo DiCaprio e Martin Scorsese são uma dupla de sucesso. Ninguém consegue salientar as potencialidades de DiCaprio como Scorsese, e o actor retribui com uma entrega extrema a cada papel. “Shutter Island” não é excepção.

“Shutter Island” chegou tarde para a corrida aos prémios referentes a 2009, por isso não seria de estranhar que a sua estreia fosse atrasada para o último trimestre, para piscar o olho aos prémios geralmente mais atribuídos aos filmes que estreiam nessa época. Mas apetece-me aplaudir de pé a atitude do realizador, tantas vezes ignorado, de estrear o filme no início do ano. Mas não deixem que a data de estreia vos engane, “Shutter Island” é certamente um dos melhores filmes que vão passar pelas salas de cinema em 2010.

Estamos em 1954, o desaparecimento de uma paciente de uma instituição mental em Shutter Island motiva a visita de dois U.S. Marshals que investigam. A partir deste momento, e desde o primeiro frame ,em que um ferry rompe uma cortina de nevoeiro, sabemos que vamos entrar num mundo diferente. Assolada por uma terrível tempestade a ilha fica isolada, os doentes fogem das suas celas e os dois Marshals são apanhados no meio do caos.



O receio de ver Martin Scorsese afastar-se tão linearmente do que costuma fazer é esbatido nos primeiros minutos. A cinematografia é esteticamente perfeita, a ambiência das imagens e a paleta de cores é soberba. O filme é sufocante, constrangedor, mas todo o ambiente insano, paranóico e sombrio de “Shutter Island” nos aproxima de Teddy Daniels (Di Caprio), um polícia traumatizado com o passado.

A escolha do casting é certeira com Mark Ruffalo, Ben Kingsley e Max Von Sydon a secundarizarem de forma brilhante mais um desempenho - digno de uma alta nota - de DiCaprio. E o melhor é dizer pouco mais, pois qualquer pequeno “spoiler” pode privar o espectador da experiência de ver “Shutter Island”, embora a vontade de o rever seja automática.

O detalhe de todos os pormenores do filme é brilhante, todos os pequenos trejeitos do filme têm um significado. E acredito que até a semelhança entre Elias Kosteas, que interpreta Laeddis, e Robert de Niro não tenha sido uma mera casualidade.



Martin Scorsese mostra aqui o que de melhor sabe fazer, cinema. Revisitando os elementos dos “filmes noir” e demonstrando uma forma incrível, Scorsese brinca com a câmara, joga com sombra e luz com a mestria que só um verdadeiro cineasta consegue. Manipula o espectador com a história que conta e, como um personagem nos relembra, também nós somos ratos, num labirinto.
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Carla Calheiros, c7nema.net


COM DECLARAÇÕES DE SCORCESE E DI CAPRIO

Dennis Lehane escreveu uma novela sobre a loucura. A adaptação seguiu o mesmo rumo. “Thriler” psicológico? Sim, mas não só: “Shuther island” escava mais fundo. É uma assinatura Scorsese. E Exigiu a DiCaprio o papel mais difícil da sua carreira.

Leonardo DiCaprio, actor prodigioso desde criança, sabia que, desta vez, a 'coisa' ia mesmo comê-lo vivo. "Ainda hoje não sei o que dizer do filme. Há coisas que não podem ser reveladas. Como se trata de uma espécie de jogo assinado pelo Martin Scorsese, as peças acabam por encaixar todas umas nas outras... Não posso falar da história", declara DiCaprio. A quarta aventura criativa do actor com Scorsese, "Shutter Island", é um animal híbrido. Uma peça quase surrealista que deixa imensas perguntas por responder. As dúvidas pediram trabalho de tal modo exigente ao actor que, subitamente, ele viu-se mergulhado num caso severo de nervosismo. A história é pulpy. No grande palco da acção, há um hospital de loucos psicopatas. No ecrã, surgirão escarpas, uma tempestade e uma investigação policial inexplicável. E no meio destes tons tão escuros estão as palavras de mais uma tragédia escrita por Dennis Lehane sobre a loucura - a investigação daquilo que não estamos dispostos a encontrar. "Trata-se de uma montanha-russa emotiva. Não acho que seja possível uma pessoa sair do cinema a saber, desde logo, como se sente. Embora, claro, o filme esteja a ser promovido como um thriller psicológico. Mas não tenho dúvidas que, todos os dias, aquilo que o Martin quis fazer foi espreitar para o fundo da alma humana. Quem somos nós como pessoas?", questiona o actor. "Shutter Island" tem estilo dos anos 50 (a acção decorre nessa década), espaços claustrofóbicos, mistérios psicológicos, câmara criativa e uma força dramática que faria inveja ao próprio Hitchcock. É um filme tão específico que, mesmo para um actor fluente em idioma Scorsese, o trabalho apresentou-se, logo à partida, um osso duro de roer. E dali à caricatura era um passo.

Felizmente, nada disso foi difícil de concretizar, sobretudo se pensarmos no grande desafio que se deparou a DiCaprio: a sua personagem, Teddy Daniels, o tal polícia da que investiga na ilha do título o desaparecimento de uma doente mental perigosa, é um homem traumatizado e parece disposto a fazer justiça pelas próprias mãos. Será que o caso da louca perdida se está a apoderar dele de forma, digamos; patológica?



Já se sabe para onde vai DiCaprio quando a personagem lhe é oferecida com um passado tão pesado: direito ao assunto. "Fiquei chocado com a profundidade e o secretismo emocional que tivemos de explorar", referiu o actor quando nos encontrámos em Nova Iorque. "Ao fim de cada dia de trabalho, costumo ter tempo de ir para casa descansar ou fazer outras coisas. Ou passar o serão a rever a agenda do dia que se segue, repetir as linhas do diálogo para saber se está tudo pronto e por aí fora... Neste filme, tudo foi diferente. Passei semanas sem sair do buraco."

Do outro lado da câmara, o 'maestro' foi-lhe dizendo o que queria dele. Scorsese sempre gostou de meditações viscerais, sejam elas sobre a natureza da violência urbana ou de um clã de homens aparentemente fraternais - quando eles não estão a disparar uns contra os outros... Com "Shutter Island", o realizador garante que manteve o olho nos clássicos, como "A Semente do Diabo", por exemplo. Diz Scorsese: "Toda a gente conhece o final desse filme. Mas não é isso que me interessa. O que gosto de revisitar é a natureza das relações hum¬nas. Não sei se 'A Semente do Diabo' é um filme sobre pessoas. Mas é um grande filme sobre a natureza humana. Fala de diversos níveis de desconfiança, de elos que vão sendo quebrados entre as personagens, de diferentes graus de traição entre elas e, claro, da possibilidade de tudo aquilo ser um sonho; a fantasia de uma mulher que está quase a dar à luz". Sonho. Trauma. Entre ambos está a condição humana. A origem das palavras é a mesma, como diz uma personagem neste filme que Scorsese e DiCaprio parecem ter feito em meses de alucinação.



Quando leu o argumento, DiCaprio não fazia ideia que o filme se tinha transformado, na cabeça de Scorsese, numa espécie de labirinto a decifrar. "À medida que íamos descobrindo as diversas camadas da história, tornava-se imperativo que fôssemos cada vez mais longe, no sentido de forçar o espectador a identificar-se com o trauma." DiCaprio confirma assim por que m¬tivo é um dos discípulos mais obedientes da grande escola de actores que, de Robert De Niro a Daniel Day-Lewis, Scorsese tem trazido para o seu ecrã favorito: aquele que não olha para o lado quando chegam as partes mais difíceis. "Nunca, como actor, tinha ido tão longe segundo o ponto de vista emocional", confessa DiCaprio.

Para mostrar a verdade tal como ela é vista por Teddy Daniels foi preciso regressar a Dachau, ao extermínio, aos traumas de guerra. Quando um ser humano testemunha o pior, quais são os mecanismos de defesa e de reordenamento mental a que ele tem de deitar a mão se quiser sobreviver como ser humano? "Foi esta a nossa matéria-prima desde o início das filmagens", acrescenta DiCaprio. "Toda a gente fala na prevalência do estilo nos filmes do Scorsese. A componente visual é uma das linguagens dominantes de um autor como ele. Mas o seu foco é sempre colocado apenas num sítio: na emoção das personagens. Para o Martin, só interessa a grande humanidade da história."



Scorsese confirma que o tema da identidade existencial não é novo, é eterno: "São questões clássicas: Quem somos nós? O que é que temos de aceitar? O que somos forçados a esconder? A natureza humana quer dizer o quê, exactamente? Estas questões já foram colocadas tanto no filme 'O Gabinete do Dr. Caligari' como nas obras de Homero." O que estava em causa não era contar uma história, antes tomar o seu tema relevante nos dias de hoje.

"Shutter Island" foi afastado da corrida aos Óscares (por motivos de calendário alegados pela Paramount), mas o facto não afectou Scorsese, que se revelou satisfeito por ter tido mais tempo para editar a versão final. A primeira montagem tinha três horas. E o adiamento da estreia também não beliscou a confiança de DiCaprio: "Mesmo aqueles que forem ao cinema a pensar que isto é apenas um filme que prega sustos baratos se darão conta que, no fim, a história, acima de tudo, é uma história humana. Algo que o Scorsese de 'Taxi Driver' e de 'Touro Enraivecido' faz melhor que ninguém. Em todos os seus filmes, a condição humana tem um lado obscuro. Scorsese gosta de expor isso. Não está ali para dar conforto aos espectadores."
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Rui Henriques Coimbra, Expresso


Título Original: Shutter Island
Realização: Martin Scorsese
Argumento: Laeta Kalogridis, Dennis Lehane (romance)
Direcção de Fotografia: Robert Richardson
Montagem: Thelma Schoonmaker
Interpretação: Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley, Emily Mortimer,
Michelle Williams, Max von Sydow, Patricia Clarkson, Jackie Earle Haley
Origem: EUA
Ano de Estreia: 2010
Duração: 148’




EM COMPLEMENTO

3X3, Nuno Rocha, Portugal, 2009, 6’

É de noite. Um vigilante de um complexo desportivo passa o tempo a atirar bolas ao cesto de basquetebol. Passa tantas horas a fazer isso que se tornou num perito. O tamanho do seu ego vem ao de cima quando mostra os seus dotes a um simples empregado de limpeza, que também como ele, passa ali as noites.

Título Original: 3X3
Realização: Nuno Rocha
Argumento: Nuno Rocha
Direcção de Fotografia: Nuno Rocha
Montagem: Nuno Rocha
Interpretação: João Marçal, Ricardo Azevedo
Origem: Portugal
Ano de Estreia: 2009
Duração: 6’



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Cinema ao ar livre, 2 Agosto - UM HOMEM SINGULAR: o mais sensível filme de 2010? Tom Ford, estilista, estreia-se na realização. E o bom-gosto impera.

Fábrica da Cerveja, 22h, sócios 1€, não-sócios 3,5€ (ou Passe para os 10 dias por 20€).


Vou ser directo: Um Homem Singular é dos melhores filmes que vimos agora no início deste ano e, se tivesse estreado no ano passado nas nossas salas, provavelmente teria entrado directamente no meu top 10 de 2009. É impressionante em todos os aspectos, deste a banda-sonora à realização e passando, claro, pelas geniais interpretações. E é daqueles casos em que um peculiar e audaz estilo visual se alia na perfeição com o argumento, criando uma experiência que tanto tem de sensatorialmente bela como de emocionalmente poderosa.

A história é a de George Falconer (Colin Firth, absolutamente genial), um professor que lida com a trágica morte do seu companheiro dos últimos dezasseis anos, Jim (Mathew Goode). Apoiando-se na sua velha amiga Charlotte (Juliane Moore, também fenomenal no seu papel, como já estamos habituados), George lida com a dor e com a solidão provenientes desta perda, até que um encontro com o seu jovem estudante Kenny (Nicholas Hoult, também em boa forma) lhe possibilitam uma nova perspectiva.

O facto mais notável em Um Homem Singular é não tanto a sua enorme qualidade, mas antes o facto de esta vir de um realizador estreante: Tom Ford, conhecido estilista. O primor visual que se esperava de alguém com esta carreira está presente numa realização que funciona como estilo ao serviço da história. Ford filma de forma magnífica, com um uso de cores e de planos exemplar. A mudança de cores frias e cores quentes, de forma a expressar de forma perfeita os sentimentos das personagens, é notável, e o filme está todo ele filmado com uma serenidade e com um sentido de primor visual arrebatador. Ford é não só um fenomenal artista visual, mas também um excelente contador de histórias, talento esse que mostra aqui na sua primeira produção. A fotografia de Um Homem Singular, os planos, os pequenos detalhes capturados pela câmara, tudo isso é impressionante, mas tudo isso existe como serviço à história e para transmitir ao máximo a alma da personagem principal. Estilo ao serviço da substância, numa realização notável – uma nomeação ao Óscar nem tinha ficado mal…


Mas se realização é em si fenomenal, e se Ford revela aqui um talento impressionante, o elenco está, como seria de esperar, ao mesmo nível. Não há outra forma de dizer: Colin Firth está genial. É facilmente o melhor papel de um actor que sempre demonstrou talento, mas que nunca antes fora bem aproveitado. Aqui, a sua interpretação é de uma sublimidade e de uma profundidade de ir com o queixo ao chão. Não há grandes explosões de tristeza, não há muitas lágrimas… toda a tristeza da personagem vai além de tudo isso, e o espectador sente isso na pele pelo seu olhar, pelo seu tom de voz, pelos seus gestos. Numa altura em que o overacting está tão na moda, é bom ver um actor que efectivamente encarna a personagem da forma mais profunda possível, transmitindo ao espectador um rol de sentimentos que o atingem em cheio na alma. A sua nomeação ao Óscar é mais que merecida e, das interpretações nomeadas que vi até agora – falta-me apenas uma: a de Jeff Bridges, numa interpretação e num filme que parece totalmente diferente -, Firth é, sem a mínima sombra de dúvida, o que mais merece a vitória.

Nicholas Hoult como o jovem Kenny também está impressionante, dando à personagem uma notável camada de inocência de que é difícil não gostar. Mas Julianne Moore está aqui num dos seus melhores papéis dos últimos anos, encarnando na perfeição uma personagem que, mesmo não tendo muito ‘tempo de antena’, fica com o espectador mesmo depois de este ter saído da sala. Os seus maneirismos estão perfeitos e encarna na perfeição uma personagem que captura o espectador desde o momento em que aparece no ecrã, tal como a de Firth, claro. Uma nomeação ao Óscar (ou até mesmo a vitória!) teria sido mais que merecida.

Um Homem Singular é um filme magnífico em todos os aspectos. O seu estilo é único e tem imagens que ficam na memória, mas tudo isso existe ao serviço da história. Não lhe darei nota máxima nem o chamarei de obra-prima porque, apesar de estar muito, muito lá perto, faltou aquele pequeno rasgo para que lá chegasse. Mas é um filme como poucos, que impressiona e comove profundamente ao mesmo tempo, perfeitamente realizado e executado. E é daqueles raros casos em que o filme funciona como uma experiência sensatorial com profundo impacto emocional; tanto num momento faz com que arregalemos os olhos, como no momento a seguir faz com que dele caiam lágrimas. Um filme profundo e tocante. Esperemos que não seja o primeiro e último de Tom Ford.
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Gonçalo Trindade, espalha-factos.com


Um pouco mais e seria melodrama mexicano. Um pouco menos e seria irrisório, faz-de-conta sem alma, provavelmente ridículo. Mas Colin Firth aceita percorrer a corda bamba sobre estes dois abismos e dar-nos um retrato comovente de um solteiro singular (single, no título, pretende-se lido nesta dupla condição) - por certo a melhor coisa que o vimos fazer na vida. Não é pouco.

No princípio George, professor de literatura, está em estado de desespero. Não parece possível iludir a ausência do companheiro de muitos anos que morreu num acidente de automóvel há uns meses já - e ele continua uma existência de morto-vivo, suspenso num aquário de conforto e no futuro o projecto de uma pistola apontada à cabeça e o seu próprio dedo no gatilho a disparar. Tudo num espaço desenhado como o supra-sumo da elegância, um manto de falsidade, como se um exterior onde está tudo no sítio fosse a violenta antítese de um íntimo onde nada encaixa em nada. Depois, lentamente, o projecto de suicídio adensa-se, prepara-se, como uma despedida inadiável partilhada com uma vizinha igualmente em estado de solidão (esplêndida Julianne Moore, tão bela, tão frágil, tão triste). Comparticipam gin e memórias, um abraço, embriaguez, a impressão do abismo aberto ali ao lado. E a melancolia de nem saltar nem fugir. Mas a vida pode dar muitas voltas.

"Um Homem Singular" é uma história de luto homossexual, mas podia ser uma história de luto - só. É filme de uma eficácia imaculada, nem parece obra de um estreante - Tom Ford - com nome feito no campo do estilismo. O clima que a fita arquitecta (algo de onírico, aquático, suspensão ébria) é inesperadamente bem conseguido, não cedendo Ford à tentação dos principiantes (o uso da palavra), antes acreditando no poder das imagens e da sua concatenação. É isso que faz a especificidade do cinema.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso


Colin Firth, actor, 50 anos, desafia-nos a esquecer a moda. "Se as pessoas não soubessem a história de Tom Ford, quem é Tom Ford, olhariam para 'A Single Man' e pensariam: 'Que maravilhosa sensibilidade cinematográfica!' Não ligariam aos elementos decorativos. Sim, a roupa é maravilhosa, mas para mim, quando vestia as roupas de George [a personagem que interpreta na estreia na realização de Tom Ford], não pensei que tinham sido desenhadas por um 'designer' de moda. Senti que falavam do desespero de George. É claro e explícito no filme que a personagem veste, entediadamente, uma armadura de que precisa para sair de casa. É para isso que servem os botões de punho e o alfinete de gravata. Se se lhe retirar uma dessas peças, o homem pode desmoronar-se. "

O "homem Tom Ford" veste de impecável negro. E assim também a personagem George, professor de Inglês, expatriado em Los Angeles, homem retirado da vida que habita uma perfeição hermeticamente selada na Los Angeles dos anos 60.

"Lá fora" é a Guerra Fria, o medo dos comunistas, e acabou de estrear "Psico" , de Hitchcock. E "cá dentro", em casa de George (na realidade, uma das casas com que John Lautner -1911-1994 - contribuiu para o mapa da experiência arquitectónica que é Los Angeles), este "englishman in LA" faz o luto pela morte do companheiro de 16 anos.


Uma solidão é coisa resistente. Não vacila perante companhias. Pode é tomar-se mais produtiva, caminhando em direcção ao desenlace final, uma espécie de lucidez, se for adubada com outras solidões. É o que se passa com George e com a amiga (na verdade, uma antiga amante...) que partilha com ele essa estufa - no passado, as coisas não correram bem, em termos amorosos, entre as personagens de Colin Firth e de Julianne Moore, o que foi meio caminho andado para o prin¬cipio de uma bela amizade.

E assim George prepara o seu suicídio.


O "look"
George e esta estufa de fantasmas são criações do escritor Christopher Isherwood. Tom Ford leu "A Single Man" nos anos 80, mas voltou a lê-lo, e ao resto de Isherwood, mais recentemente, num contexto de realização profissional e de necessidade de renovação "espiritual", quando os livros lhe falaram então de outra maneira. Alguém que já dominou o (seu) mundo - a moda - precisava de outros estímulos como quem precisa de nova religião. Eis Tom Ford, 48 anos, e a crise de George.

"Não podia ter feito este filme há 15 anos. Sou um sortudo, porque tive muito sucesso comercial na vida [foi Ford que financiou o filme], mas ganhei isso sacrificando alguma espiritualidade. E redescobri-a quando voltei a ler o livro. George, a personagem, tem uma epifania, percebe tudo o que lhe aconteceu na vida, percebe que não precisa de viver mais. Aprende uma lição - que é o que espero que todos consigamos quando chegarmos ao fim; espero que aprendamos sempre até morrer" , diz o realizador que se estreia.


"A moda e o cinema são, para mim, duas formas de expressão completamente diferentes. A moda é uma coisa criativa, mas tem um objectivo comercial. O cinema é pura expressão. O cinema é a coisa mais expressiva e pessoal que já fiz. O sortilégio da moda não dura muito. Quando vemos uma mulher vestida com algo que nunca vimos antes, é inacreditável, mas ao fim de seis meses passa a ser apenas bonito. Eu gosto de personagens, gosto de aprisioná-las em cápsulas que possam durar 500 anos. Reabrir mundos para sentirmos de novo as mesmas emoções vivas... é das experiências mais compensadoras que se podem ter."

Enfrentemos, então, as cores, as sedas, o irremediável bom gosto de "A Single Man", o "look", a casa de Lautner...

"O 'look' tem de vir da personagem. Que tipo de casa é aquela em que George vive? Que tipo de pessoa é? Claro que a casa é belíssima, mas mais importante do que isso serve para nos dar informações sobre a personagem. Los Angeles é uma capital da arquitectura residencial. Achei que a casa tinha de ser de madeira, escura. Teria que representar a atracção da personagem pela liberdade americana, mas ao mesmo tempo uma certa qualidade inglesa, porque George é inglês: daí a madeira escura. O livro é uma espécie de monólogo interior deste homem. Não há uma narrativa. Foi necessário, por isso, encontrar certos dispositivos para o filme" - como desenvolver outras personagens, o que Ford fez durante ano e meio, quando trabalhou sobre o argumento.

"Não sei o que se passa com os outros, mas quando estou deprimido não há cor nenhuma na minha vida. Quando este homem decide que estes são os últimos dias que vai viver neste planeta, começa a olhar para as coisas de maneira diferente. A beleza do mundo, as cores e sons tornam-se intensas no filme, para ajudar o espectador a sentir os sentimentos de George. E é assim que ele acaba como se estivesse a viver em 'technicolor'. O 'look' sem substância é insignificante em termos cinematográficos."


Moda e cinema
E, no entanto, assume que há "semelhanças" entre os dois mundos, o da moda e o do cinema. "É preciso ter uma visão, conseguir trabalhar com um grupo de técnicos para que a nos¬sa visão seja materializada. A moda é muito mais um trabalho de colaboração do que as pessoas supõem, temos de encorajar os nossos colaboradores, dar-lhes liberdade para tirarmos o melhor deles - e simultaneamente conduzi-los em direcção à nossa visão. Trabalhar com uma equipa incrível e actores fantásticos tira-nos um enorme peso de cima. Com Colin, basta colocar a câmara e ele interpreta. "

Firth foi a primeira escolha do realizador (com este papel o actor recebeu o prémio de interpretação no Festival de Veneza e nomeação para o Óscar), embora a colaboração quase tenha falhado.

"Não há muito mais pessoas que pudessem fazer George, que tivessem a idade certa, que tivessem a subtileza e a emoção que Colin tem", diz Ford. "E Colin é um tipo muito 'sexy', algo que muitas vezes não é muito subtil [nas pessoas]. Felizmente que as nossas agendas se compatibilizaram. Mandei-lhe o argumento, voei para Londres [de LA], convenci-o a aceitar o papel em 24 horas e três semanas depois já estávamos a filmar."


Quanto a Colin, assume que no seu trabalho como actor procurou muito menos em Isherwood (mesmo que "muita da textura do amor entre as personagens possa ser encontrada na relação real entre Isherwood e o seu amante Don Bachardy") do que em Tom Ford. Conta que bastaram "dois dias" de rodagem para perceber "claramente" o que o realizador queria e para sentir a confiança que Ford de-positara nele com esta personagem e um filme tão pessoais.
Ajuda a explicar a intensidade deste "huis clos" - mesmo quando o filme se passa em exteriores, é uma Los Angeles subtilmente sugerida, como uma fantasmagoria interior - o facto de a rodagem ter decorrido de forma íntima, durante cinco semanas, trabalhando quase sempre de noite, um mundo isolado do mundo; ainda, a "meticulosidade" de Ford, testemunha o actor, que não se confunde com "o controlo cansativo sobre as coisas", antes cria "espaço para que a imaginação possa florescer, e é isso que é dirigir". (Serve para a "petite histoire" de ''A Single Man": a sequência em que George recebe a noticia, ao telefone, da morte do seu companheiro Jim, e onde, não tão subtilmente assim, lhe informam que ele não é desejado no funeral, "foi rodada na noite em que Barack Obama foi eleito [para a presidência americana], por isso não foi o dia mais fácil para estar arrasado pelo luto", brinca Colin.)

Regressando à epifania de George, que é a epifania de Tom. Diz o realizador de "A Single Man" que a sua redescoberta de Isherwood foi uma lição de vida: "Se começamos a vida como água de 'toilette', devemos ter a possibilidade de a acabar como perfume." Que é o mesmo que dizer que não há aqui fantasmas (da moda), há só um cineasta.
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Helen Barlow, Público


Título Original: A Single Man
Realização: Tom Ford,
Argumento: Tom Ford, David Scearce, Christopher Isherwood (romance)
Direcção de Fotografia: Eduard Grau
Montagem: Joan Sobel
Música: Abel Korzeniowski
Interpretação: Colin Firth, Julianne Moore, Matthew Goode; Ginnifer Goodwin, Nicholas Hoult
Origem: EUA
Ano de Estreia: 2009
Duração: 99’


EM COMPLEMENTO

ARCA D'ÁGUA, André Gil Mata, Portugal, 2009, 23'

Num lago rodeado por prédios, um homem constrói um barco.
O sonho de uma viagem impossível, na busca da liberdade das memórias de um passado
eterno.
Uma reflexão sobre o efeito do tempo e das metamorfoses dos espaços na vida de um homem
e na sua morte feliz.


Título Original: Arca d’Água
Realização: André Gil Mata
Argumento: André Gil Mata
Direcção de Fotografia: Jorge Quintela
Montagem: Karen Akerman
Música: Alfredo Teixeira
Origem: Portugal
Ano de Estreia: 2009
Duração: 23’



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Cinema ao Ar Livre 1 Ago-PRECIOUS:6 nomeações para Óscar, 2 vitórias. Só por Mo'Nique (melhor actriz secundária) merece ser visto. E por tudo o resto.

Fábrica da Cerveja, 22h, sócios 1€, não-sócios 3,5€ (ou Passe para os 10 dias por 20€).

Não é um grande filme, mas é intrigante: um melodrama clássico ao qual foi cirurgicamente removida a tendência lacrimejante.


Ao longo de 2009, "Precious" tornou-se num daqueles pequenos fenómenos explorados até à exaustão pelos media como exemplo da "vitalidade" do cinema independente: um filmezinho independente realizado por um cineasta sem grande experiência, apoiado numa actriz desconhecida, contando uma história da desgraçadinha ambientada no gueto urbano nova-iorquino e recusado por todos os grandes estúdios, que ganha o prémio do público em Sundance, obtém o apadrinhamento da diva do "talk-show" Oprah Winfrey, torna-se um "pára-raios" sociológico sobre as representações da comunidade negra, e recebe seis nomeações para os Óscares da Academia em todas as categorias principais (incluindo melhor filme, melhor actriz e melhor realizador).

Isto não significa que a segunda longa-metragem assinada por Lee Daniels, produtor de "Depois do Ódio" (Marc Forster, 2001, o filme que deu o Oscar a Halle Berry), seja uma obra-prima. Mas é um objecto peculiar, que reivindica de modo sintomaticamente moderno a herança da longa linhagem do "drama social" que sempre fez parte da grande produção hollywoodiana para logo a seguir recusar as suas âncoras mais evidentes - sobretudo se tomarmos em conta que tudo nele grita dramalhão lacrimejante e meloso, "problem picture" à moda antiga sobre os horrores sociais dos guetos desfavorecidos. A Precious do título é uma adolescente quase iletrada, grávida pela segunda vez de um pai que a violou, vivendo sob o jugo de uma mãe monstruosa que a trata quase como escrava.


A surpresa está na secura do melodrama, que Daniels evacua de todos os rodriguinhos ornamentados e comoções manipuladoras - para isso contribui a mera presença física da estreante Gabourey Sidibe, verdadeiro bloco de ébano cuja voz-off nos guia pelo pesadelo da sua vida sem vitimização nem histrionismo. Nessa recusa do emocional, "Precious" ganha qualquer coisa de brutal e entomológico, com um olhar clínico que nos recordou aqui e ali François Ozon, paredes meias com uma mistura de fantasia e grotesco que remete para Terry Gilliam. E ganha também a peculiar singularidade de um objecto enxutíssimo, que reduz o género às suas componentes mais irredutíveis, numa espécie de isolamento laboratorial.

É um tom difícil de manter ao longo de todo um filme e Daniels perde-o a meio, quando Precious sai finalmente de casa e se abre ao mundo e às suas possibilidades. Essa abertura corresponde também a uma curiosa abertura do próprio filme, que revela a sua fé no poder redentor da palavra por oposição à tirania da imagem (é a escrita que "salva" Precious da imagem que "aprisiona" a sua mãe, que vive fechada no apartamento a ver televisão), ou o facto deste universo ser exclusivamente feminino e não necessitar sequer do masculino. Mas coincide também com a rendição a um percurso melodramático muito mais convencional e previsível, que, felizmente, se inverte nos últimos vinte minutos, sublinhando como "Precious" está menos interessado no final feliz da praxe ou em apaziguar as boas consciências dando-lhes a entender que "todos viveram felizes para sempre". A vida não é um conto de fadas e Precious não é uma princesa encantada.


À sua imagem, também o filme está longe de ser perfeito - há cedências pontuais ao mau gosto, uma sofreguidão "topa-a-tudo" que o vê a espaços espatifar-se ao comprido (a citação/homenagem às "Duas Mulheres" de Vittorio de Sica é tão canhestra e despropositada que só dá vontade de rir). Mas a sinceridade é inegável, e é ela dá sentido a essas falhas: tal como a sua personagem que só quer que a deixem viver a sua vida, é um filme tão convicto do valor da história que conta que não recua perante nada para ser amado. Goste-se ou não, isso dá-lhe uma personalidade que poucos filmes americanos recentes têm tido.
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Jorge Mourinha, Público


De quando em quando, lá estreia um filme que nos impressiona pela simples brutalidade do seu realismo ou pelo enormíssimo humanismo que demonstra ter. “Precious” é, indubitavelmente, um desses filmes. Baseado num romance da autoria de Sapphire, “Precious” é, sem dúvida alguma, o “dramalhão” do ano. Lee Daniels demonstra ter um talento imenso atrás das câmaras, ao apresentar-nos uma perturbadora e comovente história que dificilmente deixará alguém indiferente. Ainda não vi todos os nomeados ao Oscar de Melhor Filme deste ano, mas arrisco mesmo a dizer que “Precious” será o filme mais dramático, pesado e chocante deles todos. Através de pormenores subtilmente deliciosos e de uma magnífica direcção de actores (onde até a cantora Mariah Carey consegue sobressair), a câmara de Daniels filtra perfeitamente toda a poderosa emoção exalada pelo conjunto de actores e o resultado é este: estamos perante uma das mais interessantes e veneráveis películas do ano.

“Precious” conta-nos a dolorosa história de uma iletrada jovem de dezasseis anos (Sidibe), obesa e terrivelmente maltratada pela família, que tenta encontrar um novo rumo para a sua vida numa escola alternativa que lhe oferece uma segunda oportunidade. Violada pelo pai, transformada em escrava pela mãe (Mo’Nique) e com um par de filhos incestuosos para alimentar, Precious vive uma existência penosa, inaceitável e perfeitamente insustentável. Insultada e desmoralizada pela mãe, Precious encontra num mundo de sonho fantasista a única escapatória a uma realidade podre, cruel e sem qualquer espécie de sentido. E é precisamente quando ela se encontra na sua pior fase, que a professora da nova escola (Patton) assume um particular interesse por ela e vai fazer de tudo para a retirar daquele autêntico pesadelo.


Como já foi referido, “Precious” é um filme pesado e imensamente dramático. A pungente situação da personagem principal comove-nos, incomoda-nos e faz-nos sofrer verdadeiramente. Facilmente simpatizamos e nos identificamos com a pobre jovem. O que apenas aumenta o interesse pela história e nos faz viver os terríveis acontecimentos relatados de uma forma muito peculiar. “Precious” reflecte duramente sobre alguns dos mais graves problemas da nossa sociedade. A forma como uma jovem obesa pode ser incrivelmente afastada pelos seus pares; a forma como uma mãe que vive na pobreza se pode aproveitar da segurança social e da própria filha para alimentar a sua preguiça e apatia vergonhosas. Daniels capta tudo isto de uma forma extraordinária.

E o que dizer da interpretação dos actores? Numa palavra: formidável. Gabourey Sidibe rasga as malhas do anonimato com uma composição firme, idónea e poderosa da jovem malograda. Paula Patton e Mariah Carey, entre outros, ajudam a adensar a emotividade da história. Mas é Mo’Nique quem reclama para si todas as luzes da ribalta. Neste filme, a actriz está simplesmente deslumbrante. Já há algum tempo (talvez desde o Joker de Heath Ledger) que não via a brilhante construção de uma personagem tão horrivelmente perturbadora. Agora percebo porque Mo’Nique tem levado todos os prémios para casa. E com toda a justiça, diga-se.
Para terminar, devo apenas dizer que “Precious” é um dos filmes mais comoventes, dramáticos e humanistas de todos os tempos. Certamente, um filme a reter na memória por muitos e longos anos. E felizmente, para bem de todos nós enquanto sociedade, uma obra que encerra à luz de uma subtil e brilhante mensagem de coragem e esperança para o futuro.
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Rui Madureira, portalcinema


Lee Daniels é uma força a ter em conta. Realizador, 50 anos, gay, vítima, na infância, de violência física por parte do pai, que era polícia, é uma das histórias de sucesso da indústria de entretenimento americana. Foi o primeiro produtor afro-americano de um filme vencedor de um Óscar, "Monster's Ball - Depois do Ódio" (melhor actriz, Halle Berry). A pedido de Bill Clinton esteve à frente de uma campanha para convencer os jovens afro-americanos a votar nas eleições americanas de 2004, recrutando para isso os seus amigos músicos LL Cool J e Alicia Keys. Criou-se expectativa em torno da sua estreia como realizador com "Shadowboxer", só que foi um "flop". Mas com "Precious" as qualidades - já para não falar dos contactos... - do ex-agente de talentos seriam realçadas. Conseguir gente como Oprah Winfrey, Mariah Carey e Lenny Kravitz para o filme foi uma proeza. Tal como juntá-los, em volta de uma história autobiográfica da escritora Sapphire, à sua amiga, a comediante e apresentadora de "talk shows" Mo'Nique, e descobrir Gabourey Sidibe. "Precious", violento testemunho, de catarse, sobre as relações de violência física e emocional, o abandono, numa família afro-americana, está nomeado para seis Óscares da Academia, incluindo os quatro principais: filme, realizador, actriz secundária (Mo'Nique) e actriz principal (Gabourey Sidibe). Juntam-se aqui as experiências da autora do livro e do próprio realizador, que decorou alguns dos cenários usando a memória da sua infância. E Daniels faz ainda do retrato duro e cru uma insolente desbunda de artifício, de fantasia.

Nos Globos de Ouro, quando recebeu o prémio de melhor secundária, Mo'Nique agradeceu assim a Lee Daniels: "És um realizador brilhante, destemido, espantoso, que não vacila. Obrigada por confiares em mim."


A mãe agressora e a filha obesa
No encontro com o Ípsilon, Daniels, vestido desportivamente, cabelo comprido encaracolado, sempre em pé, fala alto e mostra-se decidido a contar as suas histórias. É gritante como al¬gumas das sequências do filme. Explica-nos como preparou Mo'Nique para o papel de mãe agressora em "Precious" .

"Disse-lhe para deixar crescer os pêlos das axilas e das pernas. Perguntei-lhe quando tempo levaria a crescer uma borbulha e ela disse que demorava uns cinco ou seis dias. Fiquei lá a vê-la crescer" , diz, a rir-se. "Não se pode dizer que tenha sido um papel glamoroso mas assim é que se sabe se alguém confia em nós. Tratava-se mais de descobrir a beleza interior, o tormento de Mo'Nique. A única pessoa que tinha de ser bonita era Precious. "

No entanto, onde poderia ele encontrar alguém para desempenhar, de um dia para o outro, o papel de uma instável adolescente de 16 anos, analfabeta, a viver no Harlem, em 1987, com uma mãe que a agride e grávida de um segundo filho do próprio pai?


"Não podia telefonar a um agente de Hollywood e dizer: 'Olhe, tem por ai uma rapariga preta com 200 quilos? Portanto tive de fazer audições pelo país inteiro. Vi mais de 500 raparigas e a Gabbie estava mesmo ali ao virar da esquina, no Harlem.

Ela fez uma audição e fiquei estupefacto. A questão era que já tínhamos várias Preciouses, mas nenhuma verdadeiramente perspicaz. Gabbie não está a representar quando ergue os olhos, entusiasmados; é ela própria. Mas tudo o resto é representação. Tivemos de trabalhar imenso com ela para que baixasse o tom de voz."

Com 26 anos cheios de energia, Gabourey admite ser há muito tempo fã de estrelas de cinema. "Sou uma rapariga entusiasta," diz, dando umas risadinhas. ''As minhas origens não estão na arte de representar. A minha mãe é cantora, por isso sempre vivi perto da pintura e da arte, embora eu própria nunca tenha feito parte disso.

Na véspera da audição [para "Precious"] era estudante e recepcionista, agora sou actriz.
Não é como se tivesse agora uma grande cabeça e ficasse de repente espectacular; acredito plenamente que já era espectacular. Mas mudei, cresci. Foi uma coisa estranha estar nas filmagens com tantas pessoas que para mim eram ícones... aprendi imenso, Tenho agora um conhecimento diferente da vida. Antes pensava que poderia ser recepcionista toda a vida. "


A mensagem de Oprah
Daniels rapidamente pôs de lado quaisquer preocupações sobre o facto de Gabourey poder estar, como ele diz, "em negação quanto ao seu tamanho". "As raparigas de raça negra lidam bem com o seu tamanho. Na verdade, a maior parte das raparigas gordas até se orgulha disso. A minha irmã é uma mulher enorme e veste-se à moda e usa saltos altos. As pessoas é que têm a percepção de que elas deveriam sentir-se embaraçadas", diz.

Oprah Winfrey surgiu como produtora deste projecto de 10 milhões de dólares. "A mensagem do filme", segundo ela, "é que as pessoas se devem abrir às possibilidades que surgem na vida. Tudo o que conseguirem fazer por vocês pode ajudar a elevar-vos e a sair da situação em que estão... Ninguém que veja o filme pode depois andar por aí permitindo que as Preciouses do mundo sejam invisíveis. "

Gabourey fê-la recordar-se de si própria quando se estreou no cinema em "A Cor Púrpura" (1985), de Spielberg. "Este é o 'Cor Púrpura' dos nossos tempos, uma versão muito contundente com alguns dos mesmos temas, como os maus-tratos. É o primeiro filme da Gabby e a Precious faz-me lembrar a Celie [personagem representada por Whoopie Goldberg] em 'A Cor Púrpura'. Acho que lhe vão acontecer coisas maravilhosas."

Daniels justifica a escolha de Mariah Carey, que interpreta uma assistente social, e do seu "melhor amigo" Lenny Kravitz, que interpreta um enfermeiro: "Adoro músicos. Estão sempre ansiosos para se porem à prova."

Para Daniels "Precious" conta uma história universal. "Eu sou negro e a história é contada de uma perspectiva de alguém de raça negra e acontece a uma rapariga de raça negra, mas esta história podia acontecer noutro sítio qualquer. Andei por todo o mudo com o filme e fiquei chocado e surpreendido pela forma como as mu¬lheres no Japão e na Europa se identificam com a Precious."


A lindíssima Paula Patton acompanhou uma professora de uma escola para se preparar para o papel de assistente social, o que lhe permite ter uma radiografia do sistema norte-americano. "Há ainda quem consiga escapar por entre as malhas desse sistema e chegar aos 16 anos sem saber ler nem escrever", diz-nos. "Depende do bairro e do professor. Há pessoas que não querem saber e outras, como a minha personagem, que tomam conta daquelas crianças que foram ignoradas e privadas de tudo. Mas o sistema está contra ela..."
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Helen Barlow, Público


Título Original: Precious: Based on the Novel Push by Sapphire
Realização: Lee Daniels
Argumento: Geoffrey Fletcher, Sapphire (Romance)
Direcção de Fotografia: Andrew Dunn
Montagem: Joe Klotz
Música: Mario Grigorov
Interpretação: Gabourey 'Sidibe, Mariah Carey, Mo'Nique, Paula Patton,
Sherri Shepherd, Lenny Kravitz, Stephanie Andujar, Chyna Layne
Origem: EUA
Ano de Estreia: 2009
Duração: 110’


EM COMPLEMENTO

CORRENTE, Rodrigo Areias, Portugal, 2008, 15’

Ele é mineiro, todos os dias tenta deixar-se ir com a corrente do rio.
Ela sonha ir também, mas está presa.
Estão todos, presos por uma corrente.
São dominados pela força da montanha.
É de lá que saem todos os dias e para onde voltam a entrar.
Um dia a corrente parte-se.

Título Original: Corrente
Realização: Rodrigo Areias
Argumento: Rodrigo Areias
Direcção de Fotografia: Jorge Quintela
Montagem: Tomás Baltazar
Música: Sean Riley & The Slowriders
Interpretação: Inês Mariana Moitas, Vitor Correia
Origem: Portugal
Ano de Estreia: 2008
Duração: 15’




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Dia 31, WHATEVER WORKS - Woody Allen ao Ar Livre. Há lá melhor...

Fábrica da Cerveja, 22h, sócios 1€, não-sócios 3,5€ (ou Passe para os 10 dias por 20€).


O novo Woody Allen é um reencontro com o "velho" Woody Allen dos seus tempos áureos? Sim, mas não do modo que estão a pensar.

Tivesse Woody Allen assinado este "Tudo Pode Dar Certo" nos seus tempos áureos dos anos 1970 e 1980, talvez tivéssemos olhado para ele como um Allen menor e hoje estivéssemos à beira de uma reavaliação. Se tivesse sido rodado logo a seguir ao soberbo "Match Point", teríamos ficados convictos da ressurreição definitiva de um cineasta que andou um bocado aos papéis. Mas, como o vemos hoje, "Tudo Pode Dar Certo" é um dos "fogachos" pontuais que mostram ainda haver vida no velho mestre, aqui retomando de modo inspirado as coordenadas das suas velhas comédias nova-iorquinas a meio caminho entre o "screwball" clássico do neurótico à deriva e o romantismo terminal da busca do amor e do sentido para a vida.
Claro que o "herói" nominal, aqui interpretado por Larry David (ele de "Calma, Larry!" e "Seinfeld"), é basicamente, mais uma vez, Allen ele próprio mal disfarçado, mesmo que David empreste ao seu físico resmungão e misantropo uma "patine" confrontacional que o realizador dificilmente conseguiria invocar. Claro que o romance central (entre David no papel de um intelectual resmungão e uma soberba Evan Rachel Wood no papel de uma ingénua sulista caída de pára-quedas em Nova Iorque de quem ele vai ser um misto de mentor intelectual e amante incrédulo) parece decalcado de outros filmes (lembrámo-nos de "Manhattan", "et pour cause"). E, apesar (ou se calhar por causa) do soberbo trabalho fotográfico de Harris Savides, todo feito de subtis variações de luz e sombra, há muito de teatral nesta encenação do que, descobre-se entretanto, era um guião antigo que tinha ficado por rodar "na gaveta".


"Tudo Pode Dar Certo" é, então, uma história contemporânea de "Manhattan" que Allen, paradoxalmente, escrevera originalmente a pensar num actor específico (o comediante Zero Mostel, que recordamos, por exemplo, dos "Producers" originais de Mel Brooks, "Por Favor Não Mexam nas Velhinhas"), e que recuperou, reviu e actualizou para este filme. É isso que explica, ao mesmo tempo, o regresso das piadas imparáveis de "nonsense" "vintage", e a amargura singular dos seus últimos filmes que vem colorir o conjunto, como se "Tudo Pode Dar Certo" fosse uma síntese contemporânea dos Allen "clássicos" e "modernos" - o que esbarra logo a seguir na constatação de que os melhores dos Allen "modernos" ("Match Point" à cabeça de um pequeno contingente) são variações com maior ou menor originalidade sobre os seus motivos clássicos.

Mas isso, contudo, não nos deve afastar do essencial. E o essencial é que "Tudo Pode Dar Certo" vai reconfortar todos aqueles que achavam que Allen já não tinha nada a dizer e reacender a esperança (mesmo que vã) de ainda haver um "Manhattan" no veterano autor. Este filme não é, claro, outro "Manhattan", mas já ficamos contentes por ser outro "Balas sobre a Broadway". Afinal, tudo pode mesmo dar certo...
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Jorge Mourinha, Público


Deve haver uma maneira de usar a palavra "zelig" para explicar este fenómeno: quem se aproxima muito de Woody Allen, transforma-se em Woody Allen. O fenómeno é verificável em incontáveis filmes e, normalmente, não passa despercebido. Aliás, costuma servir para identificar os representantes, os "duplos", de Woody Allen dentro dos filmes que ele realiza mas não interpreta. A sua acção é tão poderosa que dispensa pré-requisitos baseados em semelhanças físicas e afinidades geográficas ou de "background" cultural - mesmo John Cusack, jovem e moreno, e Kenneth Dranagh, inglês e louro (e ambos cabeludos), já se transformaram em Woody Allen, angustiaram¬-se como ele, gesticularam como ele, falaram como ele.

Nem as mulheres escapam, naturalmente - Mia Farrow, por todas as razões, praticou a arte do woodyallenismo de saias como ninguém (chegámos a temer que o fenómeno actuasse para além das câmaras), mas até Scarlet Johansson se deixou contagiar.


Particularidade da componente física do humor - do cinema - de Woody Allen: o físico, nele, é "plasmável", transferível para outros. Nem Chaplin, nem Keaton, nem os Marx, nem Jerry Lewis, nem Tati, se transferiram assim para outros corpos (Tati, é verdade, trabalhou duplos do Sr. Hulot, mas como multiplicação, não como substituição). É como se, consciente do excesso da sua imagem - do excesso de tipificação, do excesso de identificação criado por ela - Woody Allen se sentisse na necessidade de a matizar, de a dissolver noutros corpos e noutros actores. Um freio no narcisismo. Ou justamente o contrário, uma fé infinita nos seus dotes frankensteinianos, espécie de desafio aos deuses: tragam-me qualquer actor do mundo, e eu recriá-Io-ei à minha imagem.


O pensamento mágico, de resto, é praticado pelo protagonista de "Tudo Pode Dar Certo" (título que, já agora, é muito mais optimista do que o original: "whatever works", "seja lá o que for que dê certo", "seja lá o que for que funcione"), que com a ajuda dos ares nova-iorquinos transforma sulistas retrógrados (os pais da mulher) em cosmopolitas de cabeça livre. Mas resiste, o protagonista, ao pensamento mágico de Woody Allen. Mais propriamente, o actor que interpreta o protagonista, Larry David. Careca e judeu como ele (além de velho cúmplice), talvez os aproximem demasiadas coisas para que David aceite de bom grado submeter-se ao fenómeno de woodyallenização. Figura vertical, recta, inventa uma perna manca para a personagem, serve-se de gestos rígidos de declamador ("Whatever Works" é quase "stand up comedy") e pratica o verbo sem hesitações, em rajadas directas ao alvo. Em vez da insegurança típica da "persona" alleniana, Larry David é todo certezas e altivez. Como Woody Allen, mas sem o verniz. É falso, portanto, que ''Whatever Works" não descubra nada de novo: descobre um Mr Hyde para o Dr. Woody Allen. Que tamanha descoberta não seja subestimada.

Sabemos que Larry David é o MrHyde de Woody Allen porque reconhecemos nele Woody, já não nos gestos, já não na oralidade, mas no intelecto e nas idiossincrasias. Na maneira de ver o mundo e de pensar na vida. O fenómeno de apropriação física transforma-se num fenómeno de apropriação telepática. Woody Allen não é um corpo, Woody Allen é uma ideia. Seja lá como for que funcione, continuar a surpreender-nos por -de vez em quando - funcionar tão bem.
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Luís Miguel Oliveira, Público


Larry David... it works
Woody é um pretendente a intelectual com muito talento, Larry é um génio sem pretensão que nunca veria um filme de Bergman. Allen encarna os problemas dos burgueses; David é a vingança do proletário. Allen não consegue dizer o que Larry diz. Terá sido isso que o levou a escolher o "enfant terrible" da comédia americana?

Já vimos "isto" em filmes de Woody Allen: um sujeito misantropo fala connosco, público, para nos contar a sua história, e pelo meio vai zurzindo contra o resto da humanidade porque esta é burra e irracional, sendo que aqui e ali as suas obsessões e hipocondria lhe provocam uns achaques, o que o leva a dar por si a achar que mais minuto menos minuto vai morrer.


"Isto" é quase assim em "Tudo pode Dar Certo", de Woody Allen. É de novo uma comédia, de novo com uma personagem principal misantropa - desta feita um ex-físico que esteve "quase a ganhar o Nobel". Este "quase a ganhar o Nobel" é deliciosamente Woody Allenesco: sendo, para os patamares comuns, um sinal de sucesso, é, neste universo, medida de um falhanço. E o número de vezes que este "quase" é repetido no filme funciona como tropo para o rancor que move esta personagem que odeia a humanidade e de vez em quando pensa em pôr cobro à vida.

Essa personagem, que detesta sexo, se anuncia constantemente como génio mas age como falhado, está constantemente a insultar toda a gente mas no fim encontrará uma espécie de redenção, tal como as restantes personagens, o que torna "Tudo pode Dar Certo"/ "Whatever Works" uma das fitas mais "felizes" de Woody Allen, um caso raro em que as personagens aceitam as mudanças da vida. E quem foi o escolhido para desempenhar o papel desse homem que também aceita "whatever works"? O grande "enfant terrible" da comédia americana, o homem que nos últimos anos melhor escreveu sobre pessoas que nunca mudam e são incapazes de ser felizes, Larry David.

Semelhanças e diferenças
Larry David é um mestre da auto-depreciação, da paranóia, da hipocondria e da neurose, como é notório nas duas pérolas de humor televisivo que criou, "Seinfeld" e "Curb Your Enthusiasm". Visto assim, Allen, ao fazer a escolha do actor, ter-se-ia limitado a encontrar o melhor prolongamento de si próprio que encontrou.
Mas David, por mais que seja um herdeiro do humor de Woody Allen, e partilhe com ele um mundo mental de insegurança pessoal, fobias e pânico da morte, tem voz própria e está longe de ser um magrelas tremeliquento por quem as mulheres nutrem um sentimento de maternidade. Quando muito as mulheres nutrem sentimentos maternais pelas pessoas que David insulta nas suas séries.


Na realidade, há tanto mundo a unir Allen e David como a separá-los - o que nos leva a perguntar se David será uma escolha tão óbvia, ou, por outra, qual a intenção de Allen ao contratar David para um filme seu. Para perceber isto, é preciso olhar com atenção para as semelhanças e as diferenças.

Comecemos logo pelo óbvio: a expressão corporal do autor de "Annie Hall" não respira o mesmo veneno que a de Larry David. Allen gagueja, fala baixo, não diz palavrões, é incapaz de um acto de machismo. David, em "Curb Your Enthusiasm", sobe o tom de voz, irrita-se, os seus gestos são bruscos e mal-educados, tem as atitudes mais mesquinhas em situações em que Allen seria submisso.

O limite do humor de cada um é igualmente diferente. Em "Curb Your Enthusiasm", série em que Larry David faz de Larry-David-autor-da-série-Seinfeld, raia-se bastas vezes o possível mau gosto, mas não de forma gratuita - Larry coloca-se nas mais terríveis situações, de modo a testar qual o limite daquilo que tem piada, como se perguntasse: até onde é que o humor pode chegar?

Para dar um exemplo e da forma mais sucinta possível: num dos episódios da série uma ex-namorada de Larry diz-lhe que está a pensar ir a uma reunião dos Abusados Anónimos. Como Larry foi a única pessoa a quem ela alguma vez contou que foi abusada, quer que ele a acompanhe. Larry não quer ir, mas não sabe como dizer não. Ao fim e ao cabo estamos a falar de abuso. Larry vai e o início da sessão é coisa que faz muita gente virar a cara e outra tanta gente desatar a rir à gargalhada.

O grupo de "abusados" está numa roda, como nos Alcoólicos Anónimos, e uma mulher começa a contar a sua história. O caricato é que a história dela não só é interminável como envolve os mais disparatados pormenores, como o dos primos que nunca se deram bem e andavam sempre à bulha, excepto quando a violavam - aí eram muito amigos e até se revezavam a guardar a porta para evitar serem apanhados.

Mas há pior: cada um dos elementos do grupo de "abusados" tem de contar a sua história. A dada altura pedem a Larry para contar a sua. Larry não tem história para contar. Mas confessar a razão porque ali está podia ser visto como um desrespeito pela gente que passou por abuso e podia levar a que a ex-namorada fosse posta fora, pelo que, sem saber o que fazer, ele inventa uma história. (Obviamente isto mais tarde vai-se voltar contra ele.)


O que há de curioso nisto é que a cara atónita de David, em pânico quando tem de falar do "seu" caso de abuso, redime qualquer limite que tivesse sido atravessado, porque - simplesmente - tem muita graça. Essa cara de pânico é uma das diferenças entre David e Allen: não que Allen não entre em pânico, mas ele está sempre pronto a "dialogar", a falar de "sentimentos". Nenhuma personagem escrita por Larry David fala de sentimentos ou gosta sequer de intimidade. Na realidade, por vezes nem sequer sabemos se as suas personagens têm sentimentos.

Noutro episódio, Larry ganha um vizinho novo, ex-actor porno que chama à sua casa "The house that cum built". Noutro ainda, um rapper pergunta a Larry "Do you eat pussy, Larry? You gotta eat pussy". O episódio envolve pêlos púbicos encravados na garganta.

Woody Allen nunca escreveria coisa assim e certamente detestaria estar na pele de Larry David que, desde que "Curb Your Enthusiasm" foi para o ar, tem sido atacado por uma data de gente nos EUA. No entanto, isso não acontecia quando estava à frente de "Seinfeld". É que em "Seinfeld" David era co-criador com Jerry Seinfeld, e Jerry sempre foi o homem que lidou com a indústria. Ao fim e ao cabo, "Seinfeld" era um programa "mainstream" e David tinha de ser domado, não podia dizer palavrões ou usar palavras como "pussy", razão pela qual escreveu todo um episódio sobre masturbação sem nunca usar a palavra "masturbação".

Isto é: David, quando à solta, liberta uma violência rara; quando domado, consegue ser "mainstream". "Seinfled" era tão "mainstream" que se tornou a série de humor mais rentável da história dos EUA. E era, com David domado, de uma dívida imensa para com Woody Allen, que aliás era referido na série.


As dívidas a Woody
Para quem não se recorda de "Seinfeld", relembremos: na série com o seu nome, Jerry Seinfeld era um humorista nova-iorquino que se desempenhava a si próprio, e passava os dias em casa, em conversas sobre coisa nenhuma com o seu misterioso vizinho Cosmo Kramer, o seu melhor amigo George Costanza e a sua ex-namorada Elaine Benes.
Cada uma das personagens tinha tiques neuróticos: Kramer era um grandalhão desempregado que assaltava o frigorífico de Seinfeld, tinha graves problemas de equilíbrio físico e era uma enciclopédia de conhecimento inútil. Elaine arranjava múltiplas razões para acabar as suas relações sentimentais, numa rara demonstração de incapacidade de crescer que, aliás, era partilhada por todas as personagens. E Costanza era o hipocondríaco com medo de mulheres e mentiroso compulsivo que, se não fosse um decalque das manias de Larry David, seria a melhor imitação alguma vez feita de Woody Allen.

Aliás, quando Jason Alexander, o actor que encarnou Costanza, fez a audição para o papel, achou que a sua personagem era uma variação do típico nova-iorquino neurótico tal como fixado por Allen, pelo que fez aquilo a que chamou "uma má e óbvia imitação" de Woody Allen. Só mais tarde se apercebeu que Costanza era decalcado da vida de Larry David, pelo que passou a imitar os gestos de David.

As dívidas de "Seinfeld" a Woody Allen não se ficam por aí: o universo de obsessões que escapam está lá, os diálogos non-sense idem, a hipocondria, o medo da morte, etc. Falta, isso sim, a conversa sobre "o sentido da vida", que aliás, com o desenvolver da série, se tornou cada vez mais rara, dando lugar a uma obsessiva decantação de todos os empecilhos diários que levam a que sujeitos neuróticos dêem tiros no pé por tudo e por nada.

Pelo que há basto universo comum, mas assinaláveis diferenças. Se nos lembrarmos de Costanza, a personagem decalcada de David, ele nunca lia um livro - ao passo que Allen é um literato. Allen põe todas as suas personagens masculinas a discutirem a natureza das suas relações com as mulheres, ao passo que as personagens masculinas escritas por David nunca partilham nada de íntimo, são, até, superficiais e tentam a todo o custo não perceber as mulheres.

Costanza era incapaz de manter um emprego e vinha de uma família "bas-fond" - ao passo que Allen é classe média alta e bem cedo tornou-se um comediante de sucesso que ia andar do metro à espera de ser reconhecido por mulheres com quem depois tinha sexo à conta da sua celebridade. Já David, diga-se, só encontrou o sucesso aos quarenta e muitos, numa altura em que estava quase a ir viver para o meio da rua. David nunca frequentaria os meios artísticos que Allen tanto preza. O que é que os separa, afinal? Simples: diferença de classes.

No fundo Allen é um pretendente a intelectual com muito talento, o segundo é um génio sem pretensão, que nunca veria um filme de Bergman, muito menos citaria Heidegger. Allen encarna os problemas dos burgueses levados ao extremo; David é a vingança do proletário com demasiada cabeça para ser proletário: em "Curb Your Enthusiasm" subiu na vida, mas nem por isso consegue incluir-se na sua classe de gente de sucesso. A mesquinharia dos problemas diários está-lhe demasiado colada à pele.


Pelo que Allen não pode ou não consegue dizer o que Larry David diz, nem como o diz. E terá sido isso que o levou a escolhê-lo como seu protagonista: Allen está, através de David, a ser o que nunca conseguiu ser na tela, zangado, verdadeiramente zangado.

Na sua obra Allen nunca insulta ninguém na cara. Quando muito diz, na fila do cinema, a um desconhecido que as suas ideias sobre Marshall MacLuhan são um disparate. Com Larry David essa cena acabaria em berros, escândalo público e confronto físico, porque David nunca deixa escapar uma oportunidade para um insulto.

Pode aventar-se que Larry David é demasiado seco - ou "blunt", palavra inglesa que se adequa na perfeição ao seu estilo - para um filme de Woody Allen. Mas também pode argumentar-se que é essa crueza que traz novidade a um argumento clássico. Se quisermos podemos ir mais longe e dizer que Allen encontrou em David acesso privilegiado ao seu querido Id, o homem que lhe permite usar uma crueza de linguagem que nunca antes esteve presente na obra de Woody Allen.
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João Bonifácio, Público


Título Original: Whatever Works
Realização: Woody Allen
Argumento: Woody Allen
Direcção de Fotografia: Harris Savides
Montagem: Alisa Lepselter
Música: Roy B. Yokelson
Interpretação: Larry David, Evan Rachel Wood, Patricia Clarkson,
Ed Begley Jr., Adam Brooks, Lyle Kanouse
Origem: EUA/França
Ano de Estreia: 2009
Duração: 92’


EM COMPLEMENTO

CANÇÃO DE AMOR E SAÚDE, João Nicolau, Portugal/França, 2009, 30’


João é o único empregado visível no estabelecimento comercial Chaves Morais. É também o filho do proprietário e não se coíbe de se ausentar do serviço para auscultar o sopro imaterial do seu coração gastando moeda atrás de moeda na Máquina do Amor. Marta do Monte é uma estudante de Belas Artes portadora de uma inusitada encomenda. A chave que para ela João copia abre mais que uma porta.

Título Original: Canção de Amor e Saúde
Realização: João Nicolau
Montagem: João Nicolau, Francisco Moreira
Interpretação: Ana Francisca, Marta Sena, Norberto Lobo
Origem: Portugal/França
Ano de Estreia: 2009
Duração: 30’




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CINEMA AO AR LIVRE: O melhor filme de guerra em muitos anos e um filme de acção que envergonha 95 por cento dos "blockbusters" americanos recentes.

ESTADO DE GUERRA, Kathryn Bigelow. Vencedor dos Óscares. Humilhou Avatar (yesssss!). Um filme fabuloso.

Inicia a Mostra de Cinema ao Ar Livre "Curtas Portuguesas recebem os Amigos Americanos". Dia 30 de Julho, Fábrica da Cerveja, 22h, sócios 1€, não-sócios 3,5€ (ou Passe para os 10 dias por 20€).


Dá vontade de ir directo à hipérbole: "Estado de Guerra" é o melhor filme de guerra em muitos anos. É uma trip impressionista pelo "lado escuro", uma injecção de adrenalina directa para a veia, uma "walk on the wild side" para citar a canção de Lou Reed. Porque - ao contrário da recente vaga de filmes americanos sobre o Iraque e as suas sequelas, ou de muito do cinema que se fez sobre o Vietname, por muito bons que alguns deles sejam - não é um filme que questione razões, motivos, psicologias. "Estado de Guerra" não pede desculpa por olhar para as coisas de frente e pegar o touro pelos cornos: sim, a guerra é um inferno (não são poucas as cenas onde o choque surdo da morte mesmo aqui ao lado bate com violência), mas para quem está lá no meio é também um vício, uma necessidade, uma maneira de estar vivo.


Tudo se passa numa unidade de minas e armadilhas, acompanhando os desafios quotidianos de um sapador-mineiro viciado nos riscos de desactivar os (progressivamente mais complexos) engenhos explosivos improvisados que os insurgentes constantemente plantam nas ruas de Bagdad, numa "escalada" em que cada bomba neutralizada abre caminho a um desafio mais elaborado e exigente. (Há, é verdade, algo de video-jogo aqui pelo meio, mas é uma leitura necessariamente a posteriori - e nunca um filme inspirado num jogo conseguiu o crescendo de tensão que Bigelow constrói aqui com virtuosismo.) Mas outra faena que "Estado de Guerra" faz ao touro é explicar que Iraque, Afeganistão, Vietname, Coreia, Balcãs, etc., são nomes diferentes para um mesmo território. O "onde" perde a sua relevância. A única ideologia é o pragmatismo. A guerras são todas iguais, há inocentes e culpados, entre mortos e vivos alguém se há-de safar.


Sim, este é um mundo de homens (as únicas mulheres aqui estão longe, em casa, mas esta camaradagem masculina é tão poderosa como frágil, ameaçada a cada momento), mas, paradoxo irónico, foi preciso uma mulher para fazer o melhor filme de guerra em muitos anos. É verdade que não é uma mulher qualquer - Kathryn Bigelow, ex-mulher de James Cameron, uma das poucas cineastas femininas que se impôs no mundo codificado do filme de género. Mas nada na sua obra anterior - que vai de "Ruptura Explosiva" a "Estranhos Prazeres", nem sempre conseguida, mas sempre estimulante - daria a entender que seria capaz de conseguir o que muitos outros têm procurado fazer sem lá chegar: um "statement" praticamente definitivo sobre viver a guerra, com todas as amplitudes térmicas emocionais que isso implica.


Não é, atenção, proeza exclusiva de Bigelow: tire-se o chapéu ao jornalista Mark Boal, que baseou o argumento nas suas próprias experiências acompanhando as tropas no Iraque, e à sua capacidade de desenhar personagens com dois ou três traços; à justeza de um elenco notável encabeçado por um Jeremy Renner na medida certa de obsessão; à "vérité" poeirenta da imagem de Barry Ackroyd (cúmplice habitual de Ken Loach). Mas foi Bigelow quem conseguiu a improvável alquimia de pegar numa história que tinha tudo para se tornar em mais um "statement" neo-liberal sobre a futilidade da guerra e transformá-la, primeiro, num filme de acção que envergonha 95 por cento dos "blockbusters" americanos produzidos nos últimos dez anos e, segundo, num dos olhares mais lúcidos e inteligentes sobre os homens que fazem a guerra sem precisar de recorrer a explicações freudianas.


Houve quem olhasse para "Estado de Guerra" como um filme paredes-meias com o exercício de recrutamento, mas Bigelow limita-se a admitir que há qualquer coisa de primitivo no nosso fascínio pela guerra, que a experiência é tão radical e limite que nada, mas nada, consegue equiparar-se-lhe - e que mais vale aceitar que isso é algo que não consegumos explicar verbalmente, e que transcende políticas e atitudes para ser, apenas, algo de intensamente pessoal e intransmissível. "Estado de Guerra" não explica: observa e constata.

E - milagre! - quem o quiser ver, apenas, como um "thriller" de acção pode fazê-lo que continua a ter direito a um filme notável.
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Jorge Mourinha, Público


«The Hurt Locker» é um filme para acabar com toda a conversa tonta sobre a existência de um cinema "feminino", ou "de mulheres", por oposição a um cinema "masculino", ou "de homens". Porque em «The Hurt Locker» Kathryn Bigelow filma a guerra no Iraque, e o comportamento, os sentimentos e a intimidade dos soldados como pouco homens o conseguiram, ou conseguirão fazer.

Escrito por Mark Boal, o argumentista de «No Vale de Elah», e rodado na Jordânia, «The Hurt Locker» segue o dia-a-dia da unidade militar americana com maior taxa de baixas no Iraque: os especialistas em bombas não detonadas e em armadilhas feitas com engenhos explosivos. Centrando-se em três daqueles soldados, o filme é uma sequência de episódios baseados em factos reais (Boal esteve no Iraque a falar com militares e a fazer o "trabalho de casa" muito bem feito), desde a desactivação de um carro armadilhado colocado perto de um edifício das Nações Unidas em Bagdade, até ao confronto com um homem-bomba à força, passando por uma cena infernal após o rebentamento de um camião-cisterna perto da Zona Verde e pela descoberta do corpo de uma criança transformado em cadáver explosivo, numa cena que Bigelow filma no limite do emocionalmente suportável.


«The Hurt Locker» é um daqueles cada vez mais raros filmes em que o rush de adrenalina e os índices de tensão atingem níveis tão elevados no ecrã como na plateia. Mas sendo um filme de guerra, e sobre homens em guerra, este consegue ser também um filme sobre a intimidade, e as suas formas particulares de expressão e de camaradagem, no microcosmo do trio de protagonistas, encabeçado pelo excelente Jeremy Renner no papel do temerário mas experiente sargento William James, para o qual a melhor maneira de desarmar uma bomba é "não deixar que ela rebente connosco". Guy Pearce, Ralph Fiennes e David Morse fazem breves apariçães em «The Hurt Locker», mas o filme pertence todinho a Renner, a Anthony Mackie no sargento que funciona by the book, e a Brian Geraghty no soldado que precisa que lhe incutam confiança.
As bombas não são a única ameaça que estes especialistas enfrentam. Há ainda os "snipers", que muitas vezes ficam perto ocultos numa casa, num telhado ou num terraço, para fazer detonar os explosivos com um tiro quando estiverem o máximo de civis iraquianos e soldados americanos junto deles, ou para abater os especialistas quando eles estão a trabalhar na desactivação dos mecanismos. A realizadora disse na conferência de imprensa que «The Hurt Locker», não sendo, obviamente, "a favor" da guerra no Iraque, não era também um filme "para tomar partido", e contou que quando Mark Boal lhe falou nestes militares que enfrentavam a morte armados apenas com um alicate, uma protecção corporal e um capacete, soube logo que era a história deles que ia filmar a seguir. E a forma como alguns destes homens, caso do sargento James, precisam de estar no coração dos acontecimentos para se sentirem integrados nalguma coisa, verdadeiramente vivos, com uma função e uma razão de ser no mundo. Mesmo que a morte os espere para os fazer em bocados, no fundo de uma rua suja e devastada de Bagdade, dentro de um carro, debaixo do chão ou no terraço de um prédio.
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Eurico de Barros, Cinema 2000


James (William Renner), juntamente com o sargento Sanborn (Anthony Mackie) e com o soldado-especialista Eldridge (Brian Gegharty), cuja missão é orientarem-no pela rádio e darem-lhe cobertura enquanto ele tenta impedir o rebentamento de bombas, carros ou gente, é um dos três protagonistas de Estado de Guerra, de Kathryn Bigelow, escrito pelo jornalista Mark Boal (No Vale de Elah). E Estado de Guerra, além do melhor filme feito até agora sobre a guerra no Iraque é também um dos grandes filmes de guerra já feitos, ponto final.

A intenção de Bigelow não foi realizar um filme “pró” ou “anti”-guerra. Foi descrever o quotidiano unicamente mortífero, as motivações, as relações e o funcionamento emocional e mental dos militares especializados que, nas ruas, casas e terraços das cidades iraquianas, por vezes sob a mira de snipers inimigos, arriscam ficar mutilados ou ser reduzidos a migalhas, enquanto, minimamente resguardados, tentam desactivar toda a sorte de bombas, booby traps mais ou menos sofisticadas, carros pesadamente armadilhados e pessoas forradas (as vivas) ou recheadas (as mortas) de explosivos.


Comandando uma câmara que não larga as personagens nem no meio do pior inferno de caos, chamas e morte fabricado por mão humana, Bigelow mostra-nos uma sucessão de episódios baseados em factos reais e ficcionados que levam os índices de tensão ao limite, instalam um clima emocional nos limites do suportável e esgotam a secreção de adrenalina.

Poderão as sensações intensas decorrentes de situações de combate extremas viciar o soldado, e levá-lo a querer experimentar mais, como parece suceder à personagem do sargento James? Talvez. Certo, certo, é que raras vezes a experiência humana da guerra foi tão visceral e implacavelmente visualizada e transmitida como nesta fita, por estes militares armados de alicates e que raramente vêem o inimigo. Kathryn Bigelow nasceu mulher, mas filma como um homem a quem a natureza dotou com dois pares de testículos.
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Sérgio Abranches, Time Out



Título Original: The Hurt Locker
Realização: Kathryn Bigelow
Argumento: Mark Boal
Direcção de Fotografia: Barry Ackroyd
Montagem: Chris Innis, Bob Murawski
Música: Marco Beltrami, Buck Sanders
Interpretação: Anthony Mackie, Brian Geraghty, Christian Camargo, David Morse,
Evangeline Lilly, Guy Pearce, Jeremy Renner, Ralph Fiennes
Origem: EUA
Ano de Estreia: 2008
Duração: 131’


EM COMPLEMENTO

A FELICIDADE, Jorge Silva Melo, Portugal, 2008, 8’

Um pai e um filho. O pai terá setenta anos, o filho pouco mais de vinte. O filho leva o pai ao hospital. Na rádio, música clássica. O Exultate, Jubilate de Mozart cantado por Teresa Stich- Randall. Nem o pai sabia que o filho gostava de música clássica, nem o filho sabia que aquela seria a última conversa que teria com o pai. Mas Mozart pede que as almas se alegrem, que os homens rejubilem.

Título Original: A Felicidade
Realização: Jorge Silva Melo
Argumento: Jorge Silva Melo
Direcção de Fotografia: José Luís Carvalhosa
Montagem: Vítor Alves
Interpretação: Fernando Lopes, Miguel Borges, Pedro Gil
Origem: Portugal
Ano de Estreia: 2008
Duração: 8’



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