É um filme de ficção científica, mas com os habituais elementos futuristas e espectaculares eliminados. Houve um cataclismo na Europa – ataque terrorista, desastre ecológico ou guerra, fica por dizer – a ordem desabou, as comodidades desapareceram, da electricidade à água potável, os animais morrem, os campos são invadidos por famílias à deriva e tenta-se manter o equilíbrio possível para que a anarquia não estale. E é Inverno e faz cada vez mais frio.
Isabelle Huppert interpreta uma mulher a quem matam o marido e que se junta, com os dois filhos, a um grupo de pessoas, numa estação de comboio abandonada. Durante duas horas, Haneke filma as dificuldades dos cidadãos da sociedade da Internet e dos hipermercados para se adaptarem às novas e ásperas condições de vida, sem sacar dos clichés dos filmes-catástrofe, criando uma atmosfera de desamparo e angústia que incomoda pela sua espessa verosimilhança.
Eurico de Barros, Diário de Notícias
Só conheceremos as manifestações secundárias da catástrofe que atirou Anne e as crianças para a estrada: as pessoas que fogem, a penúria, a doença – nunca a causa. O TEMPO DO LOBO é o tempo em que a sociedade dos homens se desfaz para entrar num movimento que nada nem ninguém pode travar. Não interessa analisar as causas, mas apenas seguir o movimento. (…)
De qualquer forma, Haneke, até agora, sempre desconfiou da imaginação, preferindo a dissecação à evocação, mesmo arriscando privar de vida os seus assuntos. Mas neste filme é preciso sair da representação da vida na Europa Ocidental, que era o centro de “Código Desconhecido” e “71 Fragmentos de uma Cronologia do Acaso”, porque é preciso filmar uma sociedade depois da sua morte, quando o exílio a transforma em fantasma.
Com uma coragem comovente, o cineasta austríaco renúncia às ferramentas que até agora lhe permitiam domesticar a dor e a violência que são a substância da sua obra. (…) Esta mudança de método, este salto no desconhecido, porquê fazê-lo? Para provocar medo. Para mostrar primeiro a fuga de Anne e dos seus filhos, numa longa sequência nocturna quase completamente mergulhada na obscuridade, ao mesmo tempo que uma ruptura irreparável aparece no seio da família – o rapaz é condenado ao silêncio, a adolescente apercebe-se das fraquezas da mãe. Encontram então um jovem rapaz que sobrevive à custa dos cadáveres. Juntos, seguem o caminho-de-ferro até uma estação onde um pequeno grupo heterogéneo espera um comboio hipotético, sobrevivendo sob o mando de um traficante de água e de sexo. Nesta estação, há rostos conhecidos – Patrice Chéreau, Béatrice Dalle, Maurice Bénichou, Olivier Gourmet (o traficante). Estes actores de excepção estão aqui para representar um dos actos da tragédia dos refugiados. A constituição de um grupo, a aprendizagem da duração da infelicidade. Uma cena magnífica opõe Chéreau a Dalle, um tentando jogar contra a má sorte, ela revoltando-se com uma violência tão devastador quão impotente. É provavelmente neste momento que o filme se encontra: o argumento apresenta então algumas postas poéticas (um velho recebe notícias do mundo exterior como se chegassem directamente do éter, uma mulher, louca talvez, procura os Justos no caos, tal como Lot antes da destruição de Sodoma e Gomorra) e o pequeno número de protagonistas permite a Haneke controlar o seu material de uma forma mais teatral, no sentido mais nobre do termo. (…) Nesta situação caótica, neste movimento perpétuo, encontramos organizados numa história os fragmentos que se poderiam apanhar durante a epidemia de cólera em Gomorra, ou durante o êxodo forçado dos kosovares na Albânia. Mas desta vez os fugitivos têm o nosso rosto e o que Haneke mostra em vários tons (…) é um lembrete e um aviso: mesmo do outro lado do mundo, estas guerras, estas tragédias também são nossas e a qualquer momento podem bater-nos à porta.
Thomas Sotinel, Le Monde
A Europa nunca existiu
Quando «O Tempo do Lobo» começa, um casal e os seus dois filhos chegam de carro a uma casa, algures no meio de uma floresta. É, certamente, o início de umas férias ou de um fim-de-semana de repouso. Todos os sinais indicam que estamos perante uma família típica, entregue às suas rotinas. Mais do que isso: a própria convenção cinematográfica faz-nos prever a história de uma crise familiar num cenário mais ou menos autónomo. Mas, ao fim de dois minutos, percebemos que nada sabemos do que acontece ou vai acontecer: dentro da casa está um casal desconhecido, com uma criança; há um tiro, alguém morre.
O cinema do austríaco Michael Haneke é feito destas situações em que, subitamente, todas as coordenadas, emocionais ou geográficas, podem vacilar. Era assim em «A Pianista» (2001), filme sobre o mapa cruel do desejo sexual. Era assim também em «Código Desconhecido» (2000), porventura o seu filme mais mal amado e também aquele que mais nos pode ajudar a percorrer «O Tempo do Lobo». Isto porque «Código Desconhecido» se organizava como uma aventura de angústia e perdição no nosso mundo saturado de informação: quanto mais as personagens (jornalistas) recolhiam dados sobre o que estava a acontecer, mais se sentiam enredadas num labirinto que, tragicamente, as podia conduzir à perda da sua própria identidade. No caso de «O Tempo do Lobo», aquilo que parece começar como a crónica de um crime brutal, rapidamente se transforma numa odisseia sem centro e sem destino.
Isto porque a morte inicial está longe de servir para desencadear uma clássica situação de investigação e inquérito. Ao fugirem, os sobreviventes descobrem-se num universo que, de facto, deixou de obedecer às suas coordenadas clássicas: as comunicações não funcionam, os meios de transporte estão desorganizados, os abastecimentos escasseiam, enfim, os cidadãos vagueiam pelos campos, sem destino certo, entregues às mais cruas tarefas de sobrevivência.
Até certo ponto, apetece citar alguns exercícios clássicos de ficção científica (quer literária quer cinematográfica) em que se vive uma situação pós-apocalíptica, com as personagens perdidas na indefinição e na instabilidade da própria paisagem. Em todo o caso, há uma diferença que importa sublinhar. É que nos modelos tradicionais da ficção científica, as personagens vão adquirindo um estatuto heróico: a sua resistência às condições adversas é também o princípio da sua excepcionalidade dramática. Ora, em «O Tempo do Lobo», dir-se-ia que quanto mais se acumulam as adversidades, mais as personagens tendem para um anonimato que as funde (e confunde) com o concreto das ameaças e a abstracção do cenário. De tal modo assim é que Haneke tem no seu filme nomes tão conhecidos como Isabelle Huppert, Béatrice Dalle ou Patrice Chéreau, sem que nenhum deles adquira qualquer protagonismo.
Tudo se passa numa atmosfera de perturbante ambivalência. Por um lado, «O Tempo do Lobo» acontece num espaço vago, num tempo indeterminado; por outro lado, das paisagens às personagens, passando pelas línguas faladas, tudo nos remete para uma certeza: estamos na Europa. Não é, no entanto, nem a Europa mítica das lendas, nem a Europa burocrática dos políticos: é uma espécie de resto simbólico, demasiado frágil para adquirir consistência dramática, demasiado vago para garantir a existência de laços seguros entre as personagens.
Haneke consegue, assim, uma proeza rara no cinema europeu (em boa verdade, no cinema contemporâneo): a de formular a questão da existência individual para além de todas as "garantias" diariamente marteladas pelo mundo mediático em que vivemos. No limite, como na espantosa cena da criança que se despe para se imolar pelo fogo, só nos resta a certeza de algumas verdades primordiais: o corpo, o fogo, a morte... «O Tempo do Lobo» é um prodigioso exercício de política narrativa, inclassificável e radical.
João Lopes, cinema 2000
ENTREVISTA AO REALIZADOR
A que se refere o título do filme?
Tirei-o do “Codex Regius”, o mais antigo poema alemão e mais precisamente do “Song of the Sightseer”, que descreve um tempo antes do “Ragnarök”, o fim do mundo.
O que é perturbador em O Tempo do Lobo é que o material narrativo pertence à ficção científica, mas o filme não se parece nada com esse género. Não há nenhuma semelhança com a “fantasia”, com algo que seja futurista. O que permanece é o “aqui e agora”, o presente puro.
Penso que na nossa sociedade, todas as pessoas já pensaram, em determinada altura, numa grande catástrofe. Nem é preciso ver televisão todos os dias para isso. Fosse uma guerra, um acto terrorista, uma catástrofe ecológica ou cósmica não mudaria muito. Isso não é importante. A única questão é: “Qual será a minha reacção e qual a do meu vizinho?”. O que faremos para enfrentar uma mudança tão grande? O quão rijo é o verniz da nossa sociedade? Até que ponto os nossos valores aguentam? Como nos vamos comportar com os outros num caso destes? Foi isso que quis explorar em O TEMPO DO LOBO. Quis fazer um filme limpo dos aspectos espectaculares do género “filme catástrofe”.
Esta situação existencial extrema é um motivo recorrente nos seus filmes. Sempre tratou essas situações como se fossem situações de todos os dias, evidentes, banais.
Quando as situações extremas são mostradas no cinema podemos cair facilmente no exagero. Este exagero pode torná-las implausíveis.
É isso que se deve evitar. Por isso o realizador tem de pensar nos meios narrativos que usa para basear a plausibilidade da história. Isto significa que tudo o que estiver para além da experiência dos espectadores incita a uma consideração da história como simples entretenimento e afasta-os do filme. A melhor e mais segura forma de evitar isto é a precisão.
O TEMPO DO LOBO NÃO SE PASSA ESPECIFICAMENTE EM NENHUM LUGAR OU TEMPO. É UM FILME SOBRE A EUROPA? OU ATÉ ISTO QUIS QUE FOSSE INCERTO?
Nunca pensei nisso. Quis que a situação acontecesse num ambiente familiar – meu e dos espectadores – para aumentar o potencial da identificação. Concordo que esta situação modelo fosse diferente noutra situação social ou climática. Como todos os meus filmes, a história fala do nosso mundo hiper-industrializado, da sociedade do supérfluo, e das pessoas que conseguem viver confortavelmente nas conveniências desse mundo. Só posso falar sobre estas coisas porque fazem parte do domínio da minha experiência. Tudo o que vai além deste contexto é do domínio do exotismo.
UMA QUESTÃO MUITO SIMPLES: O SEU FILME TEM PREOCUPAÇÕES SOCIAIS?
Não tenho uma mensagem para enviar, nem uma fórmula para resolver o problema apresentado. O filme não é didáctico. É uma tentativa para transpor coisas que observei e jogar com as possibilidades dramáticas da questão colocada. Se vê uma preocupação social como uma tentativa de perceber o outro como alguém que deve ser levado a sério, isso não me incomoda. Mas espero que as situações representadas sejam complexas o suficiente para não serem reduzidas a clichés.
entrevista por Stefan Grissemann
Título Original: Le Temps du Loup
Realização: Michael Haneke
Argumento: Michael Haneke
Interpretação: Isabelle Huppert, Maurice Benichou, Lucas Biscombe, Patrice Chéreau,
Béatrice Dalle, Anaïs Demoustier, Daniel Duval, Maryline Even, Olivier Gourmet
Direcção de Fotografia: Jürgen Jürges
Montagem: Monika Willi, Nadine Muse
Origem: França/Áustria/Alemanha
Ano de Estreia: 2003
Duração: 109’
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