I AM NOT YOUR NEGRO | 28 MAR - 4ª FEIRA | IPDJ | 21H30


I AM NOT YOUR NEGRO - NÃO SOU O TEU NEGRO
Raoul Peck
França/EUA, 2016,  93', M/12



FICHA TÉCNICA
Realização: Raoul Peck
escrito por James Baldwin
com a voz de Samuel L. Jackson
Montagem: Alexandra Strauss
Imagem: Henry Adebonojo, Bill Ross, Turner Ross
Animado por Michel Blusten
Música: Alexei Aigui
Origem: França/EUA
Ano: 2016
Duração: 93' 





FESTIVAIS
Festival de Berlim - Berlinale Special
Festival de Toronto



CRÍTICA

O grande choque, conta James Baldwin no texto lido em off por Samuel L. Jackson, aconteceu no momento em que percebeu que, apesar de se identificar com o herói Gary Cooper, o herói não se identificava com ele – e que portanto ele, “índio”, negro, não-branco, era o inimigo. A virtude maior do filme de Raoul Peck sobre o legado de Baldwin é saber pegar nas questões de imagem e de representação (dos negros americanos) e dar-lhes um sentido, material e documental, que às vezes é um pouco mais do que meramente ilustrativo.
A representação cultural precede a representação política, e as palavras combativas de Baldwin voltam insistentemente a este ponto – contar a história dos negros americanos, antes e depois do movimento pelos direitos cívicos, é contar a história de um segmento da população que, durante décadas (ou séculos), não teve direito, pelo menos a uma escala massificada, à auto-representação. Viveu com imagens criadas por outros, retratos de “criaturas que existem apenas na imaginação dos brancos” (dixit Baldwin), sem um espelho (o outro choque, diz Baldwin, é por volta dos cinco anos, quando “o negro percebe que não é branco”). Se o diálogo é ainda impossível, ou pelo menos muito difícil, é porque o “negro” é uma “invenção do branco”, ouvimos ainda nas palavras de Baldwin, possuidoras de um eco singularmente godardiano (quando o franco-suíço fala, por exemplo, da Palestina como uma “projecção” de Israel).
Não espanta, pois, que para além das fortíssimas e complexas palavras de Baldwin (que o filme, na locução sóbria de Jackson, restitui sem pedagogia nem floreados), boa parte de Eu Não Sou o teu Negro repouse em imagens – imagens do cinema clássico americano (“reflexo de um mundo racista” mais do que entidade especialmente racista, como Baldwin frisa), imagens da publicidade, retratos falsos, fantasiosos, ofensivos.
E depois, o seu contracampo, os mártires (os três amigos que estão na base do texto de Baldwin: Medgar Evers, Martin Luther King e Malcolm X, todos assassinados), os humilhados, os linchados, os cadáveres que são cadáveres por nenhuma razão para além de serem negros. Peck encontra as imagens que sustentam o texto de Baldwin, ou com que o texto de Baldwin dialoga, e por vezes, somando dois mais dois, vai um passo em frente; como naquele momento, perto do final, em que o texto de Baldwin comenta que o mundo representado pelo rosto de Doris Day nunca foi realmente confrontado com o mundo representado pelo rosto de Ray Charles, e Peck faz suceder a um plano do rosto choroso de Doris Day, como um contracampo imaginário, o documento fotográfico de um negro sumariamente enforcado num tronco de árvore.
Amplamente documentado, e com muitas imagens de intervenções públicas e televisivas do próprio Baldwin, montado com dinamismo, Eu Não Sou o teu Negro é uma peça importante para se perceber um pouco melhor o que raio se passa, o que raio ainda se passa, na América destes dias.
Luís Miguel Oliveira, Público






ENTREVISTA AO REALIZADOR
Conversámos com Raoul Peck no último Festival de Berlim onde ele estreou dois filmes, a ficção "O Jovem Karl Marx" e este documentário mais valioso, "Eu Não Sou o Teu Negro'.
Peck demonstra que os pensamentos e as causas de Baldwin [1924-1987], escritor mal conhecido e pouco traduzido na Europa, continuam a ecoar no presente. E no cinema.
Em que momento da sua vida tomou contacto com a obra — e o legado político — de James Baldwin?
Nem sei responder, li-o muito cedo, desde que comecei a ganhar uma consciência política. Usei-o como um guia, como um filósofo, como um escritor de cabeceira a que recorremos em tempos de confusão. Baldwin 'não se lê': vivemos com ele. A sua escrita é tão cheia de realidade, tão rica em metáforas, que não se esgota. Eu estava bem ciente do papel que ele representou na minha vida. Por isso mesmo, quando há dez anos decidi começar a fazer este filme, a proposta já não passava pela minha descoberta. As questões de trabalho que coloquei foram outras: como é que eu consigo levar os seus pensamentos a uma grande audiência? Como posso ter a certeza de que Baldwin não será esquecido? Algumas vez as suas palavras serão estudadas nos liceus e universidades?
O filme recorre a muito material de arquivo mas também a imagens novas que filmou da atualidade. Porquê?
Essencialmente, nada mudou é esse o motivo. Acho que nas últimas duas décadas nos habituámos a ser muito superficiais sobre o que se passa no mundo. Já não olhamos para a grande História com H maiúsculo. Passamos de anedota a anedota e as nossas vidas são feitas assim, das breaking news da CNN. Perdemos o foco. Já não discernimos os episódios corriqueiros da vida das coisas importantes. O Twitter e o Facebook também estão a alimentar a máquina, o que conta é isto [e estala os dedos], o momento. Baldwin trabalha sobre outras coisas. Projeta-nos em problemáticas fundamentais, obriga-nos a pensar nelas. Onde estamos nós? Algo de fundamental para a sociedade aconteceu hoje? Quantos negros estão nas prisões americanas e porquê? Quantas famílias negras crescem sem pai ou mãe? Porque é que os negros não têm o mesmo direito à habitação? Etc. , etc... Nenhuma televisão fala disto. Baldwin falou.
Donald Trump é desde o mês passado [a entrevista foi gravada em feveleiro] Presidente dos Estados Unidos. Que comentário tem a fazer?
Trump faz parte de toda esta mitologia da inocência que tomou conta do país. Podes cometer os crimes de colarinho branco que quiseres e depois basta-te pedir desculpa: e és um homem novo. O Baldwin dizia que vivia num país em que a imaturidade se tornou uma virtude. Trump é o produto perfeito dessa virtude. É caricatural, tal como Clinton e tantos outros foram. Enfim, um bocadinho mais do que os outros... Ele compreendeu inteiramente o poder dessa caricatura. E usou-a em seu proveito, triunfando.
O cinema também contribuiu para essa "mitologia da inocência" a que se refere? É o que o seu filme insinua.
Quando conhecemos a América — e a Europa não lhe foi imune — sabemos que desde a infância fomos protegidos por figuras como o John Wayne, que nos habituámos a ver na tela. Os americanos têm este tipo de sentimentos bem inculcados no seu âmago. É como se eles não precisassem de crescer, porque o John Wayne está ali, a protegê-los do perigo. E esta é uma atitude infantil, claro. Uma negação da realidade. A realidade é Hollywood, a vida é bela e nós também somos heróis. Podemos construir uma vida inteira alicerçada em mentiras. Foi o que Hollywood fez à América, e depois ao resto do planeta.
No Haiti, costumava ver filmes de Hollywood?
Claro! "Tarzan"! E quando aos 8 anos fui com os meus pais ao Congo, fiquei assustado: a África não é nada disto, eles não andam todos contentes a dançar à roda do tambor com flechas na mão a darem-me as boas-vindas!
Ainda vê filmes americanos?
Vejo menos. Procuro filmes que estão fora do sistema e de Hollywood. Há gente importante a tentar fazer coisas importantes. Mas os clichés continuam. Estamos em Berlim e quando vemos um alemão no cinema americano ele continua a ser uma caricatura. Com os franceses, pior. Então imagine o que Hollywood fez com o terceiro mundo... Com os negros, com os latinos, os gays. ..
Mas há exemplos de filmes que lutara, contra isso e que você incorporou em “Eu Não sou o Teu Negro”. O “Adivinha Quem vem jantar”, do Stanley Kramer.
O filme do Stanley é de 1967, eu era um miúdo quando o vi e, claro, fiquei orgulhoso. Estava pela primeira vez a ver um homem negro, bonito, inteligente, que além de médico qualificado e com provas dadas andava a namorar uma miúda branca. E pela primeira vez — lembro-me tão bem disto — eu não tive medo do que podia acontecer à personagem. Os brancos respeitavam-no. Mas há outra coisa: é que, ao mesmo tempo Hollywood estava a colocar-me a fasquia do nível de homem (isto é, médico, bonito, etc.) que eu precisava de ser para ser aceite enquanto negro. Ou seja, também esse filme é um pau de dois bicos. Hollywood funciona assim. Há sempre um preço a pagar. O Baldwin estava constantemente a desconstruir casos destes. E criticou duramente os liberais americanos dos anos 60 e 70.
A representação dos negros no cinema americano é um tema da ordem do dia... [à data da entrevista, "Moonlight" não tinha ainda ganhado o Óscar de Melhor Filme do Ano].
Existe essa corrente de solidariedade pública, é certo, mas concretamente, o que está a ser feito? Óscares brancos ou menos brancos: para mim, essa é uma discussão superficial. Toda a gente sabe que o problema do cinema e da representação dos negros no cinema vem do poder da produção, de quem dá ou não luz verde para que um filme de grande audiência se faça. E quantos negros conseguem fazer esses filmes? Quantas mulheres realizadoras conseguem impor o seu ponto de vista àquele grupo de 5 ou 6 jovens executivos, brancos e impecavelmente vestidos que saíram das universidades de economia e gestão? O capitalismo e a social-democracia habituaram -se a saber aconchegar certos grupos minoritários sem destruírem a máquina que serve os seus interesses. Não me parece por isso que Hollywood possa mudar alguma coisa.
Você está nomeado para o Óscar de Melhor Documentário. O que vai dizer no palco se ganhar?
Acha que lhe vou dizer isso?
Pode falar do footage que usou no seu filme? O "Imitation of Life" [1934], do Stahl , é uma escolha óbvia, muito mais do que a de "King Kong".
Não concordo. Em "King Kong" eu sou o macaco selvagem que pode dar uma dentada na rapariga. Você nunca se viu na pele dele, mas eu vi. Eu estava lá. Eu ando a dizer que este filme me levou dez anos, mas na verdade levou-me mais de 30. Porque esses filmes fazem parte de mim. Quando eu brincava em criança aos cowboys e aos índios, queria ser o cowboy que recebia a pistola no Natal. Levei um bocado de tempo a perceber que, na verdade, eu era antes o índio. O negro, tal como o índio, é sempre o primeiro a morrer para a história possa continuar. E nós ainda não saímos dessa história. Dessa ideologia. Continuamos expostos.
Porque é que chamou ao seu filme 'Eu Não Sou o Teu Negro"?
É um título provocador que não pede licença para ser o que é. A prova de que este filme é meu. E é um statement que convida o espectador a assumir um compromisso.
Francisco Ferreira, Expresso