O UIVO: O poema de ALLEN GINSBERG em Tribunal. 2ªf, IPJ, 21h30.

Sócios 2€, Estudantes 3,5€, Restantes 4€


O uivo de Franco
Uivo é sobre um poeta e o seu grande poema. Em 1956, Allen Ginsberg, figura de proa da geração Beat, publicou Howl, um poema dividido em quatro partes que provocou escândalo. Esta é a história do poeta e do seu poema. Mas é também uma história sobre a arte que se senta no banco de réus.

A dupla de documentaristas Rob Epstein e Jeffrey Friedman dá-nos uma obra com uma estética híbrida: em jeito de documentário, vemos Ginsberg (James Franco) a ler o seu poema perante uma plateia, vemos Ginsberg a ser entrevistado já após o julgamento, temos o preto e branco a dar-nos o poeta antes do poema, temos o processo em tribunal (tremendamente eficaz) e, finalmente, contamos ainda com um trabalho de animação que vai surgindo a espaços.

Howl, o próprio poema, é uma gigantesca e seminal obra que a dupla de realizadores soube ir colocando estrategicamente ao longo do filme. O ritmo de Uivo é algo fracturado, fruto da dinâmica escolhida. É essa claramente uma das forças do filme mas é também aqui que encontramos um ou outro desequilíbrio mais visível. O trabalho de animação, por exemplo, surge aqui para traduzir em imagens algumas das ideias invocadas em Howl. Mas tratando-se de poesia, a verdade é que é bem mais interessante quando temos simplesmente James Franco em palco, imbuído na leitura – e há que dizê-lo com clareza: Franco não é apenas excelente no papel de Ginsberg; é um verdadeiro intérprete de um recital de poesia, dando com a sua voz e respiração a força e fluidez que Howl merecia.

Houve cuidado e originalidade na forma como Epstein e Friedman recuperaram Howl. Mas em tribunal, onde boa parte da acção decorre, temos ainda o debate curioso que de tempos a tempos invade os nossos dias: quais são os limites da arte, ou, mais concretamente, pode a arte ter tabus. A resposta foi-nos dada, mais uma vez, em 1957.

Este é um filme sobre um poema definidor de uma geração. Mas é também um filme sobre um poeta que foi perseguido não por ser homossexual, mas porque se recusou a ter tabus, porque recusou eufemismos. Porque foi incapaz de fazer arte com pudor. Uivo não é um filme excepcional como o poema a que dá corpo. Mas tem imensa vida lá dentro.
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Pedro Filipe Pina


Relendo as palavras de Ginsberg
Foi um momento marcante na história da cultura americana na década de 1950: a publicação do poema "Howl", de Allen Ginsberg, é agora tema central de um filme da dupla Rob Epstein/Jeffrey Friedman.

Quando o poema "Howl", de Allen Ginsberg, foi publicado em 1956, de imediato desencadeou reacções de protesto e indignação. Para os que assim reagiam, estava em jogo não apenas o subtexto homossexual, mas também o vernáculo e a própria legitimidade de usar as palavras daquele modo.

O filme "Howl / Uivo" possui a primeira e essencial virtude de se colar à singularidade das palavras e à forma de as dizer. Por alguma razão, o motor da sua construção é a própria leitura do poema, por Ginsberg, magnificamente refeita pela interpretação de James Franco: somos confrontados, assim, com a densidade, a sensualidade e o fascínio do acto de dizer.

Além do mais, através do julgamento público de Ginsberg, somos também envolvidos nas memórias contraditórias de um tempo americano em que a questão da liberdade de expressão ocupava o centro da vida social e dos combates políticos.

Podemos considerar que o filme nem sempre encontra o melhor equilíbrio entre os seus diversos materiais: a ficção propriamente dita, alguns fragmentos documentais e ainda uma muito discutida inserção de cenas em desenho animado. Em todo o caso, a sua força decorre também dessa pluralidade interior: não é possível evocar Ginsberg, bem como as convulsões da Beat Generation, sem conferir a devida atenção a todas essas diferenças e contrastes.
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João Lopes


"Uivo": monta-me histórias (inclui declarações do realizador)
Em “Uivo”, reconstituição da história do lendário poema beat de Allen Ginsberg, os documentaristas Rob Epstein e Jeffrey Friedman propõem um quebra-cabeças que aplica técnicas de documentário a uma narrativa convencional.

Primeiro aviso à navegação: quase tudo o que se passa neste filme é verídico e baseia-se em transcrições, citações, entrevistas e arquivos. Mas "Uivo" não é um documentário.

Segundo aviso à navegação: não é possível traduzir poesia para prosa, como diz alguém a certa altura no filme - ou, no caso, para cinema. É por isso também que "Uivo", esta semana nas salas, não é uma adaptação do poema homónimo escrito em 1955 por Allen Ginsberg e que é, a par de "Pela Estrada Fora", de Jack Kerouac, um dos textos fundadores da "Beat Generation" americana. Nem é uma biografia filmada do seu autor, que surge no filme sob os traços do actor James Franco.

"Nunca sequer considerámos essa ideia," diz o realizador Rob Epstein ao telefone de São Francisco. "Daria certamente um grande filme para quem o quiser fazer, mas a nossa missão foi sempre e apenas o poema: o que levou Allen a escrevê-lo, o que aconteceu depois da sua publicação."

Eis, então, "Uivo": Allen Ginsberg faz a primeira leitura pública do poema na Six Gallery de São Francisco em Outubro de 1955, dá uma longa entrevista (fictícia), acompanha o julgamento por obscenidade de 1957 que opôs o Estado americano a Lawrence Ferlinghetti, editor do poema através da City Lights.

Tudo isto aconteceu na realidade, tudo isto foi reconstituído para efeitos do filme devido à ausência completa de imagens de arquivo de época. "Não havia nada daquilo com que costumamos trabalhar quando criamos um documentário histórico," diz Epstein. "E estávamos interessados em forçar os limites da forma, em fazer algo de mais experimental usando as técnicas do documentário para contar uma narrativa. Não partimos com a ideia de fazer um filme experimental, mas sentimos uma certa responsabilidade de criar algo que fosse tão diferente e audacioso como o poema o foi no seu tempo."

Daí que o que começou como uma proposta dos herdeiros de Ginsberg para um documentário celebrando o 50.º aniversário da criação de "Uivo" se tenha tornado no primeiro "não-documentário" (à falta de melhor palavra) de Epstein e Jeffrey Friedman. Apesar de 25 anos de trabalho em comum, de dois Óscares de Melhor Documentário ("Os Tempos de Harvey Milk", 1985, assinado só por Epstein, e "Common Threads - Stories from the Quilt", 1989) e de uma reputação de cronistas das questões LGBT, os dois realizadores não se tinham ainda abalançado a uma longa-metragem narrativa. E a experiência como documentaristas acabou por vir a jeito no trabalho de estruturação e montagem da história que queriam contar. "A maior parte dos documentários é criada na montagem, e nós estamos muito habituados a montar histórias, porque os filmes que fizemos até agora contavam histórias individuais que convergiam numa história colectiva. Embora ‘Uivo' siga de muito perto o guião que escrevemos, foi um filme muito construído na montagem."


O que complicou o trabalho da dupla foi a multiplicidade de referências estilísticas e cinéfilas que "Uivo" arvora deliberadamente. Para as sequências de tribunal que recriam o julgamento, com um elenco de luxo que inclui Jon Hamm (da série "Mad Men"), David Strathairn, Jeff Daniels ou Bob Balaban, os realizadores olharam "para filmes clássicos de Hollywood onde o julgamento era o centro dramático, como ‘Na Sombra e no Silêncio'." Para a reconstituição a preto e branco da primeira leitura pública do poema na Six Gallery, estudaram "muitas referências ‘beat'" e deixaram-se "inspirar pelo trabalho do fotógrafo Robert Frank"; já a entrevista a Ginsberg (uma construção a partir de várias citações e entrevistas do poeta) deve muito à cineasta independente americana dos anos 1950 Shirley Clarke e ao seu filme "Portrait of Jason".

No entanto, falta abordar aquele que é o elemento mais controverso do filme: a ilustração de "Uivo" em animação criada pelo grafista Eric Drooker, que Epstein e Friedman vão intercalando com a acção e que definem nas notas de imprensa como uma tentativa de criar "uma versão ‘beat' da ‘Fantasia' de Walt Disney" ao som de música original de Carter Burwell. Ao telefone, Epstein confessa que sabia que a animação ia ser o elemento menos unânime - "desde que levámos o projecto ao ‘workshop' de argumento no festival de Sundance que sabíamos que muita gente ia objectar" -, mas justifica a sua inclusão. "O poema aparecia ao longo do filme de vários modos diferentes: havia a leitura pública, a desconstrução que teve lugar no julgamento, a própria análise do Allen na entrevista. Quisemos ter a par dessas uma experiência puramente visual, cinematográfica. E sentimos que havia uma relação orgânica com o Allen ao chamar o Eric para criar a animação: eles tinham trabalhado juntos num livro chamado ‘Illuminated Poems' e sabíamos que o Allen queria que o Eric fizesse qualquer coisa com ‘Uivo'. Era como se fosse um sinal."

"Uivo", no entanto, não é o filme que Allen Ginsberg possa ter pensado , mas o filme que Rob Epstein e Jeffrey Friedman queriam fazer. "Sabíamos que a certa altura íamos ter de seguir o nosso instinto enquanto artistas. Sempre soubemos que ia ser um filme muito cerebral, mas o realmente importante para nós era chegar ao núcleo emocional do poema. Fazer com que a voz do Allen no filme fosse a de um artista a descobrir-se a si próprio."
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Jorge Mourinha, Público




Realização e Argumento: Rob Epstein & Jeffrey Friedman
Fotografia: Edward Lachman, ASC
Montagem: Jake Pushinsky
Música: Carter Burwell
Interpretação: James Franco, Todd Rotondi, Jon Prescott, Aaron Tveit, David Strathairn, Jon Hamm,
Andrew Rogers, Bob Balaban, Mary-Louise Parker, Heather Klar, Kadance Frank,
Treat Williams, Joe Toronto, Johary Ramos, Nancy Spence, Alesandro Nivola, Jeff Daniels, Allen Ginsberg

Origem: EUA
Ano: 2010
Duração: 90’
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LIVROS EM CADEIA inicia-se na próxima 6ªf! 18h, Sede, Entrada Livre

Com o financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian, de Outubro de 2011 a Setembro de 2012, uma vez por mês, um convidado apresenta um livro da nossa colecção. Que, como todos, está disponível para requisição – por qualquer um.

Participe. Quem sabe, será o primeiro a requisitá-lo… iniciando uma cadeia que desejamos imensa!


6ªf, 28 de Outubro, 18h, na Sede. Entrada livre.


Sobre a palestrante:

GRAÇA LOBO – “Crescer com Cinema”
Vice-Presidente do Cineclube de Faro. Professora e actual técnica da Direcção Regional de Educação, onde coordena o Programa de Ensino de Cinema em Escolas do Algarve (Programa JCE/Juventude-Cinema-Escola).


Sobre o livro:

«Quando o seu filho Jesse tinha 15 anos, David Gilmour tomou uma decisão que muitos pais e educadores considerariam radical: deixou o filho desistir da escola. Esta decisão, contudo, não teve nada de simples. Ao ver o filho debater-se com a falta de motivação e as dificuldades em estudar, concentrar-se e ter notas positivas, Gilmour percebeu que talvez a escola não fosse o ambiente ideal de aprendizagem para o filho – e que as probabilidades de que ele não acabasse o liceu eram elevadas. Assim, permitiu que deixasse a escola; em contrapartida, exigiu que o filho adquirisse com o pai (um notável crítico de cinema) alguma forma de educação alternativa para a vida, o amor e o crescimento pessoal. A condição para o filho deixar a escola era passar três noites por semana a ver um filme com o pai – aquilo a que chamaram O Clube de Cinema.
O que se segue é um percurso de aprendizagem e formação invulgar, rico e comovente. Na companhia do pai – e através de filmes que vão desde Os 400 Golpes, de François Truffaut, a Instinto Fatal, de Paul Verhoeven, de Crimes e Escapadelas, de Woody Allen, a Há Lodo no Cais, de Elia Kazan – Jesse aprende poderosas lições acerca dos valores humanos e do sentido da vida. E David aprende aquilo de que tantos pais se apercebem demasiado tarde: que cada momento passado com o filho é uma oportunidade de crescimento para ambos.»


O livro a apresentar deu origem a um Ciclo com 5 filmes nele ‘falados’, durante o mês de Novembro, na nossa sede.

Às 4ªf, 21h30, entrada livre.

São eles:

DIA 2 - CHUNGKING EXPRESS, Wong Kar Wai, Hong Kong, 1994, 98’

DIA 9 - SOPRO NO CORAÇÃO, Louis Malle, França/Itália/Alemanha, 1971, 118’

DIA 16 - OS CAVALEIROS DO ASFALTO, Martin Scorsese, EUA, 1973, 112’

DIA 23 - CRIMES E ESCAPADELAS, Woody Allen, EUA, 1989, 104’

DIA 30 - ZONA DE PERIGO, David Cronenberg, EUA, 1983, 103’



APOIO

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Vertiginoso, explosivo, globetrotting e absolutamente obrigatório. CARLOS, de Olivier Assayas, é 2ªf, 21h30, IPJ.

Sócios 2€. Estudantes 3,5€, Restantes 4€

A partir da história verídica de Carlos, "O Chacal", o francês Olivier Assayas assina um épico de câmara, nervoso e urgente, sobre uma década ainda hoje mal compreendida.

Se formos a ver bem as coisas, Carlos, "o Chacal", é capaz de ter sido um dos terroristas mais desastrados de sempre. Sim, matou gente e operação operações espectaculares. Mas fê-lo em nome não de uma causa, não de uma conta bancária, mas sim em nome da fama e do reconhecimento. Carlos seria, então, o primeiro "reality-terrorista" da era moderna, uma "premonição" da ideia de Don de Lillo sobre o terrorismo como arte moderna, um narciso que nunca deixou para trás a sua pose de pequeno burguês fascinado com a sensualidade da violência.

É assim que o francês Olivier Assayas vê Carlos, no seu épico de câmara que, para lá do retrato de Carlos como um playboy do crime, equivalente marxista e mercenário dos mafiosos românticos de Scorsese, assina um diagnóstico certeiro das convulsões políticas da Europa dos anos 1970 como resultado de uma insatisfação social canalizada para ideologias contestárias em modo "vamos brincar aos revolucionários". Assayas pinta o meio revolucionário como um "jet-set" solarizado, capitalismo substituído pela retórica anti-imperialista, mas em ambos os casos fascinados pelas posturas arquetípicas do cinema de acção. E, para melhor o fazer, o mais internacional dos cineastas franceses contemporâneos efectua uma síntese do seu cinema anterior, cruzando o fascínio pelo desenraizamento cosmopolita com a sua atenção às vibrações internas dessas personagens desenraizadas. O que daí resulta é um fresco nervoso e urgente, em fuga para a frente, como aliás é exigido pela "fúria de viver" da sua personagem com tanto de volúvel como de calculista, soberbamente habitada pelo venezuelano Edgar Ramírez.

O mais espantoso destas quase três horas é que passam a voar, arrastando o espectador numa viagem surreal por uma década de história mundial ainda hoje mal compreendida; o que é mais admirável ainda é que Assayas tenha conseguido construir um filme compacto e imparável a partir de quase seis horas de televisão (repartidas por três episódios de cem minutos cada), sem trair a história que quis contar nem criar um simples "compacto" televisivo. Bem pelo contrário: "Carlos" é um filme que só "por acaso" foi feito para televisão, e que tem mais a ver com a "nova" televisão das séries americanos como "The Wire" do que com o marasmo em que ainda hoje se pensa a TV em Portugal. É cinema, por onde se quiser vê-lo.
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Jorge Mourinha, Ípsilon


Ilich Ramírez Sánchez, mais conhecido por Carlos, é um combatente revolucionário venezuelano que, nos anos 70/80 levou a cabo alguns espetaculares atos terroristas na Europa, o mais conhecido dos quais o sequestro dos ministros da OPEP reunidos em Viena, em 1975. Com a queda do Muro de Berlim, a implosão da União Soviética e o consequente fim da Guerra Fria, a atividade de Carlos esfuma-se, ao mesmo tempo que, sempre perseguido pelos serviços secretos do Ocidente, tenta refúgio em vários países árabes. Capturado em Cartum, no Sudão, em 1994, de onde é raptado pelos franceses, que o levam para Paris, Carlos acaba julgado em 1997 e condenado a prisão perpétua, pena que, atualmente, cumpre.

Estes são os factos que perturbaram o mundo durante muitos anos, sumarizados em voo rápido para efeitos de contexto. Devem parecer arqueológicos, a esta distância - e, sobretudo, para quem não os viveu e, entretanto, se habituou a tomar Osama bin Laden como emblema do terrorismo do século XXI. Evidentemente, a realidade política na Europa é, hoje, muito diversa da dos anos 70/80. Mas não é possível compreendermo-nos sem o que então aconteceu.

O filme de Olivier Assayas é uma soberana oportunidade de nos aproximarmos dessa compreensão. Antes de mais, o filme dá-nos a ver um momento traumático no seio da esquerda eu¬ropeia, quando muita gente, descrente dos velhos partidos comunistas, se radicalizou numa luta revolucionária armada que depressa se confundiu com terrorismo. Carlos é um produto desse caldo cultural. Estudou em Londres e em Moscovo, tornou-se poliglota e ainda não tinha 25 anos quando se foi oferecer ao líder do braço armado da Frente Popular de Libertação da Palestina. É a soldo dessa organização que leva a cabo os primeiros atentados, incluindo o assalto à reunião da OPEP em Viena. Move-se em território europeu e na sua rede de contactos e pontos de apoio vão estar vários movimentos esquerdistas do velho continente, com destaque para a Alemanha Federal. O filme dá-nos a ver essa teia e até o recorte romântico com que, a partir de certa altura, Carlos se aureola - a boina à Guevara, o olhar sedutor -, como se ele fosse um combatente pela liberdade. Assayas ousa mesmo chegar à erotização da violência (arrepiante - e não apenas no sentido medonho da palavra - a fetichização sexual das armas) e a criar efeitos de suspense que invocam, à boa maneira hitchcockiana, uma empatia do público com o protagonista. Teme¬mos por ele, por exemplo, durante a operação OPEP ou quando os polícias franceses entram pelo apartamento em Paris, desejamos, no íntimo, que ele se safe (até porque a ambiência é cordial, fraterna, musical) - mas eis que a violência rebenta e ficamos paralisados com a ferocidade. Magnífico resultado de um trabalho fílmico onde se quer perceber como foi possível (no fundo, como é que gente decente pô¬de andar por tais caminhos), ao mesmo tempo que não se vira a cara ao horror inteiro.

"Carlos" é um filme épico com um protagonista, mas sem herói. Matiza-se a personagem principal com uma gama de cambiantes que a excelente interpretação de Édgar Ramírez e a extensa duração tornam possíveis (e estamos em presença de uma versão curta, esperemos poder ver em Portugal a versão integral de mais de cinco horas!). É um filme onde a política internacional aparece como uma coisa viscosa, despida de dignidade. É uma tragédia onde um homem sem escrúpulos é conduzido por vários poderes em presença que jogam com ele (e com quem ele joga) num eixo que vai de Tripoli a Beirute, a Damasco, a Bagdade, a Moscovo e a Berlim. Um homem que, um dia, se apaga, quando os franceses lhe deitam a mão - e já estava reduzido a has been. Daí que o desfecho do filme, brutalmente seco e abrupto, seja como que uma pedra sobre o assunto e a personagem. Como quem diz que aquilo acabou e acabou mesmo. Com um suspiro de alívio.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso


Nasceu como mini-série, chega a Portugal como filme. O verdadeiro Carlos diz que a obra lhe mancha a reputação.

De hábitos nocturnos, solitário e fã de carcaças de animais. Falamos de chacal, o bicho de quatro patas. Já chacal, a pessoa, é designada como alguém que explora os desgraçados, garantem os dicionários. O terceiro chacal é Ilich Ramírez Sánchez, o terrorista venezuelano, baptizado de "Carlos, o Chacal", graças ao jornal inglês "The Guardian". Em 1975, depois de Carlos ter assassinado dois detectives franceses e um informador em Paris, encontraram um saco que pertencia ao terrorista na casa do amigo da ex-namorada do terrorista. Ainda connosco? Com medo da polícia, Barry Woodhams, o tal amigo, telefonou para o jornalista do "The Guardian" que revistou o saco e viu o livro "O dia do Chacal", de Frederick Forsyth numa prateleira ali por perto. Concluiu logo que Carlos o tinha lido. E assim nasceu "Carlos, o Chacal".

Nesta altura, Ilich Ramírez Sánchez já era conhecido mas demoraria mais de 20 anos até ser preso. O mercenário teve como pai um marxista convicto que baptizou os filhos de Vladimir, Ilich e Lenine, ou seja, o nome completo de Lenine. De convicções fortes, Ilich juntou-se à juventude comunista e mais tarde, com 24 anos, ingressou na Frente Popular para a Libertação da Palestina. Nesta época já tinha deixado Caracas e vivia em Londres onde fez a primeira vítima, ao assassinar o empresário Joseph Shieff, presidente da Marks & Spencer e vice-presidente da Federação Sionista do Reino Unido e Irlanda.

Chacal torna-se famoso mundialmente aos 26 anos ao raptar 11 - atenção não foram dois nem três - foram 11 ministros dos países membros da OPEP que estavam reunidos em Viena. Estávamos em 1975 e depois deste feito, conseguiu escapar. Foi o início da ofensiva. Bombas em farmácias, atentados, sequestros de aviões passaram a ser o seu dia-a-dia. Na década de 70 e 80 era o criminoso mais procurado.

"Carlos", o filme Olivier Assayas, realizador de "Paris, je t''aime", decidiu fazer um retrato da vida do terrorista. Criada como uma minissérie para a televisão francesa, "Carlos" tem a duração de cinco horas, mas a Portugal chega a versão com 2h45. O protagonista Édgar Ramírez, que conquistou rasgados elogios da crítica, até recebeu uma carta do verdadeiro Carlos, a cumprir as três penas de prisão perpétua em França. Ao contrário dos críticos, o revolucionário não gostou do filme. Carlos disse à AFP que o filme tem muitas falsificações e que lhe vai manchar a reputação. Hugo Chávez, presidente da Venezuela, ainda não falou sobre o filme, mas nunca escondeu a sua admiração por Carlos ao compará-lo a Che Guevara. O realizador Olivier Assayas compreende explica o fascínio por este homem. "Na década de 70, eles eram militantes, faziam aquilo porque acreditavam que depois da revolução o mundo seria melhor. Agora, a al-Qaeda usa miúdos alimentados à base de ideias absurdas e míticas de religião e com promessas de um paraíso depois da morte. Eles não são soldados, são mártires. Algo que Carlos nunca consideraria", disse ao "The Guardian".
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Vanda Marques, Jornal I



Aconselha-se a versão dita "televisiva" de "Carlos" [JÁ DISPONÍVEL EM DVD], onde a sensação de algo em movimento, de marcha do Tempo e da História, é mais física e inexorável. É esse o tema de "Carlos", na verdade - na versão cinematográfica o condensado corre contra o tempo e por isso corre menos nele o tempo. E é aí que "Dreams never end", canção dos New Order, entra: música de perda, de melancolia. Ouvimo-la em duas sequências, à primeira vista excêntricas, que pontuam este puzzle sobre o terrorismo das últimas décadas do século XX: o corpo de Edgar Ramírez nu, acariciando-se, ao espelho, o canto de galo e o canto do cisne do terrorista.

É que "Carlos" é também um filme sobre a(s) estratégia(s) de sedução de um homem, sobre a sensualidade como arma para chegar ao topo. É um filme sobre um corpo que se gasta nesse excesso, não deixando de se exibir na orgia (momento Robert deNiro para Édgar, que teve de engordar para a segunda parte do filme). E o que é ainda notável? A forma como Olivier Assayas utiliza a base da "co-produção" internacional em seu favor - actores de diferentes nacionalidades interpretam personagens dessas nacionalidades, descartando-se, para os diálogos, o inglês da convenção -, fazendo assim da forma o espírito do filme. E a própria matéria sensual de "Carlos".
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Vasco Câmara, Ípsilon


ENTREVISTA AO REALIZADOR

Qual é a origem deste filme, que é quase um folhetim?
Nasceu tudo da ideia de um produtor do Canal+. O projeto não me interessou logo: parecia-me muito transversal e estava demasiado centrado na prisão de Carlos. Ora, eu acho que a história dele só faz sentido se estiver completa, com um princípio, um meio e um fim. Comecei a imaginar um filme e quando meto de facto o nariz no assunto dou-me conta que era impossível fechar aquela história num telefilme de 90 minutos. Peço um segundo filme ao Canal+, eles aceitam.
Aprofundo o trabalho, 'estico a corda': peço um terceiro filme. Eles voltam a aceitar. Gosto da estética do romance-folhetim, até fiz uma tese de mestrado sobre o tema, mas confesso que essa ideia, que tem uma 'boneca russa' lá dentro, nunca me veio à cabeça para este filme. O que me interessava eram os factos reais e a possibilidade de trabalhar com uma narrativa frontal. O argumento veio de um ponto de vista jornalístico. Ou seja, quando eu refletia sobre o filme, não inventava cenas, encontrava-as. Em fait-divers.

Sentiu-se a fazer cinema na TV?
Acho que a definição é justa, sim. A primeira regra que me impus foi criar um 'cordão sanitário' entre TV e cinema. Isto passou por dizer 'não' a quase tudo o que vinha do Canal+. Ou seja, os técnicos do filme são os meus colaboradores habituais. Quando as filmagens começaram dei-me conta que "Carlos" tinha mil desenvolvimentos possíveis. A máquina já não podia voltar para trás. Era preciso pensar num filme de 5 horas e meia, filmado em scope, em 35mm. E assim foi. "Carlos" foi produzido com um orçamento muito apertado para as suas ambições [18 milhões de eu-ros], tendo em conta a amplitude do projeto. Sem uma lógica de produção de cinema independente, jamais teria tido êxito. Uma série de TV normal teria custado o dobro. No cinema industrial, o quíntuplo.

A experiência não se repetirá...
Porque "Carlos" é um 'filme impossível’. É um protótipo sem nenhum... como dizer... sem 'valor de uso', porque não se reproduz. Vem de um gesto de bricolage que é contraproducente à lógica de fabricação da TV.


Carlos" devolve-nos o mito do terrorista ou, pelo contrário, põe a nu a sua figura através de uma persona¬gem de ficção?
O mito de Chacal não me interessava. É muito mais produtivo pensar de outra forma: como é que esse mito se construiu a partir da história daquele homem? A existência de Carlos é feita de aventuras, excessos, atos de loucura e de destruição e era preciso mostrar dele todas as suas facetas, sem medo. E se no fim do filme ficamos com uma espécie de natureza mítica residual de Carlos é porque essa natureza nasceu de uma acumulação de factos, não de uma invenção mediática. Se eu tivesse voto na matéria, o filme não se chamava "Carlos". Chamava-se "Ilich Ramírez Sánchez".

Compreendeu a militância de Carlos com este filme?
Não. O seu engagement é, no mínimo, opaco. Aos vinte e poucos anos ele está nas colinas da Jordânia, de metralhadora na mão no movimento palestiniano. Paixão pela revolução? Ligação ao KGB? A questão é insolúvel e o filme não lhe responde. Filmei por isso um jovem militante do Terceiro Mundo com as convicções de esquerda da sua geração e da sua época e que se bate no terreno. Creio que Carlos não é nem nunca foi alguém com uma consciência política vasta. Ele executa operações, só isso. Excluído por Wadie Haddad da Frente Popular para a Libertação da Palestina depois do fracasso da operação em Viena, excluído dessa causa, restou-lhe tomar-se um mercenário de países autoritários, um agente secreto cada vez mais cercado depois do colapso do Bloco de Leste.

Carlos viu o filme?
Essa história é longa... Bom, tenho que dizer que não sei ao certo em que estado Carlos está hoje. Preso há 17 anos, receio que viva numa espécie de realidade paralela. Carlos esteve ativamente desconfiado do projeto desde o início. Convenceu-se que este filme lhe seria hostil. Leu mais tarde o argumento. Disse numa entrevista que havia erros pontuais: nunca fumou cigarros, por exemplo, só charutos. Coisas da ordem do detalhe. O Canal+ esperava ser chamado à barra do tribunal, mas os processos não apareceram.

Se calhar ele gostou do que viu...
Duvido... A sua relação com o filme deve ser difícil, ambivalente, e digo isto para ser otimista. Deve ser um embaraço para ele rever a sua juventude. Há coisas que estão muito próximas da realidade histórica. Meses depois, já o filme estava em DVD, Carlos falou finalmente dele numa entrevista a uma revista alemã. Tinha ficado descontente e incomodado com as cenas de nudez. Tomou isso como uma agressão indigna de Ilich Ramírez Sánchez. Sobre o filme, não disse mais palavra. Mas isto prova uma coisa: de certa forma, Carlos continua dependente da imagem que ele próprio criou.
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Francisco Ferreira, Expresso




Título Original: Carlos
Realização: Olivier Assayas
Argumento: Olivier Assayas, Dan Franck, Daniel Leconte
Montagem: Luc Barnier e Marion Monnier
Fotografia : Yorick Le Saux e Denis Lenoir
Interpretação: Édgar Ramírez, Alexander Scheer, Alejandro Arroyo, Ahmad Kaabour,
Talal El-Jordi, Juana Acosta, Nora von Waldstätten, Christoph Bach

Origem: França/França
Ano: 2010
Duração: 163’
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IMPERDÍVEL PIERRE ÉTAIX NO TEATRO DAS FIGURAS!



«A guerra de Étaix contra o conformismo foi perdida há muito tempo. Mas, enquanto os seus filmes fantasistas e inventivos puderem ser vistos, haverá sempre um núcleo de resistência a favor do sonho ao qual vale a pena aderir.»
Jorge Mourinha

SÁBADO 22 OUTUBRO

19h30
LE SOUPIRANT + EN PLEINE FORME de Pierre Etaix

21h30
LE GRAND AMOUR + HEUREUX ANNIVERSAIRE de Pierre Etaix

DOMINGO 23 OUTUBRO

19h30
YO YO + RUPTURE de Pierre Etaix

22h00
TANT QU’ON A LA SANTÉ de Pierre Etaix 1h20

SEGUNDA 24 OUTUBRO

19h30
PAYS DE COCAGNE de Pierre Etaix 1h20

(restante programação aqui)
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"48" - NOVA SESSÃO - 6ªF, DIA 21, 21H30, IPJ.

(E DESTA VEZ ASSEGURAMOS QUE A CÓPIA DVD ESTÁ BOA!)

Sócios 2€. Estudantes 3,5€, Restantes 4€

PRÉMIOS
GRAND PRIX 2010 no Cinéma du Réel, França
OPUS BONUM Melhor Documentário Mundial 2010 no Jihlava Festival, República Checa
PRÉMIO FIPRESCI 2010 no DOK Leipzig, Alemanha
PRÉMIO D. QUIJOTE 2010, Caminhos do Cinema Português, Portugal
GRANDE PRÉMIO Cidade de Coimbra, Caminhos do Cinema Português 2010, Portugal

NOTA DA REALIZADORA
Quando, há alguns anos atrás, em resposta a um pedido meu, a direcção do Arquivo da PIDE / DGS recusou a autorização para filmar as fotografias dos presos políticos, eu estava longe de saber que um novo filme iria começar a desenvolver-se. Estávamos em 2003 e eu encontrava-me em plena realização de Natureza Morta. O filme dependia dessas imagens, algumas das quais eu própria já tinha filmado em 2000. Nessa época, registar essas fotografias não requeria qualquer tipo de autorização especial, a não ser a que era dada pelo próprio arquivo. Mas a direcção do arquivo entretanto mudara e com ela a interpretação da lei.

Após insistência, a direcção justificou o motivo da recusa invocando o “direito à imagem”: para filmar as fotografias, eu teria de obter o acordo dos presos políticos. No caso de estes terem entretanto falecido, teria então de obter não só a autorização dos herdeiros, como também de apresentar uma cópia da certidão de óbito. Não vou referir aqui os pormenores do complexo processo que me levou, ao fim de alguns meses, a obter as devidas autorizações. Nem me vou deter nos efeitos perversos que pode provocar a aplicação do “direito à imagem” às fotografias impositivamente captadas pela polícia política de um regime ditatorial que durou 48 anos. Refiro apenas que, em todo este processo, falei com dezenas de antigos presos políticos.

Inevitavelmente, comecei a ouvir as suas histórias, algumas acompanhadas por comentários às próprias imagens de cadastro: “Está a ver a camisola que eu tenho vestida?”; “Sabe por que eu estou com este sorriso?”; “Já reparou no meu cabelo?”.

48 partiu de uma certeza: a de que é possível contar uma história do regime ditatorial português (1926-1974) apenas através destas imagens. Mas partiu também de muitas interrogações. Os rostos fotografados pela PIDE fitam-nos, interpelam-nos, perturbam-nos. Como filmá-los, mantendo a integridade desta interpelação? Que duração atribuir a cada plano para que o espaço de ecos e ressonâncias que cada rosto comporta, possa ter existência? Como se transfigura uma imagem através da duração que lhe é imposta? Quanto tempo aguenta um grande plano em “grande plano”? Qual o equilíbrio entre as palavras e os silêncios para que a imagem não fique inteiramente possuída pelo texto?

E como construir um espaço que mais do que físico é conceptual?

48 procura operar na zona entre o que a fotografia mostra e o que ela não revela; mas também entre a analogia e a estranheza, o enunciado e o vivido, a imagem e a memória. Pois estas fotografias também são tempo: o tempo contido dentro da fracção de segundo em que o preso enfrenta o opositor; o tempo que nos permite entrar dentro do universo enclausurante das prisões políticas e estar dentro do instante onde se cruza o outrora com o agora; um templo múltiplo que extravasa as noções de passado, presente e futuro.

Através de uma linha narrativa que toma como base as acções da polícia política sobre o corpo e a mente dos prisioneiros e de um dispositivo que procura evidenciar a pregnância temporal da imagem, o filme organiza-se através de um conjunto de sequências, cada uma delas comportando um silêncio específico. Estes silêncios não só criam o espaço cinematográfico do filme como nos dão a sentir a própria presença corporal de cada um dos ex-prisioneiros, hoje. Através das suas palavras, o filme procura desvelar as imagens cuja função original - captar os sinais distintivos da fisionomia e servir de instrumento de identificação (mas também de poder) - ainda hoje cria um véu que as impede de serem realmente vistas.

O que nos mostram e escondem estas imagens?

Susana de Sousa Dias



A IDEIA
A ideia surgiu-me quando estava a realizar o meu filme anterior, Natureza Morta (2005), que se baseia em imagens de arquivo da ditadura portuguesa. O ponto de partida deste filme foi precisamente o conjunto de fotografias de cadastro dos prisioneiros políticos. Passei anos a pensar nestas fotografias, tive longas conversas com várias dezenas de ex-prisioneiros; portanto, não só a ideia para o 48 surgiu muito clara na minha mente, como quando passei à prática já tinha um longo percurso dentro da temática. A realização do filme, no entanto, foi bastante complexa e obviamente muito pensada. 48 parte de um dispositivo aparentemente simples mas os mecanismos para o pôr em prática foram extremamente complexos.

O DESAFIO
O filme procura pôr o espectador a pensar no que foram os 48 anos de ditadura em Portugal, mas não só. A prática da tortura continua a existir hoje. Este tema é sempre actual e voltou a ter uma grande relevância após a guerra do Iraque, com a divulgação das fotografias e dos relatórios em que as torturas praticadas são descritas. 48 parte do passado mas procura estabelecer essa ligação com o presente.

A EXPERIÊNCIA
Quando fiz o filme não estive a pensar no apelo emocional. São relatos muito emotivos, é verdade, são experiências muito pessoais e traumáticas, ou seja, é praticamente impossível ficar indiferente ao que se ouve no filme. No entanto, uma coisa é fazer um filme a pensar no eventual apelo emocional, outra, é fazer um filme que procure colocar o espectador a pensar naquilo que acabou de ver e ouvir. Essa foi a minha intenção. Aliás, saiu um texto sobre o filme na revista francesa Images Documentaires, que achei interessante; diz que aquilo que o filme consegue é pôr o espectador a “imaginar o invisível”.

A RELAÇÃO
Eu trabalhei com cada ex-prisioneiro político na sua condição de pessoa, não de vítima. Há sempre uma conjugação de duas vertentes no filme, entre o percurso pessoal e íntimo dos ex-prisioneiros e o contexto político. Mas eu não os considero vítimas, no sentido mais estrito do termo. Obviamente que são vítimas de um regime, mas são simultaneamente resistentes e resistentes activos. Há um testemunho no filme que refere o “poder do prisioneiro”.
Um dos exemplos que dá tem precisamente a ver a imagem de cadastro: não se podia fugir a tirar a fotografia, mas a cara, a expressão que o prisioneiro colocava no momento de captação da imagem, era ele que a decidia. O rosto pode revelar-se assim como o último bastião dessa resistência. Todo o filme se constrói de forma a ir para além da superfície das coisas (das imagens, das palavras), procurando revelar a sua complexidade intrínseca. E isto não se coaduna com estereótipos.

O SILÊNCIO
A ideia do filme é que o espectador veja a imagem e a veja ouvindo única e exclusivamente o testemunho da pessoa que nela figura. Os silêncios dão tempo ao espectador para ir reflectindo sobre aquilo que está a ver e ouvir, dentro do momento do próprio filme. Se colocasse um narrador, estaria a conduzir a leitura do filme através da minha palavra.
Ora, há toda uma outra série de mecanismos que o realizador pode utilizar para construir um filme que não têm de passar obrigatoriamente pela palavra. Nos documentários históricos mais tradicionais é comum termos um narrador que nos conta a história, interpretando-a; um narrador que nos apresenta o passado como sendo um passado completo, fechado, que não admite dúvidas. Nesse tipo de filmes, a imagem aparece como ilustração dessa narração, não é uma imagem autónoma, viva. 48 parte de noções diferentes do que é a história e do que é a imagem.
E procura, sobretudo, criar um espaço de pensamento para o próprio espectador.

O NOME
Um preso político é um indivíduo, mas é um indivíduo que faz parte de um corpo político constituído pelo conjunto de prisioneiros políticos de um determinado regime. As pessoas que eu entrevisto são apenas uma pequena parte das pessoas que sofreram às mãos da ditadura. Elas estão a falar em nome próprio (aliás todas são identificadas no genérico final) mas estão também a falar por todos. A não identificação no momento em que aparecem no filme tem precisamente a ver com isso.

A FORMA JUSTA
O que eu procuro quando faço um filme é que a forma se adeque ao conteúdo. Não vou utilizar modelos correntes, já testados e padronizados. Tenho uma ideia e para a concretizar tenho de encontrar aquilo que eu considero a “forma justa”. Portanto, parto sempre para um trabalho de pesquisa, de reflexão e de experimentação. Daí aquilo que tem sido designado por “estilo invulgar e próprio”. Posso dizer que gostaria que esta fosse de facto a minha assinatura: a procura de novas formas, formas justas de apresentar os assuntos tratados.

Susana Sousa Dias



NOTAS CRÍTICAS

O trabalho em torno das imagens é absolutamente sublime.
Javier Packer-Comyn, Director do Festival Cinéma du Réel in RTP, Portugal

Uma obra-prima (...), um documentário de dispositivo rigoroso e perturbador. (…) A cuidadosa costura destaca a particularidade de cada história ao mesmo tempo que garante ritmo (…). O resultado é (…) hipnótico e inesquecível.
Amir Labaki, Director do Festival “É Tudo Verdade” in Valor Econômico, Brasil

Não se trata apenas da história secreta destas imagens mas também do confronto entre o executor e a sua vítima congelado para a eternidade.
Yann Lardeau , crítico do Cahiers du Cinéma in Catálogo do Festival Cinéma du Réel, França
O dispositivo de realização não cede um milímetro, nenhum sentimentalismo, nenhuma música ou ruído. (…) O impacto é muito forte, o sentimento de uma bestialidade quotidiana torna-se quase físico graças à potência das palavras que “cria” a imagem, deixando aberto o horizonte da sua construção. Não somos guiados em direcção a uma iconografia pré-estabelecida (…). A memória histórica do país (…) torna-se, neste trabalho de abstracção, um espelho do contemporâneo (…)
Cristina Piccino, in Il Manifesto, Itália

Quando nós estamos a ser torturados.
São rostos. E vozes. Apenas isso. Minimalista (…). São imagens para contar 48 anos de fascismo - tudo fala da sociedade, os rostos, as roupas, a forma de estar. Não estão identificados por nomes nem idades porque valem por todos os presos políticos da ditadura. (…) Um rosto de mulher com um sorriso aberto em pleno arquivo da Pide, por exemplo, o que é que nos diz? (…) E o rosto daquele homem de cabelo claro? (…) E aquela mulher que nos olha fixamente, como uma pintura, e depois desaparecer no negro, apesar de os olhos parecerem continuar lá? (…) A expressão que têm, esse olhar de desafio, é o último espaço de liberdade que têm.
Alexandra Prado Coelho in Público, Portugal

Provavelmente o [filme] mais ousado e vanguardista [do DocLisboa]. É um filme que deveria ser visto por todos os alunos do secundário. É um filme de construção extremamente elaborada do ponto de vista artístico. O seu conteúdo histórico é extremamente importante e rico, uma razão suplementar para que esteja em sala. Deveria ser de visionamento obrigatório para as cadeiras de História.
Sérgio Tréfaut, Director do Festival Doclisboa in Ípsilon, Público, Portugal

Susana de Sousa Dias consegue elaborar uma obra meditativa de uma riqueza cinematográfica surpreendente. (…) 48 está em luta contra a ausência de palavras, de memórias, de imagens. (…) O vazio deixado pelo desaparecimento é total, mas a ausência não deixa de dar lugar a uma representação. (…) Ao reapropriar-se das fotografias da repressão, a cineasta tenta e consegue uma formidável obra de subversão, que consiste nesta vingança de vozes, antes condenadas ao silêncio. O ritmo e a forma apelam à meditação, permitem ao espírito deambular através dos diferentes estratos de espaços e tempos do sofrimento e da humilhação. (…) 48 é uma formidável pedrada no charco do esquecimento, ao fazer da memória não um dever, mas um direito.
Arnaud Hée e Camille Pollas in www.critikat.com, França



(…) Um filme extraordinário. (...) A minha esperança é que inspire os festivais a introduzir uma abordagem totalmente nova na escrita da história. Para lidar com memórias. Para procurar uma nova e minimalista linguagem cinematográfica. E para trabalhar com a música e o som de uma nova forma.
Tue Steen Müller, ex-Director do EDN European Documentary Network in Filmkommentaren, Dinamarca

O novo e belíssimo filme de Susana de Sousa Dias é na exacta e justa medida o mais recente capítulo de um trabalho que ilumina as imagens a partir do que nelas se esconde.(...) No fim, diante das suas sombras (...), só resta aquilo que as imagens iluminam com a sua ausência, tal como o silêncio espelha aquilo que já nem as palavras são capazes de traduzir. (...) Numa inversão (...), 48 converte--se numa obra documental sobre a perda de documentos. Ou, se preferirmos, a da possibilidade do cinema mesmo quando a imagem lhe é negada.
Nuno Figueiredo in Duas Margens, revista online, n.º zero (em preparação), Portugal

As imagens são tão cuidadosamente trabalhadas que a sua aura se torna visível. O som despido das vozes é tratado como música delicada. De facto, é música delicada. É sobre o crime político da ditadura portuguesa (...) tão terrível e selvagem e transmitido com uma clareza tão bela e calma. (...) Tenho a impressão que [o filme] é a minha experiência mais importante do Cinéma du Réel deste ano.
Allan Berg Nielsen, Danish Film Institute in Filmkommentaren, Dinamarca

O documentário de Susana de Sousa Dias não pode deixar o espectador indiferente (…) um filme indispensável às nossas colecções de mediatecas públicas, um filme de História que não pode ser esquecido.
Christine Puig in Vidéothécaires Midi-Pyrénées, França


CRÍTICAS

Por mais que a simples descrição do dispositivo em que assenta 48 faça a maioria dos espectadores fugir a sete pés, e que muitos julgamentos apressados o despachem de imediato com um “isto não é cinema”, o novo filme de Susana de Sousa Dias, feito de uma sucessão de fotos com voz off, ludibria todos os preconceitos e resulta numa obra poderosa, que nos arrepia e nos faz pensar bem mais que a maioria dos filmes com o triplo do movimento.

O 48 do título refere-se aos anos de ditadura que Portugal sofreu no século XX e a sucessão de imagens são as de fotos de cadastro de prisioneiros políticos do Estado Novo de várias épocas, com os próprios fotografados em off a recordarem a experiência da prisão, do isolamento, muitas vezes da tortura, um tema central no filme. E nestes testemunhos tão sentidos, há espaço para muitas lágrimas, alguns sorrisos, mas muitas histórias terríveis que a História deixou à margem.
O mais admirável em 48, além da força dos próprios testemunhos, é que o arriscado dispositivo que a realizadora encontrou para nos fazer chegar estas histórias acaba mesmo por lhes potenciar a eficácia e amplificar o impacto, já que deixa o espectador sozinho com aquelas imagens e o respectivo cérebro mais disponível para apreender todas as nuances do depoimento, confrontado sem hipótese com o rosto da própria vítima.

48 não é um tratado de História nem um retrato abrangente do Estado Novo. É, isso sim, um filme que mostra com eficácia desarmante o sofrimento de muitos prisioneiros políticos anónimos, e um libelo contra a tortura, um tema que nos últimos anos voltou à actualidade: independentemente de se ser contra ou a favor do Estado Novo, ninguém com um pingo de sentimentos pode achar que, por qualquer prisma que se veja, o que aquelas pessoas passaram é merecido.

Luís Salvado, timeout.pt

O efeito da tortura no rosto dos humanos
Cansados de ler os "colunistas de direita" a lembrarem que nasceram depois do 25 de Abril como se isso os desimplicasse de alguma coisa, "48" é o filme da implicação absoluta.

À saída de uma projecção de "48" a que assistimos chegou-nos ao ouvido o queixume de alguém que lamentava que o filme, sim senhor, tal e tal, mas podia ser "mais cinematográfico". A conversa não era connosco, se fosse teríamos retorquido que é justamente ao contrário: é por não ser "mais cinematográfico", no exacto sentido que a expressão pretende sugerir, que "48", sim senhor, tal e tal, é um filme notável. Era pedir-lhe que deixasse de ser o que é para ser uma coisa qualquer (por exemplo, cruzes canhoto, um programa de televisão. "cinematográfico" q.b.).
Toda a força de "48" vem da maneira como se encerra dentro do seu modelo, obstinando-se em não deixar entrar "ar" lá dentro. Um plano que fosse que só lá estivesse para descomprimir, para arejar, arruinava o filme. Fala-se de tortura, de situações de extrema violência física e psicológica. Nenhum filme, e nenhuma experiência fílmica, poderá alguma vez ser comparável (fora ocasionais forças de expressão) com uma sessão de tortura real. Mas não há razão para que o espectador que vai ver um filme onde se fala de tortura não possa estar totalmente disponível, sem precisar de pancadinhas nas costas. O filme não as dá - é a sua maneira de estar à altura, e de ajudar o espectador a estar à altura, do que nele se diz e se mostra.

É fácil descrevê-lo sumariamente. Faz-se apenas de fotografias ("mugshots") de pessoas que foram presas pela PIDE, enquanto na banda de som ouvimos o depoimento dessas mesmas pessoas quando, muitos anos depois, voltam a ter à frente as imagens dos seus rostos encarcerados. As fotografias correspondem a momento diferentes do seu tempo de prisão (meses, anos), e montadas em sequência criam uma espécie de "morphing" sem "morphing", como se cada rosto se fosse tornando numa versão alterada de si próprio. Os cientistas (ou "cientistas") do século XIX que se dedicaram ao estudo das tipologias fisionómicas podiam encontrar aqui uma categoria menos fantasiosa do que aquelas por que se interessaram: a fisionomia do preso político. E a banda de imagem de "48" podia servir-lhes de documentação para estudar o efeito que o encarceramento e a tortura operam sobre o rosto dos seres humanos.
Mas há também a banda de som, e é no trabalho sobre ela que "48" se perfaz plenamente como filme que, de facto, não é uma coisa qualquer. Há o interesse intrínseco dos depoimentos, claro, onde se aprende alguma coisa sobre a vida nas mãos da PIDE (e também sobre a tristeza que isto era cá fora), e se percebe, nos vários depoimentos femininos, a que ponto se praticava uma tortura "de género", em perfeita noção de que há maneiras específicas de fazer sofrer as mulheres que não se aplicam aos homens. Mas mais ainda, há uma extraordinária "mise en forme" desses depoimentos. Que conservam hesitações e silêncios, blocos sólidos de conversa (ou montados de forma a que o parecem) em vez de "momentos escolhidos". E não surgem "limpos", quer dizer, percebe-se que Susana de Sousa Dias não levou as pessoas para um estúdio para lhes gravar as palavras num ambiente de total isolamento sonoro. Pelo contrário, nenhum depoimento é impermeável aos ruidos do exterior: buzinadelas na rua, britadeiras, etc. Nunca é ostensivo, nunca se sobrepõe às vozes, mas esse ruido está lá. O que esse ruído é é simples de dizer: é a vida a penetrar no filme, a vida de todos os dias, nossa contemporânea. É a maneira de lá estarmos todos, todos os que podíamos ser os autores das buzinadelas captadas pelo microfone de Susana de Sousa Dias. Cansados de ler os proverbiais "colunistas de direita" semana sim semana não a lembrarem que nasceram depois do 25 de Abril como se isso os desimplicasse de alguma coisa, "48" é o filme da implicação absoluta, independentemente da data de nascimento. E fá-la (ou fala-a, sem a "dizer") apenas através de um minucioso trabalho sobre as suas formas e sobre os seus materiais. Se isto não é "mais cinematográfico", o que raio será.

Luís Miguel Oliveira, Ípsilon



Como se filma o infilmável? Como se mostra aquilo de que não existem imagens? A resposta de Susana de Sousa Dias é simples: com as imagens que há e dando a palavra àqueles que viveram a ditadura, de um modo que, raiando o experimentalismo formalista tem o efeito de libertar a emoção, de tornar o espectador simultaneamente testemunha e participante das experiências que a realizadora e a sua equipa recolheram junto de uma mão-cheia de prisioneiros políticos encarcerados ou torturados pela PIDE durante os 48 anos do regime salazarista. "48" é uma assombrosa lição de cinema, que ejecta todas e quaisquer convenções pela simplicidade depurada e austera do seu dispositivo; um imenso exercício de história vivida e contada na primeira pessoam, como se só do anonimato de vozes, da décalage entre os rostos de ontem e as vozes de hoje deste coro popular, pudesse nascer a intimidade que - como diz uma das entrevistadas - é o lugar da verdade. Como se só deste acumular anónimo de pequenas histórias pudesse nascer a mais fiel abordagem à grande história. Não é contraditório pôr "48" - prodigioso salto em frente para a sua autora - no mesmo caldeirão de cineastas radicais da modernidade fílmica como Godard, Tarr, Van Sant, Costa ou César Monteiro. Para lá de qualquer olhar político, é um filme sobre Portugal. Para lá de qualquer nacionalidade, é uma obra-prima.

Jorge Mourinha, Ípsilon

"48" questiona o que é que uma imagem mostra. A partir de fotos de cadastro da PIDE, Susana de Sousa Dias faz a denúncia da ditadura por intermédio dos métodos dos seus algozes e através da memória dos opositores. Num momento em que alguns se esforçam por branquear o fascismo que nos coube na rifa, um dos princípios deste trabalho é o de não reduzir a imagem ao simplismo de uma só leitura, e a relação dela com os correspondentes sons é explícita quanto comovente, na figura, de combatentes que não se desculpam por terem lutado nem nos atiram isso à cara. Apesar das exatas medidas e posturas, as fotografias antropométricas revelam a singularidade de cada fotografado. Interessante é que se descubra também o rol das violências praticadas contra as mulheres, mormente quando se tratava de utilizar o fator da menstruação como elemento de humilhação ou de tortura psicológica, o que raras vezes tem sido realçado, que a condição feminina é o mais das vezes exposta pela observação do analista masculino, a quem vem escapando a profundidade de tais vexames. Também se constata que os guerrilheiros negros não tinham 'Imagem', eram a mole que a história escrita pelo colonizador nunca desejou individualizar. E a opção de preservar depoimentos de nacionalistas através de um ecrã negro, inesperadamente sulcado da imagem fugaz de uma árvore e de um murete de arame farpado, traz mais gritantes as suas dores. Intervindo no próprio som dos depoimentos, montando-os e depurando-os conforme os interesses da 'representação' cinematográfica, Sousa Dias realça as palavras que acha dever destacar, permitindo que se distinga com acutilância "a palavra dita e como é que é dita". Com "48", as imagens fixas deixam de ser olhadas da mesma maneira. Há mais filmes feitos integralmente a partir de imagens de arquivo, "mas são diferentes na sua linguagem e conceção", como lembra a realizadora.

António Loja Neves, Expresso


INCLUI DECLARAÇÕES DA REALIZADORA
Na continuação da sua obra "Natureza Morta", Susana de Sousa Dias vê agora o premiado "48" chegar às salas comerciais. Será que o seu apuramento estético e o tratamento dialético entre imagem e banda sonora podem prefigurar um caminho de ligação entre cinema e outras artes? "Fiz o curso de cinema e fiquei insatisfeita", refere a realizadora. "Fui para artes plásticas nas Belas Artes. As pessoas às vezes perguntam em que campo é que me situo. O meu campo é o do cinema. Mas vou buscar recursos ao cinema como às artes visuais. Tento encontrar a melhor forma de fazer o filme. Quanto a '48', não tenho modelo referencial, tentei simplesmente analisar os materiais e tirar conclusões."

O resultado surpreende pela utilização da imagem parada e posteriormente trabalhada como substância nuclear de um documentário. Quando os contornos das imagens que nos assolam no dia a dia são cada vez mais rápidos e trepidantes, é interessante confrontarmo-nos com uma obra rigorosamente diversa. "Quanto realizei 'Natureza Morta', fi-lo em co-produção com uma empresa francesa, e as verbas vieram todas do estrangeiro. Para '48', optei por uma produção portuguesa e de uma empresa que é minha, com apoio financeiro exclusivamente português. Desejava trabalhar sem fazer concessões, não queria discutir com pessoas estranhas ao processo criativo a eficácia do documento, queria trabalhá-lo até às últimas consequências. Foi um risco assumido e consciente desde o início. Não sabia quais iriam ser as reações."

O processo de criação de "48" é peculiar. "A minha reflexão coloca preferencialmente as questões da História e da imagem em si e da imagem de arquivo em particular. É o que me leva à forma como faço filmes. Queria contar uma história do Estado Novo tendo por base as imagens de cadastro da polícia política e os testemunhos dos prisioneiros. Mas isso não faz um filme, e quando pus o primeiro plano na time line, ao começar a montagem, compreendi que a ideia caía por terra. Não se pode pensar simplesmente que o espectador olhe para as imagens e ouça os testemunhos dos ex-prisioneiros, quero que veja a imagem de forma consciente e que se retenha nela, que possa refletir no que está a ver e a ouvir. E para que não descole tenho de construir algo sustentável durante a hora e meia que tem o filme. Por isso abandonei a ideia do plano fixo, porque nele o espectador apreende de imediato a informação e deixa de ver. Poderá continuar a olhar, mas deixa de 'ver'. Tive de criar um dispositivo especial. No fundo, são intervenções que respeitam a imagem na sua integridade, sem a adulterar. O filme tem 93 minutos e trabalhei com o ralenti. Se pusesse as imagens do filme à velocidade normal, a banda de imagem teria apenas sete minutos."

"48" trabalha sobre o resgate da memória. E tem dois momentos cruciais que rompem a 'normalidade' a que nos vamos habituando, tornando abrangente todo o sofrimento denunciado - quando Maria Antónia Fiadeiro conta como era a sociedade fora da prisão e nos depoimentos de dois guerrilheiros de movimentos de libertação: não temos imagens deles, faltam nos arquivos. "A introdução desses elementos foi muito complexa, se eu alterar a ordem dos depoimentos, estes podem anular-se uns aos outros. Foi tudo muito trabalhados, no ensejo de que se falasse do país, não apenas das condições no interior da prisão. O depoimento da Maria Antónia é importante para enfatizar esse retrato do país, pois fala da vida privada, até da vida sexual, aspetos muito íntimos."

Num filme que parte da imagem e do seu questionamento, o que é que se faz quando há falta dela? "Pensei muito sobre como poderia resolver o problema da ausência de imagem nos testemunhos dos prisioneiros das ex-colónias, até ao momento em que decidi a integração sem imagem, denunciando assim a sua ausência no arquivo, o que introduz um aspeto reflexivo dentro do discurso do filme. Permiti-me a quebra momentânea do sistema que erigi para a construção do filme. É impossível manter o mesmo sistema do princípio ao fim, não se trata de uma métrica que se cumpre cabalmente, repetindo-se. Quando cheguei ao segundo prisioneiro africano, decidi montar o seu discurso de uma forma diferente, quase como se fosse um poema, já que a sua forma de falar prestava-se a isso e admitia outro tipo de imagens. Encontrei-as no arquivo do Exército, filmadas na Guiné, fugazes imagens de vigilância noturna. Não surgem do nada, estão no contexto. Não é por serem bonitas." São imagens criteriosas do ponto de vista estético e funcionais do ponto de vista político. "É fundamental que cada imagem que utilizo tenha um sentido objetivo e ligação ao resto. E o negrume que sustenta os depoimentos não é um negro técnico. Começa por sê-lo, mas depois passa ao registo do escuro da noite, antecedendo aquela paisagem. É uma imagem que se inscreve, não uma paisagem onde penetramos."

Coloca-se a questão de serem subjetivas ou objetivas as imagens tão cruas das fotos que dão guarida aos depoimentos. "São sempre subjetivas. Os meus filmes são assim construídos porque estão subjacentes a uma dada ideia de História. Georges Didi-Huberman afirma que a revolução coperenicana de Walter Benjamin foi sobretudo o passar a ver o passado como um facto de memória e não como um facto objetivo. Tudo é trabalhado a partir dessa ideia de memória, com toda a carga temporal e até com o inconsciente do tempo. Não vou à procura de uma verdade sobre o passado, não vou tentar revelar um passado. Vou trabalhar para perceber como é que o passado chega até nós e como é refletido hoje. A História não é um poder fixo nem passível de ser revelada através de um discurso causal, sequencial, linear. Daí também a ausência de necessidade de cronologia".

As imagens a que nos referimos são de arquivo, o que toma as coisas ainda mais delicadas. "A minha definição de imagem de arquivo é de matriz derridiana. Em última análise, o que demarca uma imagem de uma imagem de arquivo é o facto de esta última estar sujeita a um poder. Quando se lida com arquivos, esta é uma questão com a qual temos necessariamente de nos confrontar e que influi diretamente no nosso trabalho. As políticas de acesso aos arquivos são bastante restritivas, o que até pode levar a um paradoxo: como se pesquisa e se trabalha sobre aquilo que não se sabe que existe?"

António Loja Neves, Expresso



ENTREVISTAS

Susana de Sousa Dias, cineasta portuguesa, lança em 2009, pela Kintop – produtora que fundou em 2001 e que tem especial foco nos temas da história e sociedade contemporâneas -, ‘48’ (93′, 2009). O filme aborda as “acções da polícia política sobre o corpo e a mente dos prisioneiros”, conforme escreve a realizadora, durante a ditadura portuguesa. Fortemente aclamado pela crítica, e apresentado em festivais um pouco por toda a Europa, Brasil, Senegal e Cabo Verde, foi galardoado com o Grande Prémio do Cinéma du Réel 2010.

36 anos depois da Revolução e do fim da Ditadura em Portugal e com todas as abordagens – desde filmes a documentários e debates –feitas ao tema, como é que surge o ‘48’?
O ‘48’ surge a partir de um percurso que começou nos anos 90. Foi nessa altura que surgiu o meu interesse pelo Estado Novo, sobretudo pelo cinema produzido no período anterior ao final da 2.ª Guerra. Depois, em 2000, comecei a centrar-me nos materiais existentes no Arquivo da PIDE/DGS. Estava a fazer um outro filme, ‘Processo-Crime 141/53 — Enfermeiras no Estado Novo’, e foi nessa ocasião que vi os álbuns de reconhecimento com as fotografias dos presos políticos. Foi um momento absolutamente marcante do meu percurso enquanto cineasta. Foi também nessa altura que entrei pela primeira vez no arquivo audiovisual do exército. Todo esse conjunto de imagens esteve na base de um filme sem palavras, também sobre a ditadura: ‘Natureza Morta’ (2005). Ou seja, trata-se um pouco de filmes que vão saindo de filmes — 48 foi o filme que saiu de ‘Natureza Morta’ — mas que têm a sua génese no arquivo. Costumo dizer que uma vez dentro de um arquivo, dentro do arquivo para sempre.

O tratamento das imagens e os relatos na primeira pessoa atribuem sobretudo uma veracidade e crueza aos relatos, quase como se tivesses montado uma história pouco tempo depois do fim da ditadura. Como é que seleccionaste os intervenientes e os relatos?
O filme, na sua origem, parte de três fotografias. Quando estava a fazer ‘Natureza Morta’, tive de pedir autorização aos antigos prisioneiros para poder filmar as suas fotografias no Arquivo da PIDE/DGS (Arquivo Nacional da Torre do Tombo). Isto foi em 2003. Falei com algumas pessoas sobre as suas próprias fotografias de cadastro e o que elas disseram revelou-me todo um outro lado da imagem, para além da sua visibilidade, um lado passível de ser apreendido somente através do complemento da palavra. Foi nessa altura que comecei a pensar que talvez fosse possível construir um filme a partir de uma ideia aparentemente — e friso aqui o aparentemente — muito simples: mostrar a imagem, ou seja, colocar o espectador em confronto com a imagem, e deixar ouvir a voz da pessoa fotografada. Portanto, houve esta situação “imagem e história associada”, mas também houve outras imagens, cuja história interna desconhecia, que achei fundamental fazerem parte do filme: as fotografias do António Gervásio, por exemplo. Independentemente de tudo o que revelam, conseguem-nos transmitir por si só o que foi a violência da duração da ditadura. Outro critério de escolha foi também o da história pessoal. Conhecia episódios da vida de algumas pessoas que achei importante incorporar. E finalmente, o caso dos prisioneiros africanos. Quando iniciei o filme não previa incorporar prisioneiros das antigas colónias. Quando comecei a centrar o filme na tortura, cheguei à conclusão que era impossível não o fazer. Claro que houve também muita investigação: nos arquivos, nos livros já publicados e também por meio de conversas que ia mantendo com os próprios ex-prisioneiros e com historiadores.

Qual foi o teu principal objectivo ao realizar este documentário?
Há sempre vários objectivos. Um deles é trazer à luz vivências que correm o risco de permanecer no esquecimento. O que temos garantido são os documentos depositados nos arquivos. Ora, que documentos são esses? O que nos revelam? Que lacunas contêm? Estas questões são tanto mais importantes quanto sabemos que se trata de um arquivo de uma polícia política de uma ditadura que durou 48 anos. Para além disso, o arquivo nunca poderá ascender ao estatuto de memória verdadeira, será sempre uma “memória de muletas”, como diz Ricoeur. É preciso trabalhar os materiais, questioná-los, reinterpretá-los, confrontá-los; só assim se trabalha a memória, memória que é a matriz da história. Quando mostrei num festival aqui em Portugal, o ‘Processo-Crime 141-53’, um filme que tem por base o processo judicial de duas enfermeiras que foram presas por quererem casar, um realizador da RTP acusou-me de o filme não ter contraditório. Afirmava ele que eu deveria ter entrevistado os pides. Ora, os pides têm voz: todo o arquivo da PIDE/DGS é um testemunho das suas acções, dos seus métodos, da sua forma de pensar. Quem não tem voz são os prisioneiros. Nenhuma tortura aparece descrita. É, por isso, muitíssimo importante proceder a esta recolha, fazer todo um trabalho de história oral enquanto as pessoas que viveram nesta época estão entre nós. No meu caso, tento contribuir fazendo filmes.

O director do Doclisboa, Sérgio Tréfaut, apelidou o ‘48’ do filme “mais ousado e vanguardista”, explica-me a nível de produção e realização, como é que tornaste um tema como a Ditadura num filme de vanguarda.
O que se passa com o filme é que procurei encontrar a solução estética que mais se coadunasse com o que pretendia mostrar e dar a ouvir. A solução encontrada foi original — é um comentário que tenho ouvido nos mais diferentes círculos onde tenho mostrado o filme — e por isso mesmo também mais arriscada. Antes de mostrar o filme não fazia ideia de quais seriam as reacções. No fundo, tratou-se apenas de articular, da maneira mais justa, quanto a mim, as questões tratadas com as opções formais.

Que significado ou que importância teve o fim da ditadura e a Revolução na tua vida em particular? Social e politicamente quais sentes que foram as grandes mudanças – positivas ou negativas?
O 25 de Abril teve um grande impacto na minha vida. Isto parece uma evidência — uma revolução tem sempre um grande impacto na vida das pessoas que são directa ou indirectamente atingidas por ela — , mas no meu caso, como era muito jovem, acabou por me formar. O mais impressionante, para mim, foi ver o país mudar de um dia para o outro. Só quem viveu uma situação destas pode imaginar como é. Depois, comecei a ter actividade política, que passava também por ir para outras zonas do país, no meu caso o Alentejo, trabalhar no campo e alfabetizar. Esta experiência vivi-a, sobretudo, no período entre os meus 12 e 14 anos. Foi aí, verdadeiramente, que percebi o que tinha sido o fascismo. E que encontrei camponeses de uma dignidade e honradez impressionantes; de certa forma, também eles contribuíram para o que sou hoje. Foi uma experiência fundadora e posso dizer que se hoje faço estes filmes, a esse momento o devo.

Conta-me um pouco sobre o percurso do «48» desde que estreou.
O filme foi estreado no DocLisboa em 2009, alguns dias apenas após estar concluído. Depois, foi seleccionado para o Festival Cinema du Réel, em Paris, onde viria a ganhar o Grande Prémio, e para o Festival ‘É Tudo Verdade’ em São Paulo e Rio de Janeiro. Em Portugal foi exibido também no Panorama e no Doc’s Kingdom. Já foi mostrado em Cabo Verde, no Senegal, vai ser apresentado em festivais na Grã-Bretanha, na Itália, na Áustria, entre outros países. Também tem suscitado o interesse de outros circuitos: falei sobre o filme no Collège Iconique do INA (Institut National du Audiovisuel), em La Fémis, a escola de cinema de Paris, na Universidade de Verão da Sorbonne-Nouvelle, etc. Onde tem sido mostrado, o filme tem originado discussões vivas e tem ganho outras dimensões, é muito interessante. Também tenho sido contactada por pessoas do público, que me escrevem a comentar o filme. É como o José Gil diz: o objecto é lançado no espaço público e quando retorna ao seu autor já vem transformado, ampliado pelo pensamento dos outros. Mas isto é o que se passa lá fora. Aqui em Portugal, muito pouco se disse sobre o filme. O que não deixa de ser surpreendente, dado o tema.

Qual é o teu maior orgulho na realização deste documentário?
É esse mesmo: tê-lo realizado.

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Por mais que a simples descrição do dispositivo em que assenta 48 faça a maioria dos espectadores fugir a sete pés, e que muitos julgamentos apressados o despachem de imediato com um “isto não é cinema”, o novo filme de Susana de Sousa Dias, feito de uma sucessão de fotos com voz off, ludibria todos os preconceitos e resulta numa obra poderosa, que nos arrepia e nos faz pensar bem mais que a maioria dos filmes com o triplo do movimento.

Em Natureza Morta, Susana de Sousa Dias fez um retrato do Estado Novo usando imagens de arquivo em câmara lenta. Em 48, opta por um novo desafio formal, ao contar as histórias de presos políticos usando apenas fotografias de cadastro e depoimentos.

O filme foi premiado em vários festivais, incluindo o Grand Prix de Réel. Confirma também o Estado Novo como universo temático comum a todo o percurso da realizadora, que tem já mais três projetos dentro deste âmbito. A ideia principal é sempre a mesma: não apagar a memória.
Este é um filme sem imagens em movimento. Há aqui uma negação do próprio cinema?
Não, pelo contrário. O 48 situa-se fora dos cânones convencionais do cinema. Parte de materiais e de processos que não são normalmente utilizados quando se constrói um filme. Aqui há movimentos de câmara, mas sobre a imagem fixa. A construção do espaço no cinema é dada pela imagem e pelo som, mas aqui temos imagens sem espaço. Por isso, todo o espaço cinematográfico é construído através do som. Por outro lado, tem uma linha narrativa muito definida e muito trabalhada, mas que não é muito aparente.

Mas nada disso é casual ou puramente experimental. O formato serve uma ideia…
A própria ideia do filme partiu deste dispositivo formal: apresentar a fotografia com a voz do prisioneiro. Depois surgiram outros problemas. Tal não funcionou na prática. A minha ideia era usar a imagem fixa. Mas quando vi o primeiro plano a ideia caiu por terra. A imagem não pode estar fixa, se não o espetador desliga-se do que está a ver. Foi o primeiro ponto em que percebi que fazer este filme não era tão simples como isso. Parti para o filme com muitas questões, mas foi ainda mais difícil do que estava à espera. Muito mais.

Esta ideia não funcionaria numa video-instalação, usando ampliações das fotografias e a voz em fundo, onde quem entrasse ouviria uma ou outra história? Há aqui uma ligação às artes plásticas?
Às vezes perguntam-me se o filme foi pensado para uma galeria. Ele foi pensado para uma sala de cinema e para funcionar na sua totalidade. E uma das dificuldades foi precisamente criar esse todo. O filme tem princípio, meio e fim. Cada depoimento só pode entrar uma única vez. Tirando uma peça, desmonta-se tudo. Basta mudar um prisioneiro de sítio para não funcionar, ou se apaga ou come aquele que vem a seguir. Era muito fácil fazer isto. Tive uma proposta para apresentar isto na PhotoEspanha, com um caráter mais instalativo. Mas acabou por ser uma sala grande e escura onde passaram o filme na íntegra e com sessões.

O filme partiu das próprias fotografias?
Quando estava a fazer a Natureza Morta tive que pedir autorização aos prisioneiros para usar as fotografias. Sem querer começámos a conversar sobre a imagem. A Georgete estava a contar várias coisas. Disse-me: “Já reparou, nesta imagem já tinha o buço a crescer e estava despenteada. Começou a contar-me a história, o tempo entre a fotografia de entrada e de saída. E também da forma como aquela roupa foi usada para limpar o chão. A fotografia então abriu-se em termos de imagem e de tempo. Foi aí que comecei a pensar no filme. Depois, um segundo ex-prisioneiro, o Manuel Pedro, também comentou: “Já reparou que na primeira fotografia era careca e na segunda já tinha cabelo…” Levantou-se a questão do disfarce na clandestinidade. As fotografias de cadastro impressionaram-me logo muito, quando as vi em 2000, e não sabia porquê. Aquilo perturbou-me imenso. No 48 a ideia nasce da relação da palavra com a imagem. Mostrar o que as imagens revelam e o que elas escondem.

O que teria a perder se mostrasse as pessoas que dão os depoimentos?
Muita coisa. Foi uma questão que sempre me coloquei. Se eu mostro a pessoa a falar, tenho uma imagem do presente a contar uma história. E a fotografia quando aparece acaba por ser uma ilustração desse passado. Ocorre imediatamente uma clivagem temporal. E estou a trabalhar com uma série de temporalidades mais complexa. A imagem remete-nos para um passado, mas também para um tempo presente a diversos níveis. Há uma pregnância temporal que me interessou trabalhar. Para que fosse eficaz e todos esses tempos heterogéneos existissem no mesmo filme, não poderia criar essa clivagem.

Aquelas imagens ganham assim uma força e uma dinâmica incomensuráveis…
Na base do filme está a vontade confrontar o espetador com a imagem de cadastro. É uma imagem num certo sentido transparente. Não é por acaso que todo o sistema erigido da fotografia judicial mantém a sua forma canónica desde o século XIX. Na base está a procura da maior semelhança possível entre a fotografia e o fotografado. É uma imagem extremamente codificada, em termos estéticos e ideológicos. A questão aqui é ir além disso. Por vezes somos nós que olhamos para a imagem, por outras olhamos para a imagem através do olhar de quem está a falar, por outras ainda é a imagem que olha para nós.

Há uma resposta ideológica do próprio fotografado, no momento em que tira a fotografia. Também ali parece haver um jogo de forças entre a polícia e o preso. Alguns depoimentos falam disso, da necessidade de fazer a pior cara para a fotografia, mas também no caso peculiar da Maria Antónia Fiadeiro, que se ri, e hoje se arrepende…
Dentro deste sistema tão rígido há qualquer coisa que escapa. No caso dos prisioneiros políticos mais consciencializados passa por uma atitude de força. É o poder do preso. Que é coisa que nunca se vê.

Também falam do poder de não falar, como último resquício de liberdade…
Sim. Há também essa questão. Mas, na verdade, algumas das pessoas que estão no filme falaram. Só que não é esse o tema que quis abordar. Isso seria um outro filme.

De que serve recordar hoje todas estas barbaridades?
Hoje em dia existe um branqueamento destes 48 anos. Uma das pessoas entrevistadas disse-me que a grande violência da ditadura foi a sua duração. Todo esse tempo deforma as pessoas que a viveram e aquelas que educaram. Eu própria vivi 12 anos sob a ditadura. Foi pouco, mas houve um período da minha vida em que fui formada por aquelas ideias, na escola, na mentalidade… Há muitos traços invisíveis. Não é nada que passou e se esqueceu. Até porque, há não muitos anos, o Salazar foi eleito o grande português num concurso e houve uma revista que espalhou imagens do ditador pela cidade.

Como é que chegou a este universo temático…
Do qual não vou sair tão cedo… Nos anos 90 tive uma proposta para fazer um documentário sobre o cinema português dos anos 30 e 40, foi nessa altura que me confrontei com as imagens de arquivo da época… Começou aí o meu fascínio. Entretanto, a minha mãe estava a fazer um mestrado sobre estudos das mulheres e a trabalhar sobre a história de duas enfermeiras que foram presas. Havia uma lei única na história das ditaduras que era a proibição das enfermeiras dos hospitais públicos de se casarem. O processo destas enfermeiras é kafkiano. Fiz esse documentário. Foi nessa altura que entrei no arquivo pela primeira vez. É algo extremamente perturbador.

Chegar às pessoas foi simples?
Simples e complicado. Em 2003, quando comecei a filmar a Natureza Morta, tinha as fotografias, mas não podia ver o nome que estava escrito nas costas, porque não as podia virar. Foi um processo muito complexo, feito pelo lado inverso. Fui ter com pessoas que sabia que tinham estado presas e com historiadores… Depois, falar com as pessoas foi simples. Não tive nenhuma recusa, a não ser um caso em Moçambique. Mas o trabalho começou muito antes. Por exemplo, a Georgete Ferreira, a primeira pessoa que aparece no filme, foi entrevistada em 2007, mas a primeira vez que falei com ela foi em 2000. Como eu trabalho há alguns anos sobre estes temas, as pessoas têm confiança.

As próprias pessoas têm essa consciência de que o que lhes aconteceu não pode cair no esquecimento?
Alguns disseram-me que, por si, não falavam, mas sentem que têm a obrigação de contar a história, para que não fique esquecida. Porque, claro está, nos arquivos estes relatos não existem.

Filmou horas sem fim. Poderia fazer um filme por pessoas?
Sem dúvida. Vários filmes até. Numa entrevista que fiz, a resposta à primeira pergunta demorou uma hora, precisamente o tempo da cassete. Eu vou fazendo perguntas até entrar na memória. É muito interessante perceber qual é a chave de entrada de cada pessoa. Varia muito. Há perguntas que funcionam com umas pessoas e não com outras. É um trabalho que coloca muitos problemas, até do ponto de vista ético: até que ponto tenho o direito de fazer certas perguntas? Será que devo parar? Não é fácil, mas é fascinante. Acaba por haver uma troca.

Deve ter sido penoso cortar tanto…
Tive que fazer ao contrário. Primeiro escolhi a estrutura vertical do filme, caminhando em profundidade. Em baixo, estão os conceitos diretores. E é aí que vem ancorar toda a narrativa, aquela que é aparente para o espetador. Na base estão os conceitos que fui buscar a cada uma das pessoas: a questão da identidade, da máscara, do poder do prisioneiro, tudo isto tem reflexos na própria imagem. Foi preciso andar na verticalidade para descobrir estes conceitos e conseguir articular a voz com o texto. O filme também é sobre indivíduos, mas acima de tudo é sobre o sistema.
Dentro da própria construção narrativa há uma gestão da intensidade. O filme tem um clímax, uma altura em que julgamos que já não é possível ouvirmos nada pior, mas há um relato que supera tudo, que é o do preso de Moçambique, que fala da morte como um desejo inalcançável.
Nesse ponto de vista, há uma construção narrativa que faz a curva tradicional. O filme vai crescendo, há um clímax e a conclusão. E o clímax acaba por ser esse. O filme não é cronológico, mas começamos com uma prisão nos anos 40 e acabamos no 25 de Abril. E a Guerra Colonial é um limite do regime. Esse depoimento foi recolhido em Moçambique em condições muito especiais. Ele fala da morte de uma forma impressionante. A mulher dele tinha morrido há seis meses, e a mãe morrera enquanto eu estava em Moçambique. Há uma situação psicológica que faz com que a entrevista seja tão expressiva. Esse foi o momento do filme em que me permiti sair do sistema.

Importante também é a gestão das pausas. Tal como numa comédia não se podem contar anedotas de seguida, porque o espetador não tem espaço para apanhar tudo, aqui são necessários silêncios para que possamos digerir a informação…
Essa gestão foi muito complicada. O filme já estava todo construído quando me apercebi que havia um momento, quando entra a prisioneira com o filho, que desligava. Porque uma pessoa já não tem a capacidade para ouvir mais. Percebi então que era preciso abrandar. Faço os possíveis para que tudo seja apreensível. Foi preciso dar tempo ao espetador dentro do próprio filme.

Os fotografados já viram o filme. Qual foi a reação?
Tive reações positivas e uma menos boa, que foi a da Maria Antónia, que convive muito mal com aquela fotografia em que está a sorrir. Reagiu com grandes reservas, mas mais tarde telefonou-me a dizer que já se tinha reconciliado com o filme. Não mostro o filme antes de estar pronto. Há alguns casos, como o da Alice que contou pela primeira vez o quase suicídio da mãe num estado emocionalmente frágil. Nesses casos eu telefono e pergunto se posso utilizar essa parte do depoimento. Um princípio que eu tenho é o de não usar as parte que os entrevistados me peçam para não o fazer.

Qual será o seu próximo filme?
Posso dizer que no fundo há dois: um deles é Luz Obscura, um filme cuja pesquisa iniciei em 2001, a rodagem em 2006 mas que tive de interromper pois a dado momento encontrei-me num impasse, não o conseguia resolver. Só depois de fazer o 48 consegui encontrar a solução formal e estética. O filme - o tal que parte também dos materiais existentes no arquivo da PIDE/DGS, neste caso da fotografia de cadastro de uma mulher com uma criança - tem na sua base um problema, que é o da entrevista. Em certas condições, num situação de entrevista filmada, a voz pode apagar o rosto, a expressão; noutras, dá-se a situação inversa, ou seja, o que transparece no rosto pode apagar o que está a ser dito: como resolver este paradoxo? Como disse, só depois de fazer o 48 consegui resolver este filme.Tenho outros projetos: o das três irmãs, o da memória do Estado Novo hoje (chama-se o Paço do Duque ou “o fascismo nunca existiu”, numa referência ao texto do Eduardo Lourenço) e um último que parte das fotografias de clandestinidade de um núcleo familiar, mas também das imagens de cadastro da Torre do Tombo e de imagens em movimento da época. Os dois primeiros são projectos que foram nascendo e desenvolvendo-se antes mesmo da conclusão de 48. O último, na verdade, nasce de 48, e também de Luz Obscura. No fundo, trata-se de uma reflexão que parte mais uma vez da imagem de arquivo e é aquele em que estou a trabalhar neste momento.

Considera-se um caso à parte no cinema português? Sente afinidades com outros realizadores?
Posso dizer que 48 não se baseia em qualquer modelo existente e que a surpresa que o filme tem causado nos circuitos internacionais por onde tem passado, e não sou eu que o digo, apenas reproduzo aquilo que tem sido referido, consiste precisamente na sua originalidade e inovação. Aliás, a pergunta é interessante pois eu nunca pensei na minha posição dentro da nossa própria história e prática do cinema. A primeira vez que me confrontei com esta questão foi quando programaram a Natureza Morta e o Jaime, do António Reis, numa mesma sessão, em França. Alguém encontrou afinidades entre os dois filmes. Gostei muito disso, fez-me sentir parte de alguma coisa.

Tem em comum com o Pedro Costa o facto de se fechar obsessivamente num universo e numa linguagem…
Encontro uma afinidade com ele, em termos de método, que é uma opção muito marcada em encontrar a sua própria linguagem para além dos modelos existentes e adequar os métodos de produção a essa pesquisa. E seguir firmemente o seu caminho. É interessante esta teia de relações que as outras pessoas vão encontrando e que me vão dando que pensar e me levam a questionar: afinal onde me situo em relação à nossa própria cinematografia?

Manuel Halpern, Final Cut



Argumento, realização e montagem: Susana de Sousa Dias
Imagem: Octávio Espírito Santo
Design Sonoro: António de Sousa Dias
Som: Armanda Carvalho
Som Adicional: Paulo Cerveira e Valente Dimande
Direcção de pós-produção: Helena Alves
Mistura de som: Tiago Matos
Correcção de cor: Paulo Inês
Produção: Kintop | Ansgar Schäfer
Com o apoio de MC / ICA e RTP

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