(bela maneira de comemorar a proclamação da República!)
Três anos após Sapatos Pretos, João Canijo está de volta. Depois do Alentejo e de um "fait-divers" criminal, o cineasta volve os olhos para a distância de Paris.
Não Paris como a vemos quando vamos de visita, mas aquele lado que nunca encontramos e que só sabemos de ouvir dizer: Paris segunda cidade portuguesa, em bairros de habitação social, Paris de emigrantes em vida áspera e ensimesmada, fazendo os possíveis por não serem notados, deslizando no interior da sociedade francesa com um sentimento de gratidão por os deixarem lá permanecer, tendo a sensação aguda de ali não ser o seu lugar. Um outro Portugal, ausente, de que nos apercebemos em Agosto, pelas aldeias, ou no rigor das estatísticas. De lá quase não há notícias, que eles fazem os possíveis por as não justificar, e portanto também não há histórias. No cinema não lembro nenhuma - Ganhar a Vida tem a ousadia de ser pioneiro. Pioneiro até, no uso desse crioulo peculiar que alguns emigrantes falam, entre o francês e o português, que só temos visto em "écrans" como matéria de escárnio, mas que neste filme é uma verdadeira língua cuja utilização acentua um efeito de estranheza e uma clara definição de distância.
O entrecho de Ganhar a Vida é simples. Há uma mulher, Cidália, que trabalha de madrugada em limpezas várias, mãe de família, com o marido na construção civil e dois filhos que vão crescendo naquela desolação. O mais velho, certa noite, em rusga de polícia, é apanhado por um tiro, cruzados os mastins de caça com um bando de jovens onde certos comportamentos marginais se misturam. Morre no lajedo, entre correrias, alvoroço, gritos. A mãe fica desfeita. Só que, em vez da lusitana resignação que os usos tornaram costume, acorda-se dentro de uma vontade de reagir. Manifestando-se em frente da polícia, em sonoro toque de caixa e firmeza, tentando uma mobilização de compatriotas para abaixo-assinado pedindo que não matem os nossos filhos, tornando-se, assim, notada, com televisão a difundir o caso e a incomodidade alastrando entre os conterrâneos que sempre tiveram como verdade que essa é a última coisa que convém. E assim começa a perder tudo o que lhe resta: as amigas, a família, a paz social. Vai acabar no mais irremediável desespero.
Cidália é Rita Blanco, retornada de uma travessia pelo inferno da facilidade e do cabotinismo televisivos, já que o seu desempenho em Ganhar a Vida é exemplar de rigor e desamparo. É gratificante vê-la expulsar a máscara que a desfigurava e afivelar o rosto de actriz. Grande parte da força do filme vem dela, convindo nomear os restantes actores, em particular Adriano Luz e Teresa Madruga, contidos e acertados. A realização de Canijo utiliza-os e serve-os, em filmagem onde o vídeo torna os movimentos pressurosos, a proximidade urgente. Nunca nada de bonito se aproxima deste filme que se adequa com gravidade à realidade que mostra. O olhar é seco, exterior, a postura é de partilha. Mesmo a sequência da festa, com Romana como atracção musical, é construída sem ponta de arrogância, ironia, desdém. Sem cegueira, também - quem tem olhos para ver que veja.
Ganhar a Vida é um filme sombrio como o céu do norte de França, feio como os HLM onde os seus personagens vivem, friamente iluminados como os escritórios que elas limpam quando o resto da cidade ainda dorme, irrespirável como a tinta dos "bâtiments" que eles constroem, solitário como a vida daquela gente portuguesa que labuta tendo como horizonte a casa lá na terra que já nem é terra a que os filhos queiram pertencer. É também, provavelmente, um retrato onde não nos queremos reconhecer, os de cá ou lá. Talvez isso seja o reflexo mais nítido dos seus méritos, os que terão levado à sua selecção para o Festival de Cannes, porta aberta para a divulgação internacional de um cineasta que tanto já merece.
Jorge Leitão Ramos, Expresso, 05/05/01
PRÉMIOS
Globo de Ouro, Portugal (2002) – Prémio Melhor Actriz (Rita Blanco)
NOMEAÇÕES
Festival de Cannes, França (2001) – Selecção Oficial Un Certain Regard
Festival de Toronto, Canadá (2001) – Contemporary World Cinema
Festival de Montreal, Canadá (2001) – Nouveau Cinéma, Nouveaux Media
Festival de Senef, Coreia do Sul (2002) – Grande Prémio Senef
OUTROS FESTIVAIS
St. Paul Trois Château, França (2001)
Nice, França (2001) – Festival de Cinema Português
Bordéus, França (2001)
Frankfurt, Alemanha (2003)
Cinemateca de Bolonha, Itália (2003)
Realização: João Canijo
Argumento: João Canijo e Celine Pouillon
Música: Alexandre Soares
Fotografia: Mário Castanheira
Interpretação: Rita Blanco (Cidália), Adriano Luz (Adelino), Teresa Madruga (Celestina), Alda Gomes (Alda), Olivier Leite (Orlando), Maria David (Lúcia), Yvette Caldas (Fátima), Jinie Rainho (Jinie), Adélia Baltazar (Fernanda), Luis Rego (Adérito)
Origem: Portugal
Ano: 2001
Duração: 115’
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Globo de Ouro, Portugal (2002) – Prémio Melhor Actriz (Rita Blanco)
NOMEAÇÕES
Festival de Cannes, França (2001) – Selecção Oficial Un Certain Regard
Festival de Toronto, Canadá (2001) – Contemporary World Cinema
Festival de Montreal, Canadá (2001) – Nouveau Cinéma, Nouveaux Media
Festival de Senef, Coreia do Sul (2002) – Grande Prémio Senef
OUTROS FESTIVAIS
St. Paul Trois Château, França (2001)
Nice, França (2001) – Festival de Cinema Português
Bordéus, França (2001)
Frankfurt, Alemanha (2003)
Cinemateca de Bolonha, Itália (2003)
Realização: João Canijo
Argumento: João Canijo e Celine Pouillon
Música: Alexandre Soares
Fotografia: Mário Castanheira
Interpretação: Rita Blanco (Cidália), Adriano Luz (Adelino), Teresa Madruga (Celestina), Alda Gomes (Alda), Olivier Leite (Orlando), Maria David (Lúcia), Yvette Caldas (Fátima), Jinie Rainho (Jinie), Adélia Baltazar (Fernanda), Luis Rego (Adérito)
Origem: Portugal
Ano: 2001
Duração: 115’
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