DENTRO DE CASA| François Ozon| 2012 | 05.11.13 | Auditório do IPDJ, 21:30

DIA 05 DE NOVEMBRO
FICHA TÉCNICA
Título Original: Dans la Maison
Realização: François Ozon
Argumento: Juan Mayorga, François Ozon
Montagem: Laure Gardettte
Música: Philippe Rombi
Interpretação: Fabrice Luchini, Kristin Scott Thomas, Vincent Schmitt, Ernst Umhauer, Emanuelle Seigner, Denis Ménochet  
Origem: França
Ano: 2012
Duração : 105’

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SINOPSE
Claude Garcia, um jovem estudante de 16 anos, imiscui-se em casa de um colega de turma com intenção de observar a sua família e usá-la como inspiração para a sua escrita. Quando o ano lectivo se inicia, Germain, o professor de literatura francesa, percebe, através dos trabalhos que pede aos alunos, que aquele rapaz é possuidor de um dom raro. Apesar de introvertido e solitário, a sua personalidade cativa o professor, que considera que as obras literárias por ele criadas possuem uma força fora do comum, que vai muito além da sua idade ou maturidade. Porém, com o passar do tempo, os textos começam a revelar o seu lado "voyeurista" e perverso, com detalhes cada vez mais explícitos sobre a vida privada da família em questão. Dividido entre a decisão de o denunciar ou de o encorajar a continuar, o professor entra num perigoso jogo que porá em causa algo mais do que a sua carreira ou reputação.

CRÍTICA
"O que é, afinal, uma narrativa? Interrogação antiga que, nos tempos que correm, conduz a uma imediata problematização da "transparência" da televisão. Porquê? Porque as linguagens dominantes no espaço televisivo tendem a produzir uma máscara de ingenuidade: não haveria narrativa (entenda-se: responsabilização pelas imagens e sons) porque a televisão não seria mais do que uma "transcrição" passiva do mundo à nossa volta... Faz sentido, por isso, aconselhar o filme Dentro de Casa, do francês François Ozon, a todos os que, dentro ou fora da televisão, tentam promover uma noção pueril, não apenas do labor televisivo, mas de todo e qualquer dispositivo narrativo.
Dentro de Casa é um dos filmes mais subtilmente divertidos que, em meses recentes, chegou às salas portuguesas: uma espécie de perverso teatro de vaudeville sobre os prós e contras da arte narrativa. E, para mais, colocando em cena as vicissitudes da escola contemporânea. Tudo se passa, então, a partir da experiência de Claude (Ernst Umhauer), um aluno de 16 anos cuja qualidade de escrita começa a impressionar o seu professor de Francês, Germain (Fabrice Luchini). Empenhado em desenvolver o talento de Claude, Germain incita-o a uma observação cada vez mais apurada da realidade por ele escolhida. Acontece que essa realidade é nada mais nada menos que o quotidiano familiar de um outro aluno... Claude entrega-se com tal dedicação à sua tarefa que, a pouco e pouco, Germain começa a ficar algo perturbado (ainda que sempre seduzido) pelas componentes voyeurísticas da prosa do seu pupilo.


O ponto de partida de Dentro de Casa é a peça O Rapaz da Última Fila, do espanhol Juan Mayorga (já encenada entre nós pelos Artistas Unidos), que o próprio Ozon transformou em argumento cinematográfico. Assumindo-se como discípulo de uma radiosa tradição que passa por autores como o francês Jean Renoir ou o alemão Ernst Lubitsch, o cineasta consegue criar uma contagiante vertigem que, em última instância, discute as alianças entre realidade e desejo, percepção e imaginação, que qualquer narrativa envolve. O génio de Ozon passa pela forma como contorna a pergunta mais básica: afinal, aquilo que Claude conta nos seus textos é "verdade" ou "mentira"? Germain vai descobrindo (e nós vamos descobrindo com ele) que tal dicotomia é francamente insuficiente para lidar com o que está a acontecer. Porquê? Porque a escrita emerge como uma nova forma de poder no interior da realidade em que é lida.
Daí a espantosa atualidade política de Dentro de Casa. Através das suas peripécias, reencontramos o trabalho do narrador como um gesto primordial do próprio ser humano. Contar/escrever/partilhar uma história não é uma "transcrição" do mundo, antes o seu alargamento para novos parâmetros da realidade. Delicioso escândalo: na civilização das imagens, um filme que celebra o poder das palavras."
João Lopes, dn.pt/
"(...)Mais uma vez Ozon consegue juntar um bom leque de atores e atrizes. Os enquadramentos e os movimentos dos atores levam-nos para o lugar de uma peça de teatro. “Dentro de Casa” é um filme imperdível que nos envolve por completo na intriga. É também o melhor do cinema francês a estrear nas nossas salas de cinema, pelo menos até agora."
Tiago Resende, Cinema7arte.com/


NOIVA PROMETIDA| Rama Burshtein| 2012 | 29.10.13 | Auditório do IPDJ, 21:30

DIA 29 DE OUTUBRO
FICHA TÉCNICA
Título Original: Lemale et ha’halal
Realização: Rama Burshtein
Argumento: Rama Burshtein
Fotografia: Asaf Sudry
Montagem:
Interpretação: Hadas Yaron, Hila Feldman, Razia Israeli, Yiftach Klein
Origem: Israel
Ano: 2012
Duração : 90’

TRAILER aqui

SINOPSE
Shira (Hadas Yaron), de 18 anos, pertence a uma família judaica ortodoxa de Telavive, Israel. De casamento marcado com o rapaz por quem está apaixonada, ela está exultante com a vida que a espera. Mas essa felicidade é assombrada quando Esther (Renana Raz), a sua irmã mais velha, morre a dar à luz o seu primeiro filho. O luto toma conta da família e o casamento é adiado. É neste contexto que Yochai, viúvo de Esther, recebe uma proposta de casamento com uma viúva belga. Quando a mãe das raparigas descobre que o genro talvez tenha de sair do país com o bebé, propõe a união entre Shira e Yochay. Apesar de relutante em relação a esta união, que a vai impedir de realizar o seu sonho de criança, a jovem compreende que este casamento será a solução para homenagear a irmã e manter a família unida.
Em competição na edição de 2012 do Festival de Cinema de Veneza, um filme dramático que marca a estreia na longa-metragem da realizadora Rama Burshtein (israelita nascida em Nova Iorque), que tenta mostrar, a partir de dentro, as complexidades da vida de uma comunidade judaica ortodoxa, à qual pertence. 
CRÍTICA
NOIVA PROMETIDA de Rama Burshtein, é um filme de uma delicadeza que rarefeitas as emoções. Parece que assistimos a um mundo a nascer. (…)
É como espreitar pelo buraco de uma fechadura e dar de caras com os rostos de um mundo desconhecida, e naturalmente orgulhoso, saturado de cores, texturas e sussurros.
Vasco Câmara, Público

Mais do que um filme situado numa comunidade insular, NOIVA PROMETIDA é uma história familiar de gente normal confrontada com uma tragédia normal e reagindo-lhe de forma demasiado humana, contada com sensibilidade e bom senso. É muito bonito.
Jorge Mourinha, Público

NOIVA PROMETIDA revela-nos o melhor do cinema israelita
Jornal de Notícias

É, por certo, um dos filmes mais enigmáticos, e também mais envolventes, do nosso Verão cinematográfico: NOIVA PROMETIDA, de Rama Burshtein, encena a odisseia de uma noiva israelita
João Lopes, Cinemax

A particularidade da origem e do meio em que se desenvolve "A Noiva Prometida" - os haredim, vulgo “judeus ultra-ortodoxos” - favorecia um olhar de tipo “zoológico”, género “venham ver estes bichos raros”. E bichos raros serão, mas Rama Burshtein constrói um sentido de familiaridade que esbate a estranheza e ilude a curiosidade turística do espectador atraído por ela. A inteligência - e o sucesso do filme - vem da maneira como se embrenha na codificação social dos haredim e a filma como uma espécie de natureza narrativa. No fundo, é quase um “filme de género”, construído com códigos que é preciso aceitar para aceitar a narrativa - como um western ou como um noir (ou como os romances de Jane Austen, já que se falou neles)... Inteligente, sólido, um dos vários filmes interessantes que têm saído do cinema israelita nos últimos anos.
Luís Miguel Oliveira

APENAS O VENTO| Csak a szél| 2012 | 22.10.13 | Auditório do IPDJ, 21:30


DIA 22 DE OUTUBRO
APENAS O VENTO, Benedek Fliegauf, Húngria/Alemanha/França, 2011, 140’

FICHA TÉCNICA
Título Original: Csak a szél
Realização: Benedek Fliegauf
Argumento: Benedek Fliegauf
Fotografia: Zoltán Lovasi
Montagem: Xavier Box
Interpretação: Katalin Toldi, Gyöngyi Lendvai, Lajos Sárkány
Origem: Húngria, Alemanha, França
Ano: 2012
Duração : 86’

SINOPSE
Uma família cigana é morta a tiro durante o sono. Os assassinos não são encontrados e ninguém espera que o crime seja desvendado. Mas Birdy, uma mulher cigana, está consciente do perigo que corre. O seu objectivo é simples: juntar o dinheiro suficiente para deixar a Hungria e partir com os filhos e o pai doente para o Canadá, onde o marido se encontra emigrado, e onde espera viver longe do preconceito. Até lá, ela e as crianças apenas terão de passar despercebidos, tentando escapar ao ódio e à violência perpetrada, ano após ano, contra o seu povo.
A quinta longa-metragem do realizador húngaro Bence Fliegauf ("Rengeteg", "Dealer") é um drama inspirado em factos verídicos ocorridos entre 2008 e 2009, na Hungria, que resultaram em vários assassinatos motivados por racismo contra a etnia cigana. Apresentado no Festival de Berlim em 2012, o filme venceu o Grande Prémio do Júri (Urso de Prata) e o Prémio Amnistia Internacional.

TRAILER
CRÍTICA
Uma família cigana é morta a tiro durante o sono. Os assassinos não são encontrados e ninguém espera que o crime seja desvendado. Mas Birdy, uma mulher cigana, está consciente do perigo que corre. O seu objectivo é simples: juntar o dinheiro suficiente para deixar a Hungria e partir com os filhos e o pai doente para o Canadá, onde o marido se encontra emigrado, e onde espera viver longe do preconceito. Até lá, ela e as crianças apenas terão de passar despercebidos, tentando escapar ao ódio e à violência perpetrada, ano após ano, contra o seu povo.
Enquanto Apenas o Vento é essa angústia surda de estado de guerra latente, de conflito à beira da explosão, Fliegauf consegue criar empatia com a vida de uma minoria perseguida (cigana no caso, mas aplicável a qualquer outra).(…)”
Jorge Mourinha, Ípsilon




UMA FAMÍLIA RESPEITÁVEL| Massoud Bakhshi| 2012 | 15.10.13 | Auditório do IPDJ, 21:30

DIA 15 DE OUTUBRO
UMA FAMÍLIA RESPEITÁVEL, Massoud Bakhshi, Irão/França, 2012, 90’

FICHA TÉCNICA
Título Original: Yek Khanévadéh-e Mohtaram
Realização: Massoud Bakhshi
Argumento: Massoud Bakhshi
Interpretação: Babak Hamidian, Mehrdad Sedighian, Mehran Ahmadi
Origem: Irão/França
Ano:2012
Duração:90’

SINOPSE
Arash é um jovem académico que vive no Ocidente. Regressa ao Irão para dar aulas em Shiraz, uma cidade longe de Teerão onde a mãe vive. Arrastado para uma série de dramas familiares e financeiros, enfrenta um país que agora lhe é estranho. Na sequência da morte do pai e ao descobrir aquilo em que a sua “família respeitável” se transformou, vê-se forçado a fazer escolhas.


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NOTAS DOS REALIZADOR
Pertenço à geração que sobreviveu aos oito longos e mortíferos anos da guerra Irão-Iraque.
Atualmente, esta geração representa três quartos do país. O Irão tem uma das populações mais jovens do mundo – jovens formados, cheios de curiosidade e desejo de viver. Jovens que sonham com um Irão tolerante e aberto ao resto do mundo.
Para mim, o Irão é incompreensível se não levarmos em conta a sua história dos últimos 30 anos. Não inventei a história de UMA FAMÍLIA RESPEITÁVEL, a história é verdadeira – é a história da minha infância após a revolução de 1979, da minha adolescência durante a guerra e da minha experiência em Teerão dos dias de hoje.


(…)O cinema iraniano cada vez mais produz filmes que, em lugar de exibirem um certo apaziguamento, demonstram, sem cólera nem rancor, o rosto tenso do Irão. Mostram o desejo de fazer de um país que ganhámos o hábito de estereotipar excessivamente o terreno para grandes histórias universais. UMA FAMÍLIA RESPEITÁVEL faz parte disso. É, antes de mais, um filme de máfia construído com rigor, e filmado num ritmo espantosamente meditativo. Sob o olhar de Arash, desenvolve-se a ascensão do seu sobrinho sem escrúpulos. Arash acredita na simpatia de Hamed e afeiçoa-se a ele, enquanto que a única motivação do jovem é impedi-lo de tocar na herança do pai.
Além do interesse pela mecânica do poder, sente-se a preocupação do realizador por uma dissolução dos valores morais que vêem uma jovem geração afastar-se daquilo que era sagrado há uma ou duas gerações sacrificando-o pelo dinheiro – o único novo valor. Mas, mais uma vez, a observação crítica de um capitalismo devorador é apenas uma pista entre muitas, e o dinheiro é um sintoma horrível de uma degenerescência bem maior.
Filme de máfia, metáfora social, UMA FAMÍLIA RESPEITÁVEL lê-se como mito contemporâneo. À semelhança das antigas grandes dinastias, encena a falha de um homem transferindo o peso de uma maldição para as gerações seguintes. Aqui, é a fractura da célula familiar – o pai de Arash engravida uma outra mulher – que cinde toda a descendência em dois ramos malditos. De um lado, as vítimas (Arash e o seu irmão mártir), e do outro, os torcionários (Jafar, o filho ilegítimo, e o seu filho Hamed). Como o herói persa de onde retira o seu nome, como Édipo ou Orestes, Arash recusa submeter-se ao destino que lhe impõem. Esse destino, todavia, já não é testemunha das inquietudes originais do mundo, mas antes da sua evolução em sentido contrário ao de toda a mística.
O derradeiro refúgio, a última referência de Arash com valor, são as mulheres que o rodeiam. Bem antes de ele conseguir perceber a armadilha, elas já adivinharam. Elas continuam a lutar por aquilo que os homens parecem ter desistido de defender: a integridade, o respeito pelo outro, a família. Desejoso de mostrar que já não se trata de trabalhar um arquétipo feminino, é às mulheres do seu país que Massoud Bakhshi dedica o seu filme. Mas esta discrição fundamental faz sentido: é preciso colocar a esperança naquelas e naqueles usam as palavras e os gestos com parcimónia, mas que estendem o braço para impedir a queda daqueles que caminham em frente e falam alto.
Noémie Luciani – Le Monde





LIKE SOMEONE IN LOVE| Abbas Kiarostami| 2012 | 08.10.13 | Auditório do IPDJ, 21:30

DIA 08 DE OUTUBRO
LIKE SOMEONE IN LOVE, Abbas Kiarostami, Japão/França, 2013’

FICHA TÉCNICA
Título Original: Like Someone in Love
Realização: Abbas Kiarostami
Argumento: Abbas Kiarostami
Interpretação: Rin Takanashi, Tadashi Okuno, Ryo Kase
Origem: Japão/França
Ano: 2013
Duração : 109’


SINOPSE
Uma jovem mulher e um velho encontram-se em Tóquio. Ela não sabe nada sobre ele, ele pensa que a conhece. Ele recebe-a em sua casa e ela oferece-lhe o seu corpo. Mas a teia que se tece nas vinte e quatro horas seguintes supera as circunstâncias do seu encontro. 



CRÍTICA
Depois da Toscana, onde filmou "Cópia Certificada", Abbas Kiarostami segue para o Japão, território de "Like Someone in Love". Mas ao contrário de "Cópia Certificada", onde não era nada indiferente o cenário circundante, integrado no filme também como reflexão sobre a arte, a cultura e a história italianas, em "Like Someone in Love" o Japão é muito mais apenas um cenário. Quer dizer: o filme está lá dentro, dos bares, das casas, das ruas, sem uma nota em falso, e até há uma pequena prelecção sobre uma pintura japonesa do século XIX, mas é difícil pensar que “reflectir” sobre o Japão, ou sobre a sua condição de cineasta estrangeiro a filmar no Japão, tenha sido uma preocupação de Kiarostami. Nem mesmo Ozu, que é uma das grandes referências de Kiarostami (até já lhe dedicou um filme: Five - Dedicated to Ozu), vem muito ao caso, e também é dificil pensar nalgum momento que soe a “homenagem” ao cineasta japonês: nem sombra de algo parecido com um “plano Ozu”.


Como Kiarostami diz, de resto, o filme nem foi especificamente pensado para ser feito no Japão. Concentra-se nas personagens, e no espantoso grupo de actores que as interpreta, é provavelmente o filme de Kiarostami mais character-driven, mais guiado, em última análise, pelo desenho das personagens e das relações entre elas. Com um pudor e uma subtileza enormes: nunca se diz claramente, por exemplo, que a protagonista feminina é universitária de dia e prostituta à noite, e no entanto isso fica plenamente sugerido, por meias palavras, ao fim de poucos minutos, naquela sequência assombrosa de campos/contracampos, cheios de movimento interno, que abre o filme dentro dum bar de Tóquio. Assim como nunca saberemos exactamente - as elipses de Kiarostami são sempre magistrais - o que se passou de facto na noite que a rapariga passou em casa do professor que recrutou os seus serviços. Que é de resto, toda ela, uma sequência excepcional, completamente “centrípeta”, sempre a fugir para o lado do que naquela situação seria essencial: as interrupções (os telefonemas que o professor recebe, de alguém a pedir-lhe uma tradução), as derivas (a tal conversa sobre a pintura, pendurada na parede), o vinho e a sopa de camarão com que o professor tenta arrancar a rapariga ao torpor sonolento em que cai (até se transformar ela própria, por obra e graça de um enquadramento de génio, numa “pintura na parede”, a sua imagem esfumada reflectido num espelho ao canto do plano).

Essa sequência, de resto, dá sentido ao título do filme. É nela que se ouve a canção homónima de Ella Fitzgerald, tocada na aparelhagem do professor, e é durante ela que as personagens mais supostas são comportarem-se “como alguém apaixonado”. A rapariga, por profissão, o professor, por ocasião. Entra em cena, portanto, uma espécie de teatro, em que toda a gente representa um papel perante os outros, que não mais largará o filme. Quando saiem de manhã, e depois de encontrarem o namorado da rapariga, o professor e ela passam a apresentar-se “como avô e neta”, mascarada que será mantida perante todos os outros secundários, incluindo a espantosa personagem da vizinha, que começa por ser só uma voz e depois tem direito a um plano inteiro só para si Incidentalmente, essa personagem e esse plano são o que desperta mais “memórias” do cinema japonês, mas a “representação” do velhote e da rapariga, sempre sobre ameaça de “desmontagem”, fazem pensar em algo mais inesperado, uma espécie de pequeno Vertigo, com um homem mais velho a passear uma mulher mais nova que ele, de certo modo, “inventou”. Os planos com o automóvel, os reflexos no vidro, ora o céu e as nuvens ora as construções arquitectónicas dos arredores de Tóquio, talvez não sejam, nesse sentido, puramente inocentes. O automóvel, de resto, continua a ser o “dispositivo” preferido de Kiarostami, e é dentro de automóveis que se passa boa parte do filme - incluindo, ainda não tínhamos referido, um magnífico travelling por Tóquio by night, na mais dorida sequência do filme, aquela em que a rapariga, em trânsito para o “encontro” em casa do professor, ouve, uma a uma, as mensagens telefónicas que a avó, que passou o dia na estação de comboios à espera dela, lhe foi deixando (e essa avó, que é só uma voz no telemóvel e depois uma silhueta entrevista numa praça de Tóquio, é outra personagem extraordinária, possível rima para a da vizinha do professor no modo como lutam para sairem do fora de campo a que as outras personagens as remetem).

Todas as mentiras, fakes e mistérios que pontuam o filme ficarão em suspenso. Naquele final inacreditavelmente violento, cheio de ruidos e interrupções (as campainhas, os telefones), e outra personagem (o namorado) revoltada também com o “fora de campo” a que o par central a condena. O que é que ali se passa verdadeiramente, o que é que se passou depois de Kiarostami ter cortado para o genérico de fecho sem mais delongas, permanece um enigma, fabricado à custa de uma secura inexorável. Também aí estamos próximos do mais puro e mais “iraniano” Kiarostami.
Luís Miguel Oliveira, Ípsilon