agenda de janeiro 2018

                ciclo do mês - terça-feira à noite
          ventos do leste - primeiro sábado do mês à noite
               video lucem - segundo sábado à noite (em Martinlongo)
                        duplas - terceiro sábado à tarde
animação para todos - terceiro domingo ao fim da manhã

                      

O DIA DO CINEMATÓGRAFO | 28 DEZ | IPDJ- FARO

No intervalo entre festas, celebramos o Dia do Cinematógrafo – uma homenagem à primeira sessão pública de Cinema, feita pelos irmãos Lumière no Grand Café em Paris, com sessões para todas as idades, um jantar inspirado na gastronomia popular francesa, soirée e tertúlia regada a vinho e chocolate quente.


Declinámos o tema dos irmãos, desde a fábula animada (Azur e Asmar), à contaminação entre o real e os contos fantásticos (Os Irmãos Grimm), à representação teatral no cinema (a influência dos raios gama no comportamento das margaridas), à recriação de um tempo e de uma invenção que mudou o mundo (Lumière! A aventura começa).
Filmes para todas as idades, filmes de todos os géneros. FILMES - a aventura de uma arte que sobrevive e permanece no tempo.


clipping : 



11:30

AZUR E ASMAR
Michel Ocelot, FR: 2006. (M/4)
-falado em português-

FICHA TÉCNICA
realização: Michel Ocelot
argumento: Michel Ocelot
música: Gabriel Yared
montagem: Michèle Péju
origem: França
ano: 2006
duração: 99'
classificação etária: M/4

FESTIVAIS E PRÉMIOS
2007 | Munich Film Festival - Prémio do público infantil

NOMEAÇÕES

 2007 | Festival Internacional de Cinema de Animação Annency - melhor longa metragem
2007 | Prémios Cesar - melhor música para filme
2008 | Prémios Goya - melhor filme de animação

SINOPSE
Azur e Asmar foram criado pela mesma mulher, Jenane, uma ama-de-leite. Azur é louro, de olhos azuis e filho de um nobre, enquanto Asmar é filho de Jenane e tem olhos e cabelos pretos. Os dois rapazes cresceram juntos como se fossem irmãos, até ao dia em que Jenane partiu com o filho. Já adulto, Azur, ainda fascinado com as histórias sobre a lendária Fada dos Djins que a ama lhe contava, decide partir à sua procura acompanhado pelo andarilho Crapoux. Na viagem por terras onde viveu em criança, Azur acaba por reencontra Asmar, que também está em busca da fada. Agora como rivais, os dois irão viver aventuras cheias de perigos e feitiços por terras mágicas onde apenas um alcançará o tão desejado objectivo...


14:30


OS IRMÃOS GRIMM
Terry Gilliam. US/CZ/UK: 2005. 120' (M/12)

FICHA TÉCNICA
realização: Terry Gilliam
argumento: Ehren Kruger
música: Dario Marianelli
fotografia: Newton Thomas Sigel
montagem: Lesley Walker
origem: US/CZ/UK
ano: 2006
duração: 120'

elenco: Matt Damon, Heath Ledger, Monica Bellucci, Charles Roven, Jonathan Pryce, Lena Headey, Peter Stormare

SINOPSE
É a história das aventuras dos lendários escritores de contos de fadas, os irmãos Will e Jake Grimm. Os dois irmãos, no início do século XIX, nas suas viagens, fingem que livram os habitantes de monstros e demónios para ganhar dinheiro fácil. Mas, quando são chamados pelas autoridades francesas para ajudarem a desvendar o misterioso desaparecimento de umas jovens, vêem-se forçados a enfrentar forças malignas reais.
Cinderela, O Capuchinho Vermelho e Hansel e Gretel são algumas das personagens que são metidas ao barulho no filme realizado por Terry "Monty Python" Gilliam. PÚBLICO




CRÍTICA
Fábulas e efeitos especiais do século XIX`

Há todo um estilo de jornalismo irresponsável, por vezes disfarçado de crítica de cinema, que fala de efeitos especiais como algo que tem a ver apenas com extraterrestres e naves espaciais… Mais ainda: como um conjunto de técnicas que o cinema teria descoberto nos últimos anos, para não dizer nos últimos meses. Poderemos sempre contrapor que o conceito (e a prática) de efeito especial já existe em muitos filmes de George Méliès, fabricados nos primeiros anos do século XX. Em todo o caso, ao filmar «Os Irmãos Grimm», Terry Gilliam parece querer introduzir uma bizarra derivação na vasta história da fabricação visual (e sonora) da ilusão e do fantástico. Isto porque, no seu filme, Jakob (Heath Ledger) e Wilhelm Grimm (Matt Damon) são, de facto, verdadeiros artesãos de efeitos especiais, com isso levando uma existência que não prima pela honestidade social.

O curioso argumento de Ehren Kruger (que escreveu, entre outros títulos, «The Ring» e «The Ring 2») apresenta os Grimm como exploradores das crenças sobrenaturais das populações da região de Praga, durante a primeira metade do século XIX. Surgindo sempre onde há «maldições» e «assombramentos», eles encenam espectaculares exorcismos que, ingenuamente, os camponeses recebem (e pagam) como verdadeiros rituais de purificação.

Até que um dia, os Grimm se vêem forçados a experimentar os poderes sobrenaturais das fábulas («Cinderela», «Hansel e Gretel», «O Capuchinho Vermelho», etc., etc. ) que, mais tarde, os viriam a celebrizar. O seu confronto com a «Rainha do Espelho» (Monica Bellucci) transforma-se numa lição prática sobre o mais velho sobressalto narrativo do género fantástico: o feitiço vira-se contra o feiticeiro, ou seja, os Grimm acabam por enfrentar a verdade «concreta» dos artifícios que apenas encenavam.

Sustentado por um notável trabalho de cenografia e guarda-roupa, coordenado pelo designer inglês Guy Hendrix Dyas, «Os Irmãos Grimm» consegue aquilo que, em tempos recentes, tanto tem faltado ao cinema de Terry Gilliam, nomeadamente em «Delírio em Las Vegas» (1998). A saber: um sentido dramático e poético do espectáculo que não transija com «experimentações» que acabam por se revelar formalmente supérfluas e inconsequentes no plano emocional.

Nesta perspectiva, não deixa de ser curioso que um filme como «Os Irmãos Grimm» tenda a ser catalogado como uma emanação directa de Hollywood quando, de facto, se trata de um produto genuinamente europeu: a chancela internacional de um dos grandes estúdios de Hollywood (MGM) não anula o facto essencial de estarmos perante um objecto fabricado deste lado do Atlântico (veja-se, no genérico final, a sua identificação como uma produção de Grã-Bretanha e República Checa). Será essa a ironia final: a de, em tempos de muitos efeitos especiais made in USA, «Os Irmãos Grimm» saber devolver os seus protagonistas às raízes germânicas das suas fábulas.

João Lopes. Diário de Notícias (29-9-2005)


17:30
A INFLUÊNCIA DOS RAIOS GAMA NO COMPORTAMENTO DAS MARGARIDAS
Paul Newman. US: 1972. 101’ (M/16)

FICHA TÉCNICA
realização: Paul Newman
argumento: Alvin Sargent
a partir da peça de teatro de Paul Zindel
música: Maurice Jarre
som: Dennis Maitland e Roben Fine
fotografia: Adam Holender
montagem: Evan A. Lottman
cenários:  Richard Merrell
guarda-roupa:  Anna Hill Johnstone
país: US
ano: 1972
duração: 101'

elenco:
Joanne Woodward,  Nell Potts, Roberta Wallach


FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Cannes - Prémio Melhor Actriz


SINOPSE
Baseado na peça de Paul Zindel vencedora de um Prémio Pulitzer, o filme conta a história de uma viúva ressentida que cria as suas duas filhas num ambiente deprimente e disfuncional. Enquanto a mãe sucumbe ao seu alcoolismo e a irmã se refugia no tédio, a filha mais nova tenta sair-se bem na escola e manter uma atitude positiva perante a vida. ALAMBIQUE FILMES
21:30
LUMIÈRE! A AVENTURA COMEÇA
Thierry Frémaux. FR: 2016. 90’ (M/12)



Bertrand Tavernier e L’Institut Lumière apresentam
com Sorties D’usine Productions
um filme composto e comentado por Thierry Fremaux
a partir de uma série de vistas cinematográficas rodadas por Louis Lumière
e os seus operadores entre 1895 e 1905
um filme apresentado por Bertrand Tavernier
comentários escritos e ditos por Thierry Frémaux
uma produção Institut Lumière - Sorties D’usine Productions
produção executiva Maelle Arnaud
produção Cécile Bourgeat
conselheiro Lumière Fabrice Calzettoni
montagem Thomas Valette, Thierry Frémaux
música Camille Saint-Saëns (Edições Naïve E Universal Music Vision)
pós- produção Silverway Media
distribuição Midas Filmes
vendas Internacionais Wild Bunch
restauro dos filmes Lumière financiado por CNC
no âmbito de Aide Sélective à la Numérisation des Oeuvres Cinématographiques du Patrimoine
com o apoio de Fondation D’Entreprise Total
no âmbito da parceria com Fondation Du Patrimoine
restauro Eclair Group
scan 4k Immagine Ritrovata L’Institut Lumière
e apoiado por CNC- Ministère De La Culture Et De La Communication – Cidade De Lyon e Métropole de Lyon e a  Région Auvergne-Rhône-Alpes

SINOPSE

Em 1895, Louis e August Lumière inventam o cinematógrafo e filmam alguns dos primeiros filmes na história do cinema. Com a descoberta da mise-en-scène, dos travellings e ainda dos efeitos especiais e remakes, também inventaram o cinema enquanto arte. Dos seus mais de 1400 filmes, Thierry Frémaux, director do Festival de Cinema de Cannes e do Instituto Lumière, seleccionou 114: obras de arte mundialmente conhecidas ou descobertas de filmes antes desconhecidos, recuperados em 4K e reunidos para celebrar o legado dos Lumière. MIDAS FILMES



FESTIVAIS E PRÉMIOS

Festival de Cannes
Festival Internacional de Cinema de Toronto


Lumière: os homens que inventaram o cinema três vezes

Para Louis e Auguste era preciso estarmos todos juntos para olharmos para uma imagem. Os últimos inventores foram os primeiros cineastas. Técnica, arte, colectivo. A pedagogia e doçura de Lumière! A Aventura Começa, de Thierry Frémaux, lava o olhar.

O primeiro cinema disse logo quem somos. “A primeira personagem é a multidão, o povo. O primeiro cinema disse logo que o cinema era para dizer quem somos.” As palavras são de Thierry Frémaux e libertam a palavra do Cinematógrafo Lumière. Esses filmes, os primeiros, realizados entre 1895 e 1905, estão desde hoje a falar connosco numa sala e a contar-nos a nossa história de espectadores. Talvez seja esse o risco de melancolia — ou talvez não, talvez seja libertador — de Lumière! A Aventura Começa: levar o espectador, intensificado pela revelação tão intensa, tão pura, tão presente, destas imagens que vêm ainda do século XIX, a perguntar-se onde é que está hoje. E a libertar o olhar.

“Melancolia? Não, sou um cinéfilo que conhece bem a sua história, a melancolia foi já ocupada por Wim Wenders, por Serge Daney [1944-1992, crítico nos Cahiers du Cinéma, Libération, revista Trafic], por muita gente. É por isso que tento encontrar o que me pertence na história do cinema. A sala de cinema para mim não é melancolia, é convívio” — é por isso que de Frémaux, 57 anos, delegado-geral do Festival de Cannes, director-geral do Instituto Lumière, cinturão negro em judo, fanático de Bruce Springsteen, se diz que olha sempre para um copo meio cheio em vez de contemplar um copo meio vazio.

Esta espécie de documentário histórico que é, afinal, um filme a perguntar pelo presente, Lumière! A Aventura Começa, vem de Lyon, do Instituto Lumière, do local onde funcionaram as instalações em que os irmãos Auguste e Louis captaram a primeira personagem de cinema, o povo (La Sortie de L’usine Lumière a Lyon, 1895). Faz uma montagem de 114 dos 1422 filmes que constituem o legado de Louis e Auguste. Foi de Lyon, do mesmo instituto Lumière, que este ano nos chegou também Viagem pelo Cinema Francês com Bertrand Tavernier, que, sendo um percurso pessoal por cineastas e épocas, perguntava pelo pacto forjado (há 122 anos com a invenção do Cinematógrafo) entre o ecrã e o espectador. Frémaux é director-geral do Instituto Lumière. Tavernier é o presidente. Nada disto pode ser pura coincidência.

“É coincidência e não é. De alguma maneira estou na origem do filme de Bertrand, fui eu que lhe disse: ‘É preciso que gravemos a tua palavra, a tua memória, a tua forma de falar do cinema, é preciso que gravemos os actores, realizadores, compositores de que estás sempre a falar’” — fundamentalmente, o realismo francês dos anos 30. “E tem razão,  Lumière! A Aventura Começa é um filme feito no presente. Há 20 anos que eu mostrava os filmes Lumière por todo o lado, com comentário live, dizendo: ‘O filme é isto, é isto, é isto...’ São filmes que foram esquecidos e que foram redescobertos. Tenho uma forma pessoal de os mostrar, mas isto não é um filme ‘de’ Thierry Frémaux. Com os filmes Lumière eu quis fazer um filme Lumière, para que eles pudessem ter os seus filmes de regresso a uma sala de cinema.”

O primeiro dos cineastas

A história de Thierry com Auguste e Louis começou em Lyon, em 1982, quando “ninguém falava dos Lumière”. Os locais, a casa da família Lumière, eram territórios devastados, a memória vaga. Frémaux era jornalista da rádio, amador, interessava-se por cinema, era estudante. Houve uma conferência de Tavernier, “que queria construir uma cinemateca no lugar onde o cinema tinha nascido”. Frémaux foi cobrir a conferência. Tavernier “falou, falou, falou”. “E o primeiro director do Instituto Lumière, Bernard Chardère, propôs: ‘Já que estamos aqui, vamos ver La Sortie de L’usine Lumière...’ em 35mm. Eu tinha a ideia de ter visto L’Arroseur arrosé” — pedaço de burlesco, uma mangueira, uma partida, água — “e olho para La Sortie de L’usine Lumière ... emocionado... lembro-me como se fosse ontem. Mais tarde tornei-me historiador. E nunca mais saí de Lyon. Ao trabalhar no Instituto Lumière pensei que era preciso dar esse legado a conhecer a toda a gente. Conhecia um, dois ou três filmes Lumière, e comecei a conhecer mais e a perceber a importância. Foi como se tivesse começado de novo. Ao prepararmos o centenário do cinema, em 1995, tinha o hábito de fazer comentário live [sobre as imagens dos filmes].”  Vimo-lo, ouvimo-lo, numa sessão ao vivo: Frémaux live é joyeux... “Agora, fazemos um filme Lumière.” Com música de Camille Saint-Saëns, contemporâneo de Auguste e Louis, e um texto que fixa o essencial dos comentários das sessões ao vivo, mas que, desta vez admite, é “mais melancólico”.

“Como qualquer cineasta, Lumière regressa ao cinema.” Repare-se: como um cineasta; não como inventor. A voz de Frémaux liberta o cinema que está nas imagens  Lumière, os últimos dos inventores e os primeiros dos cineastas: são os travellings, a ficção e o documentário — o documentário ficcionado —, é o suspense, a comédia (L’Arroseur arrosé) e o filme de família (Le Repas du bébé), é a invenção do remake (as várias versões, cada vez mais encenadas, de La Sortie de L’ Usine Lumière... ), a composição dos planos, as linhas diagonais, a intuição do cinemascope, é o diálogo moderno entre o ecrã e a sala (“personagens” que, sabotando as tomadas de vista documentais, incentivam os espectadores a reagir — o cinema como espectáculo colectivo).

“Devo contar uma história com uma câmara, como e qual a posição dela? Essa é a questão de sempre, é a questão dos cineastas de hoje.” Era já a questão do cinema Lumière: 17 metros de película para cada tomada de vista, 50 segundos, era preciso encontrar o lugar justo para a câmara.

“Fizeram experiências, descobertas, surpresas, Eram técnicos e artistas. Hoje, com o tempo, esse grande crítico, podemos medir a importância desses filmes, a sua inocência e verdade. Hoje um cineasta também quer encontrar a sua verdade. Um filme continua a viver, se fica nele alguma verdade do instante em que foi feito. Mesmo nos filmes falhados dos Lumière, há algo de verdade.”

Frémaux encontra neles Spielberg, Ford, Raoul Walsh, Eisenstein, Ozu, Truffaut, Hitchcock, Richard Fleischer ou James Cameron. Como se essas tomadas de vista contivessem já a disponibilidade para a história do cinema, como se a anunciassem. 

“A minha voz é a voz do professor, do guia, do pedagogo. É a voz do acompanhante, do admirador. E a voz da transmissão. Eu sei melhor do que todos porque é o meu trabalho. E aquilo que sei dou. Havia outras maneiras de o fazer, esta é a minha. Sou cinéfilo, leio os filmes com a história do cinema. Pode-se fazer um comentário unicamente sociológico ou unicamente histórico. Eu faço isso, mas faço sobretudo cinematográfico.

Numa sessão live, perante o transbordante travelling de Le Village de Namo (1900), filmado numa aldeia vietnamita pelo operador Gabriel Veyre, Frémaux encontra já a antecipação do corpo, queimado pelo napalm, de Kim Phuc a correr naquela fotografia da Associated Press de 1972. Um cineasta é alguém com intenções. Os Lumière, entre 1895 e início de 1896, filmaram as suas cenas domésticas. Depois, correram o mundo, viajaram de balão, subiram à Torre Eiffel e aos glaciares, recrutando operadores que enviaram para os cinco continentes com indicações precisas. Como uma escola.  Como o fizeram? Sabe-se pouco.

A democracia da imagem

“É de facto como uma escola de cinema. Louis Lumière, dos irmãos era ele que filmava, tinha uma autoridade que lhe permitia dizer: ‘O cinema é para fazer assim, assim, assim.’ Os operadores tinham ordens, o que estava em Moscovo e o que estava em Tóquio faziam o mesmo filme. É espantoso não só que o inventor do cinema seja também um cineasta, mas que um cineasta seja também um produtor. É alguém que recruta operadores, que lhes dá lições rápidas, e eles partem para o mundo para fazer filmes.”

Não há arquivos que documentem essa relação — não há muitos arquivos sobre os Lumière, que fizeram cinema durante dez anos e depois... “A família não se interessou; Louis morreu em 1948, Auguste em 1954. Durante muito tempo não houve o valor do tempo. Quer em França, quer em Lyon. As pessoas não se interessavam.”

Não há muitos documentos, “mas há algumas cartas, há recordações de operadores, há o diário de Gabriel Veyre, que foi ao México, ao Vietname, ao Japão”. “Pode fazer-se a história Lumière como uma história de hipóteses, de ideias, que nos obriga a reflectir. Da mesma maneira que ver os filmes Lumière nos lava os olhos, nos limpa o cérebro, nos obriga a compreender o que é um plano, o que é o tempo. Reflectir.”

Por exemplo, sobre “a democracia da imagem” no cinema Lumière. “Veja-se a forma como se filmam as crianças.” A infância é determinante, salienta Frémaux, é nela que está o começo.

“E nos filmes internacionais, há o respeito pela identidade: o filme russo não é como o filme japonês ou o filme americano. Havia um político em França, Jean Marie le Pen, que dizia: ‘Prefiro a minha filha à minha prima, a minha prima à minha vizinha, a minha vizinha a uma estrangeira.’ O cinema Lumière é o contrário disso.”

Jean Renoir dizia que se compreendia o mundo no cinema dos Lumière mais do que em qualquer enciclopédia. Num arregaçar de mangas pedagógico — coisa a três, Renoir, Henri Langlois e Eric Rohmer, que os filma em Aller au Cinéma: Louis Lumière, 1968) —, o realizador de A Regra do Jogo notava que os “documentários” Lumière não faziam apenas a fixação de algo para transmissão futura, havia a intromissão da recriação. “O que é aquilo a que chamamos hoje obra de arte.” Não se mostrava apenas a realidade, abriam-se as portas à incontinência fantasista — dessa forma Louis, ou um dos seus operadores, metia-se no plano. No sabor a falso que algumas “tomadas de vista” cómicas exibem Renoir via a ironia, a personalidade do realizador,  a manifestação de um artista — e de um espírito francês, a tradição do “fazer de conta”.

Langlois sublinhava — continuamos nas conversas de Aller au Cinéma: Louis Lumière — que um plano de um filme Lumière, e sem mexer a câmara, continha no seu movimento interior todas as variações, do plano de conjunto ao grande plano. E em estocadas definitivas, o fundador da Cinemateca Francesa atira sobre o Cinematógrafo Lumière: “Ce n’est pas l’histoire qu’il a montré, c’est la vie.” Isto é, a arte, a filosofia, os sentimentos, a atmosfera de uma época, a vida como imponderável, e a arte, o impressionismo, que a captou dessa forma. Está tudo no renoiriano, de Jean e Pierre-Auguste, La Petite fille et son chat. Ou ainda: “O que é serôdio nos filmes dos Lumière: a burguesia. O que é moderno? As pessoas do povo.” Continuamos próximos das pessoas desses filmes.

Tradição francesa

E, no entanto, apesar de “lumièristas” convictos — Renoir, Langlois, Rohmer ou ainda Maurice Pialat, Godard —, “em  França a tradição do ódio de si mesmo levou sempre os franceses a atacar os Lumière quando se posicionavam na polémica sobre a invenção do cinema”. “Muitas vezes os historiadores de cinema não sabem do que falam. Um dia alguém disse: ‘Lumière inventa uma máquina, George Méliès [1861-1938] inventa o cinema.’ Lumière é contestado como inventor — porque depois diz-se que não foi ele, foi Thomas Edison — e como cineasta: porque não teria sido ele, teria sido Méliès. Não. Lumière é também Edison, Lumière é também Méliès. Lumière é melhor do que Edison, Lumière é diferente de Méliès — que, aliás, acho passadista. Há inventores antes, mas não há nenhum depois. Quando os Lumière fazem o primeiro filme, está feito. Ponto final. Griffith acontece depois, e como artista é como Lumière. Vai experimentar, vai reflectir. Quis fazer este filme para ir contra clichés — que os Lumière fizeram cinema sem saber que estavam a fazer, que não eram artistas, que nem eram inventores, porque isso era o Edison. Também se disse que Lumière era o documentário e que Méliès era a ficção. Nada disso. A diferença entre Lumière e Méliès não é entre documentário e ficção, é entre Rossellini e Fellini. Lumière é: ‘Pego no mundo tal como ele é e registo-o e projecto-o.’ É Rossellini, é Renoir, é Pialat, é Kechiche. Méliès é Fellini, é Hollywood, é Jacques Demy: ‘Pego no mundo e reinvento-o.’ Não é uma oposição, é uma complementaridade.”

“Desde que cheguei ao Instituto Lumière”, continua Frémaux, que em Lumière! continua com doçura a pedagogia austera de Langlois/Renoir, “disse a mim próprio que era preciso convidar os cineastas para lhes mostrar a sua existência, que não se tratava só de uma coisa técnica, era também a sua origem artística. Ver estes filmes em Lyon é como assistir ao seu nascimento outra vez.” Recorda, no passado, Kazan e Mankiewicz (“foi como se encontrassem a sua família”); posteriormente convidou Cimino, Almodóvar, Sorrentino ou Scorsese a filmarem a sua tomada de vista no local onde, em 1895, Auguste e Louis registaram a saída da fábrica Lumière.

“A TV não se substituiu ao cinema, nem as séries de TV. O cinema mantém algo de protótipo, de singular. E, quando é assim, o desejo de mundo existe, quer seja em Nuri Bylge Ceylan, quer seja em Kathryn Bigelow. Mas é preciso que o cinema esteja à altura. Esse é o desafio. Desde o início do cinematógrafo que o cinema me disse quem eu era e quem eram os outros. É essa a sua missão.”

Não se deve menosprezar o facto de Lumière! A Aventura Começa e Viagem pelo Cinema Francês com Bertrand Tavernier , na sua aparência de documentários históricos de montagem, terem vindo dizer coisas essenciais sobre o que de mais subterrâneo se passa numa sala face a um ecrã, sobre o que projectamos, sobre uma construção utópica, um pacto, sobre o grupo – sobre o que hoje resta. Não é por acaso que, num ciclo que a Cinemateca programa para 2018 sobre O Medo, haja uma sessão, a primeira, que juntará a Psico de Hitchcock, L’Arrivée d’un train en gare de La Ciotat, o filme Lumière que assustou os primeiros dias do cinema. E quando vemos as escolhas de Tavernier, no seu documentário, o impulso por Renoir, Duvivier ou Jacques Becker, percebe-se que o realismo como essência do cinema francês foi fundado por Louis e Auguste.

“Completamente”, concorda Frémaux. “Os Lumière inventam três vezes o cinema: a técnica, a arte e a sala. Em 1895 havia Edison contra os Lumière, o cinetoscópio, consumo individual das imagens, contra o cinematógrafo. Para os Lumière era preciso estarmos todos juntos para olharmos para uma imagem. Lumière triunfa, porque era isso que as pessoas queriam: que o cinema fosse um espectáculo. Hoje, 120 anos depois, quando o numérico triunfa, com a TV, a Internet, a Netfix, o cinema continua a ser  singular. Permanece uma arte colectiva, mesmo se vemos DVD em casa — ir ao cinema mantém o seu prestígio.” Frémaux sempre a ver os copos meio cheios? “Hoje os filmes são a manipulação a todo o tempo. Quando se via Apocalypse Now, havia 5 helicópteros, não 50. O cinema dos Lumière é parecido. Se hoje algo no cinema mudou, com os Lumière podemos ainda ter confiança”. A isto não se chamará... melancolia?

Vasco Câmara, Público (13 de outubro de 2017)

120 BATIMENTOS POR MINUTO | 19 DEZ ! TEATRO DAS FIGURAS | 21H30



120 BATIMENTOS POR MINUTO
Robin Campillo
França, 2017, 143', M/16


FICHA TÉCNICA
Realização: Robin Campillo
Argumento, Adaptação, Diálogos: Robin Campillo
com a colaboração: Philippe Mangeot
Montagem: Robin Campillo
Imagem: Jeanne Lapoirie A.F.C 
Música: Arnaud Rebotini
Interpretação: Nahuel Pérez Biscayart, Arnaud Valois, Adèle Haenel, Antoine Reinartz, Félix Maritaud
Origem: França
Ano: 2017
Duração: 143’

FESTIVAIS
Festival de Cannes - Grande Prémio do Júri
Prémio da Crítica Internacional
  


CRÍTICA
Filme-performance da memória. O individual transforma-se em colectivo, no histórico pulsa o íntimo. 120 Batimentos por Minuto : como uma narrativa mitológica que se propaga para (re)construir, solidificar o grupo.
Pedaço de vibrante pedagogia, a primeira meia-hora de 120 Batimentos por Minuto, de Robin Campillo, coloca o espectador no centro de um anfiteatro de ideias e sensualidade — a sala de cinema, esperamos, mas também funciona a sala aí de casa. “O que é o Act Up?”, pergunta-se. A explicação é dada de seguida, e, pacto que não pode ser menosprezado, tem em atenção o espectador. Somos bem-vindos.
Desenvolvem-se de seguida a retórica, os rituais e a política (e a reflexão sobre a acção) do ramo francês do Act Up, o grupo de activistas seropositivos formado em 1987 para agir sobre uma epidemia, para combater o silêncio de leis e instituições. Soltaram a palavra e os actos, espectaculares, trágicos, reactivaram a energia nos corpos doentes, impuseram a sua história íntima a uma História oficial. Quiseram lutar contra a devastação nas suas vidas, ser actores, não figurantes — assim ocupam o palco nos momentos iniciais, é assim que 120 Batimentos por Minuto começa, como uma ocupação. Foram performers heróicos que devolviam a violência que se abatera sobre eles.
Nesse começo, 120 Batimentos...mostra logo a sua energia performática. A partir daí haverá sempre metamorfoses, o individual transformando-se em colectivo, no histórico latejando o íntimo — encontra-se sempre a política contígua às zonas erógenas —, o debate dando lugar à dança. A própria ideia de “plano” ganha, em vários momentos do filme, diferentes vidas. É uma dieta omnívora.
 
Passando-se nos anos anos 90, período em que os efeitos da epidemia foi mais dramático em França (em 1992 Robin Campillo, saído do IDHEC, o Instituto de Altos Estudos Cinematográficos francês, aderia ao Act Up), não é um filme de reconstituição de época. O realizador diria, numa formulação muito feliz, que um filme tem de estar sempre, nos cenários, no guarda-roupa, nos diálogos, entre hoje e o passado para o espectador não sair do presente. 120 Batimentos por Minuto (a terceira longa de Campillo, depois de em Les Revenants, de 2004, e Eastern Boys, de 2013, ter negociado, em andamento inicialmente constrangido e depois conseguindo libertar-se, a presença e a memória dos que morreram) faz então intervenções sobre a narrativa que constituem um espectáculo em si. Tremendamente jubilatório. Nessa sequência de que falamos, por exemplo, o “presente” e o “passado” são distinções inoperantes para dizer o que se está a passar no ecrã: narrações, recriações, projecções, fantasmagorias, movimentos do grupo e “solos” de uma personagem, como uma narrativa mitológica que se propaga para (re)construir, solidificar a identidade dos grupos, a sua memória. Há um colectivo de activistas, seropositivos e seronegativos (estes sabem que, como membros do Act Up, a sua realidade serológica será sempre “representada” de outra forma publicamente...). Há Sean (Nahuel Pérez Biscayart) e Nathan (Arnaud Valois), um beijo como provocação política a iniciar uma história privada — numa cena de sexo estaremos com o passado de ambos, cada um conta a sua história ao outro e esse passado apresenta-se na cama. Têm diferentes velocidades Sean e Nathan: distâncias incomparáveis face à morte. Sendo criações da escrita de Campillo a partir de figuras que cruzaram a vida do realizador, sendo um pedaço da sua biografia (Nathan diz coisas que Robin diz no perfil que traça de si próprio em Agir pour ne pas mourrir, livro de Christophe Brocqua sobre a história do Act Up) são personagens mas são acima de tudo reservatórios de memória disponibilizados ao espectador. Que o convocam — é essa, julgamos, a experiência permitida pelas sequências de dança, momentos em que o individual se dissolve no colectivo e que incluem o espectador nesse abandono (uma sala de cinema cheia, aqui, sim, é decisiva). Já agora, compare-se 120 Batimentos...com O Quadro, de Ruben Ostlund — falamos nele porque está também em exibição nas salas portuguesas, recebeu a Palma de Ouro de Cannes e 120 Batimentos... foi “derrotado”, ficando-se pelo Grande Prémio do Júri. Percebe-se como num caso as personagens caminham para tomar conta da sua narrativa e como as do filme do sueco são sujeitas a demonstrações castigadoras. É esta diferença que permite também que o espectador possa evoluir com a pedagogia de 120 Batimentos... — lidando com as suas próprias resistências ou com os obstáculos que possa deparar em certas sequências (por exemplo, aquela em que o Sena se tinta de sangue...), aprendendo com elas, aprendendo , por exemplo na referida sequência, que a alegoria se desvanece perante a dimensão concreta de performance a que Campillo aí se atreve (essa foi uma acção que o Act Up planeou em Paris, nunca concretizou e que o filme realiza e oferece). 

Apesar do júbilo, 120 Batimentos... é tremendamente melancólico. Podemos juntá-lo a Fábrica de Nada, de Pedro Pinho, filme que em momento de crise social, política e moral fez das perdas e da dúvida também proposta de pensamento sobre o colectivo. Onde é que ele está? E pensamos em Lumière!, de Thierry Frémaux e Viagem pelo Cinema Francês com Bertrand Tavernier, outros filmes lançados em Portugal em 2017 que nos lembraram que a condição de espectador está investida de uma responsabilidade, cívica e moral. Coisa jubilatória mas em perda: onde é que ele está?
Vasco Câmara, Público