Fábrica da Cerveja, 22h, sócios 1€, não-sócios 3,5€ (ou Passe para os 10 dias por 20€).
Vou ser directo: Um Homem Singular é dos melhores filmes que vimos agora no início deste ano e, se tivesse estreado no ano passado nas nossas salas, provavelmente teria entrado directamente no meu top 10 de 2009. É impressionante em todos os aspectos, deste a banda-sonora à realização e passando, claro, pelas geniais interpretações. E é daqueles casos em que um peculiar e audaz estilo visual se alia na perfeição com o argumento, criando uma experiência que tanto tem de sensatorialmente bela como de emocionalmente poderosa.
A história é a de George Falconer (Colin Firth, absolutamente genial), um professor que lida com a trágica morte do seu companheiro dos últimos dezasseis anos, Jim (Mathew Goode). Apoiando-se na sua velha amiga Charlotte (Juliane Moore, também fenomenal no seu papel, como já estamos habituados), George lida com a dor e com a solidão provenientes desta perda, até que um encontro com o seu jovem estudante Kenny (Nicholas Hoult, também em boa forma) lhe possibilitam uma nova perspectiva.
O facto mais notável em Um Homem Singular é não tanto a sua enorme qualidade, mas antes o facto de esta vir de um realizador estreante: Tom Ford, conhecido estilista. O primor visual que se esperava de alguém com esta carreira está presente numa realização que funciona como estilo ao serviço da história. Ford filma de forma magnífica, com um uso de cores e de planos exemplar. A mudança de cores frias e cores quentes, de forma a expressar de forma perfeita os sentimentos das personagens, é notável, e o filme está todo ele filmado com uma serenidade e com um sentido de primor visual arrebatador. Ford é não só um fenomenal artista visual, mas também um excelente contador de histórias, talento esse que mostra aqui na sua primeira produção. A fotografia de Um Homem Singular, os planos, os pequenos detalhes capturados pela câmara, tudo isso é impressionante, mas tudo isso existe como serviço à história e para transmitir ao máximo a alma da personagem principal. Estilo ao serviço da substância, numa realização notável – uma nomeação ao Óscar nem tinha ficado mal…
Mas se realização é em si fenomenal, e se Ford revela aqui um talento impressionante, o elenco está, como seria de esperar, ao mesmo nível. Não há outra forma de dizer: Colin Firth está genial. É facilmente o melhor papel de um actor que sempre demonstrou talento, mas que nunca antes fora bem aproveitado. Aqui, a sua interpretação é de uma sublimidade e de uma profundidade de ir com o queixo ao chão. Não há grandes explosões de tristeza, não há muitas lágrimas… toda a tristeza da personagem vai além de tudo isso, e o espectador sente isso na pele pelo seu olhar, pelo seu tom de voz, pelos seus gestos. Numa altura em que o overacting está tão na moda, é bom ver um actor que efectivamente encarna a personagem da forma mais profunda possível, transmitindo ao espectador um rol de sentimentos que o atingem em cheio na alma. A sua nomeação ao Óscar é mais que merecida e, das interpretações nomeadas que vi até agora – falta-me apenas uma: a de Jeff Bridges, numa interpretação e num filme que parece totalmente diferente -, Firth é, sem a mínima sombra de dúvida, o que mais merece a vitória.
Nicholas Hoult como o jovem Kenny também está impressionante, dando à personagem uma notável camada de inocência de que é difícil não gostar. Mas Julianne Moore está aqui num dos seus melhores papéis dos últimos anos, encarnando na perfeição uma personagem que, mesmo não tendo muito ‘tempo de antena’, fica com o espectador mesmo depois de este ter saído da sala. Os seus maneirismos estão perfeitos e encarna na perfeição uma personagem que captura o espectador desde o momento em que aparece no ecrã, tal como a de Firth, claro. Uma nomeação ao Óscar (ou até mesmo a vitória!) teria sido mais que merecida.
Um Homem Singular é um filme magnífico em todos os aspectos. O seu estilo é único e tem imagens que ficam na memória, mas tudo isso existe ao serviço da história. Não lhe darei nota máxima nem o chamarei de obra-prima porque, apesar de estar muito, muito lá perto, faltou aquele pequeno rasgo para que lá chegasse. Mas é um filme como poucos, que impressiona e comove profundamente ao mesmo tempo, perfeitamente realizado e executado. E é daqueles raros casos em que o filme funciona como uma experiência sensatorial com profundo impacto emocional; tanto num momento faz com que arregalemos os olhos, como no momento a seguir faz com que dele caiam lágrimas. Um filme profundo e tocante. Esperemos que não seja o primeiro e último de Tom Ford.
.
Gonçalo Trindade, espalha-factos.com
Um pouco mais e seria melodrama mexicano. Um pouco menos e seria irrisório, faz-de-conta sem alma, provavelmente ridículo. Mas Colin Firth aceita percorrer a corda bamba sobre estes dois abismos e dar-nos um retrato comovente de um solteiro singular (single, no título, pretende-se lido nesta dupla condição) - por certo a melhor coisa que o vimos fazer na vida. Não é pouco.
No princípio George, professor de literatura, está em estado de desespero. Não parece possível iludir a ausência do companheiro de muitos anos que morreu num acidente de automóvel há uns meses já - e ele continua uma existência de morto-vivo, suspenso num aquário de conforto e no futuro o projecto de uma pistola apontada à cabeça e o seu próprio dedo no gatilho a disparar. Tudo num espaço desenhado como o supra-sumo da elegância, um manto de falsidade, como se um exterior onde está tudo no sítio fosse a violenta antítese de um íntimo onde nada encaixa em nada. Depois, lentamente, o projecto de suicídio adensa-se, prepara-se, como uma despedida inadiável partilhada com uma vizinha igualmente em estado de solidão (esplêndida Julianne Moore, tão bela, tão frágil, tão triste). Comparticipam gin e memórias, um abraço, embriaguez, a impressão do abismo aberto ali ao lado. E a melancolia de nem saltar nem fugir. Mas a vida pode dar muitas voltas.
"Um Homem Singular" é uma história de luto homossexual, mas podia ser uma história de luto - só. É filme de uma eficácia imaculada, nem parece obra de um estreante - Tom Ford - com nome feito no campo do estilismo. O clima que a fita arquitecta (algo de onírico, aquático, suspensão ébria) é inesperadamente bem conseguido, não cedendo Ford à tentação dos principiantes (o uso da palavra), antes acreditando no poder das imagens e da sua concatenação. É isso que faz a especificidade do cinema.
.
Jorge Leitão Ramos, Expresso
Colin Firth, actor, 50 anos, desafia-nos a esquecer a moda. "Se as pessoas não soubessem a história de Tom Ford, quem é Tom Ford, olhariam para 'A Single Man' e pensariam: 'Que maravilhosa sensibilidade cinematográfica!' Não ligariam aos elementos decorativos. Sim, a roupa é maravilhosa, mas para mim, quando vestia as roupas de George [a personagem que interpreta na estreia na realização de Tom Ford], não pensei que tinham sido desenhadas por um 'designer' de moda. Senti que falavam do desespero de George. É claro e explícito no filme que a personagem veste, entediadamente, uma armadura de que precisa para sair de casa. É para isso que servem os botões de punho e o alfinete de gravata. Se se lhe retirar uma dessas peças, o homem pode desmoronar-se. "
O "homem Tom Ford" veste de impecável negro. E assim também a personagem George, professor de Inglês, expatriado em Los Angeles, homem retirado da vida que habita uma perfeição hermeticamente selada na Los Angeles dos anos 60.
"Lá fora" é a Guerra Fria, o medo dos comunistas, e acabou de estrear "Psico" , de Hitchcock. E "cá dentro", em casa de George (na realidade, uma das casas com que John Lautner -1911-1994 - contribuiu para o mapa da experiência arquitectónica que é Los Angeles), este "englishman in LA" faz o luto pela morte do companheiro de 16 anos.
Uma solidão é coisa resistente. Não vacila perante companhias. Pode é tomar-se mais produtiva, caminhando em direcção ao desenlace final, uma espécie de lucidez, se for adubada com outras solidões. É o que se passa com George e com a amiga (na verdade, uma antiga amante...) que partilha com ele essa estufa - no passado, as coisas não correram bem, em termos amorosos, entre as personagens de Colin Firth e de Julianne Moore, o que foi meio caminho andado para o prin¬cipio de uma bela amizade.
E assim George prepara o seu suicídio.
O "look"
George e esta estufa de fantasmas são criações do escritor Christopher Isherwood. Tom Ford leu "A Single Man" nos anos 80, mas voltou a lê-lo, e ao resto de Isherwood, mais recentemente, num contexto de realização profissional e de necessidade de renovação "espiritual", quando os livros lhe falaram então de outra maneira. Alguém que já dominou o (seu) mundo - a moda - precisava de outros estímulos como quem precisa de nova religião. Eis Tom Ford, 48 anos, e a crise de George.
"Não podia ter feito este filme há 15 anos. Sou um sortudo, porque tive muito sucesso comercial na vida [foi Ford que financiou o filme], mas ganhei isso sacrificando alguma espiritualidade. E redescobri-a quando voltei a ler o livro. George, a personagem, tem uma epifania, percebe tudo o que lhe aconteceu na vida, percebe que não precisa de viver mais. Aprende uma lição - que é o que espero que todos consigamos quando chegarmos ao fim; espero que aprendamos sempre até morrer" , diz o realizador que se estreia.
"A moda e o cinema são, para mim, duas formas de expressão completamente diferentes. A moda é uma coisa criativa, mas tem um objectivo comercial. O cinema é pura expressão. O cinema é a coisa mais expressiva e pessoal que já fiz. O sortilégio da moda não dura muito. Quando vemos uma mulher vestida com algo que nunca vimos antes, é inacreditável, mas ao fim de seis meses passa a ser apenas bonito. Eu gosto de personagens, gosto de aprisioná-las em cápsulas que possam durar 500 anos. Reabrir mundos para sentirmos de novo as mesmas emoções vivas... é das experiências mais compensadoras que se podem ter."
Enfrentemos, então, as cores, as sedas, o irremediável bom gosto de "A Single Man", o "look", a casa de Lautner...
"O 'look' tem de vir da personagem. Que tipo de casa é aquela em que George vive? Que tipo de pessoa é? Claro que a casa é belíssima, mas mais importante do que isso serve para nos dar informações sobre a personagem. Los Angeles é uma capital da arquitectura residencial. Achei que a casa tinha de ser de madeira, escura. Teria que representar a atracção da personagem pela liberdade americana, mas ao mesmo tempo uma certa qualidade inglesa, porque George é inglês: daí a madeira escura. O livro é uma espécie de monólogo interior deste homem. Não há uma narrativa. Foi necessário, por isso, encontrar certos dispositivos para o filme" - como desenvolver outras personagens, o que Ford fez durante ano e meio, quando trabalhou sobre o argumento.
"Não sei o que se passa com os outros, mas quando estou deprimido não há cor nenhuma na minha vida. Quando este homem decide que estes são os últimos dias que vai viver neste planeta, começa a olhar para as coisas de maneira diferente. A beleza do mundo, as cores e sons tornam-se intensas no filme, para ajudar o espectador a sentir os sentimentos de George. E é assim que ele acaba como se estivesse a viver em 'technicolor'. O 'look' sem substância é insignificante em termos cinematográficos."
Moda e cinema
E, no entanto, assume que há "semelhanças" entre os dois mundos, o da moda e o do cinema. "É preciso ter uma visão, conseguir trabalhar com um grupo de técnicos para que a nos¬sa visão seja materializada. A moda é muito mais um trabalho de colaboração do que as pessoas supõem, temos de encorajar os nossos colaboradores, dar-lhes liberdade para tirarmos o melhor deles - e simultaneamente conduzi-los em direcção à nossa visão. Trabalhar com uma equipa incrível e actores fantásticos tira-nos um enorme peso de cima. Com Colin, basta colocar a câmara e ele interpreta. "
Firth foi a primeira escolha do realizador (com este papel o actor recebeu o prémio de interpretação no Festival de Veneza e nomeação para o Óscar), embora a colaboração quase tenha falhado.
"Não há muito mais pessoas que pudessem fazer George, que tivessem a idade certa, que tivessem a subtileza e a emoção que Colin tem", diz Ford. "E Colin é um tipo muito 'sexy', algo que muitas vezes não é muito subtil [nas pessoas]. Felizmente que as nossas agendas se compatibilizaram. Mandei-lhe o argumento, voei para Londres [de LA], convenci-o a aceitar o papel em 24 horas e três semanas depois já estávamos a filmar."
Quanto a Colin, assume que no seu trabalho como actor procurou muito menos em Isherwood (mesmo que "muita da textura do amor entre as personagens possa ser encontrada na relação real entre Isherwood e o seu amante Don Bachardy") do que em Tom Ford. Conta que bastaram "dois dias" de rodagem para perceber "claramente" o que o realizador queria e para sentir a confiança que Ford de-positara nele com esta personagem e um filme tão pessoais.
Ajuda a explicar a intensidade deste "huis clos" - mesmo quando o filme se passa em exteriores, é uma Los Angeles subtilmente sugerida, como uma fantasmagoria interior - o facto de a rodagem ter decorrido de forma íntima, durante cinco semanas, trabalhando quase sempre de noite, um mundo isolado do mundo; ainda, a "meticulosidade" de Ford, testemunha o actor, que não se confunde com "o controlo cansativo sobre as coisas", antes cria "espaço para que a imaginação possa florescer, e é isso que é dirigir". (Serve para a "petite histoire" de ''A Single Man": a sequência em que George recebe a noticia, ao telefone, da morte do seu companheiro Jim, e onde, não tão subtilmente assim, lhe informam que ele não é desejado no funeral, "foi rodada na noite em que Barack Obama foi eleito [para a presidência americana], por isso não foi o dia mais fácil para estar arrasado pelo luto", brinca Colin.)
Regressando à epifania de George, que é a epifania de Tom. Diz o realizador de "A Single Man" que a sua redescoberta de Isherwood foi uma lição de vida: "Se começamos a vida como água de 'toilette', devemos ter a possibilidade de a acabar como perfume." Que é o mesmo que dizer que não há aqui fantasmas (da moda), há só um cineasta.
.
Helen Barlow, Público
Título Original: A Single Man
Realização: Tom Ford,
Argumento: Tom Ford, David Scearce, Christopher Isherwood (romance)
Direcção de Fotografia: Eduard Grau
Montagem: Joan Sobel
Música: Abel Korzeniowski
Interpretação: Colin Firth, Julianne Moore, Matthew Goode; Ginnifer Goodwin, Nicholas Hoult
Origem: EUA
Ano de Estreia: 2009
Duração: 99’
EM COMPLEMENTO
ARCA D'ÁGUA, André Gil Mata, Portugal, 2009, 23'
Num lago rodeado por prédios, um homem constrói um barco.
O sonho de uma viagem impossível, na busca da liberdade das memórias de um passado
eterno.
Uma reflexão sobre o efeito do tempo e das metamorfoses dos espaços na vida de um homem
e na sua morte feliz.
Título Original: Arca d’Água
Realização: André Gil Mata
Argumento: André Gil Mata
Direcção de Fotografia: Jorge Quintela
Montagem: Karen Akerman
Música: Alfredo Teixeira
Origem: Portugal
Ano de Estreia: 2009
Duração: 23’
Vou ser directo: Um Homem Singular é dos melhores filmes que vimos agora no início deste ano e, se tivesse estreado no ano passado nas nossas salas, provavelmente teria entrado directamente no meu top 10 de 2009. É impressionante em todos os aspectos, deste a banda-sonora à realização e passando, claro, pelas geniais interpretações. E é daqueles casos em que um peculiar e audaz estilo visual se alia na perfeição com o argumento, criando uma experiência que tanto tem de sensatorialmente bela como de emocionalmente poderosa.
A história é a de George Falconer (Colin Firth, absolutamente genial), um professor que lida com a trágica morte do seu companheiro dos últimos dezasseis anos, Jim (Mathew Goode). Apoiando-se na sua velha amiga Charlotte (Juliane Moore, também fenomenal no seu papel, como já estamos habituados), George lida com a dor e com a solidão provenientes desta perda, até que um encontro com o seu jovem estudante Kenny (Nicholas Hoult, também em boa forma) lhe possibilitam uma nova perspectiva.
O facto mais notável em Um Homem Singular é não tanto a sua enorme qualidade, mas antes o facto de esta vir de um realizador estreante: Tom Ford, conhecido estilista. O primor visual que se esperava de alguém com esta carreira está presente numa realização que funciona como estilo ao serviço da história. Ford filma de forma magnífica, com um uso de cores e de planos exemplar. A mudança de cores frias e cores quentes, de forma a expressar de forma perfeita os sentimentos das personagens, é notável, e o filme está todo ele filmado com uma serenidade e com um sentido de primor visual arrebatador. Ford é não só um fenomenal artista visual, mas também um excelente contador de histórias, talento esse que mostra aqui na sua primeira produção. A fotografia de Um Homem Singular, os planos, os pequenos detalhes capturados pela câmara, tudo isso é impressionante, mas tudo isso existe como serviço à história e para transmitir ao máximo a alma da personagem principal. Estilo ao serviço da substância, numa realização notável – uma nomeação ao Óscar nem tinha ficado mal…
Mas se realização é em si fenomenal, e se Ford revela aqui um talento impressionante, o elenco está, como seria de esperar, ao mesmo nível. Não há outra forma de dizer: Colin Firth está genial. É facilmente o melhor papel de um actor que sempre demonstrou talento, mas que nunca antes fora bem aproveitado. Aqui, a sua interpretação é de uma sublimidade e de uma profundidade de ir com o queixo ao chão. Não há grandes explosões de tristeza, não há muitas lágrimas… toda a tristeza da personagem vai além de tudo isso, e o espectador sente isso na pele pelo seu olhar, pelo seu tom de voz, pelos seus gestos. Numa altura em que o overacting está tão na moda, é bom ver um actor que efectivamente encarna a personagem da forma mais profunda possível, transmitindo ao espectador um rol de sentimentos que o atingem em cheio na alma. A sua nomeação ao Óscar é mais que merecida e, das interpretações nomeadas que vi até agora – falta-me apenas uma: a de Jeff Bridges, numa interpretação e num filme que parece totalmente diferente -, Firth é, sem a mínima sombra de dúvida, o que mais merece a vitória.
Nicholas Hoult como o jovem Kenny também está impressionante, dando à personagem uma notável camada de inocência de que é difícil não gostar. Mas Julianne Moore está aqui num dos seus melhores papéis dos últimos anos, encarnando na perfeição uma personagem que, mesmo não tendo muito ‘tempo de antena’, fica com o espectador mesmo depois de este ter saído da sala. Os seus maneirismos estão perfeitos e encarna na perfeição uma personagem que captura o espectador desde o momento em que aparece no ecrã, tal como a de Firth, claro. Uma nomeação ao Óscar (ou até mesmo a vitória!) teria sido mais que merecida.
Um Homem Singular é um filme magnífico em todos os aspectos. O seu estilo é único e tem imagens que ficam na memória, mas tudo isso existe ao serviço da história. Não lhe darei nota máxima nem o chamarei de obra-prima porque, apesar de estar muito, muito lá perto, faltou aquele pequeno rasgo para que lá chegasse. Mas é um filme como poucos, que impressiona e comove profundamente ao mesmo tempo, perfeitamente realizado e executado. E é daqueles raros casos em que o filme funciona como uma experiência sensatorial com profundo impacto emocional; tanto num momento faz com que arregalemos os olhos, como no momento a seguir faz com que dele caiam lágrimas. Um filme profundo e tocante. Esperemos que não seja o primeiro e último de Tom Ford.
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Gonçalo Trindade, espalha-factos.com
Um pouco mais e seria melodrama mexicano. Um pouco menos e seria irrisório, faz-de-conta sem alma, provavelmente ridículo. Mas Colin Firth aceita percorrer a corda bamba sobre estes dois abismos e dar-nos um retrato comovente de um solteiro singular (single, no título, pretende-se lido nesta dupla condição) - por certo a melhor coisa que o vimos fazer na vida. Não é pouco.
No princípio George, professor de literatura, está em estado de desespero. Não parece possível iludir a ausência do companheiro de muitos anos que morreu num acidente de automóvel há uns meses já - e ele continua uma existência de morto-vivo, suspenso num aquário de conforto e no futuro o projecto de uma pistola apontada à cabeça e o seu próprio dedo no gatilho a disparar. Tudo num espaço desenhado como o supra-sumo da elegância, um manto de falsidade, como se um exterior onde está tudo no sítio fosse a violenta antítese de um íntimo onde nada encaixa em nada. Depois, lentamente, o projecto de suicídio adensa-se, prepara-se, como uma despedida inadiável partilhada com uma vizinha igualmente em estado de solidão (esplêndida Julianne Moore, tão bela, tão frágil, tão triste). Comparticipam gin e memórias, um abraço, embriaguez, a impressão do abismo aberto ali ao lado. E a melancolia de nem saltar nem fugir. Mas a vida pode dar muitas voltas.
"Um Homem Singular" é uma história de luto homossexual, mas podia ser uma história de luto - só. É filme de uma eficácia imaculada, nem parece obra de um estreante - Tom Ford - com nome feito no campo do estilismo. O clima que a fita arquitecta (algo de onírico, aquático, suspensão ébria) é inesperadamente bem conseguido, não cedendo Ford à tentação dos principiantes (o uso da palavra), antes acreditando no poder das imagens e da sua concatenação. É isso que faz a especificidade do cinema.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso
Colin Firth, actor, 50 anos, desafia-nos a esquecer a moda. "Se as pessoas não soubessem a história de Tom Ford, quem é Tom Ford, olhariam para 'A Single Man' e pensariam: 'Que maravilhosa sensibilidade cinematográfica!' Não ligariam aos elementos decorativos. Sim, a roupa é maravilhosa, mas para mim, quando vestia as roupas de George [a personagem que interpreta na estreia na realização de Tom Ford], não pensei que tinham sido desenhadas por um 'designer' de moda. Senti que falavam do desespero de George. É claro e explícito no filme que a personagem veste, entediadamente, uma armadura de que precisa para sair de casa. É para isso que servem os botões de punho e o alfinete de gravata. Se se lhe retirar uma dessas peças, o homem pode desmoronar-se. "
O "homem Tom Ford" veste de impecável negro. E assim também a personagem George, professor de Inglês, expatriado em Los Angeles, homem retirado da vida que habita uma perfeição hermeticamente selada na Los Angeles dos anos 60.
"Lá fora" é a Guerra Fria, o medo dos comunistas, e acabou de estrear "Psico" , de Hitchcock. E "cá dentro", em casa de George (na realidade, uma das casas com que John Lautner -1911-1994 - contribuiu para o mapa da experiência arquitectónica que é Los Angeles), este "englishman in LA" faz o luto pela morte do companheiro de 16 anos.
Uma solidão é coisa resistente. Não vacila perante companhias. Pode é tomar-se mais produtiva, caminhando em direcção ao desenlace final, uma espécie de lucidez, se for adubada com outras solidões. É o que se passa com George e com a amiga (na verdade, uma antiga amante...) que partilha com ele essa estufa - no passado, as coisas não correram bem, em termos amorosos, entre as personagens de Colin Firth e de Julianne Moore, o que foi meio caminho andado para o prin¬cipio de uma bela amizade.
E assim George prepara o seu suicídio.
O "look"
George e esta estufa de fantasmas são criações do escritor Christopher Isherwood. Tom Ford leu "A Single Man" nos anos 80, mas voltou a lê-lo, e ao resto de Isherwood, mais recentemente, num contexto de realização profissional e de necessidade de renovação "espiritual", quando os livros lhe falaram então de outra maneira. Alguém que já dominou o (seu) mundo - a moda - precisava de outros estímulos como quem precisa de nova religião. Eis Tom Ford, 48 anos, e a crise de George.
"Não podia ter feito este filme há 15 anos. Sou um sortudo, porque tive muito sucesso comercial na vida [foi Ford que financiou o filme], mas ganhei isso sacrificando alguma espiritualidade. E redescobri-a quando voltei a ler o livro. George, a personagem, tem uma epifania, percebe tudo o que lhe aconteceu na vida, percebe que não precisa de viver mais. Aprende uma lição - que é o que espero que todos consigamos quando chegarmos ao fim; espero que aprendamos sempre até morrer" , diz o realizador que se estreia.
"A moda e o cinema são, para mim, duas formas de expressão completamente diferentes. A moda é uma coisa criativa, mas tem um objectivo comercial. O cinema é pura expressão. O cinema é a coisa mais expressiva e pessoal que já fiz. O sortilégio da moda não dura muito. Quando vemos uma mulher vestida com algo que nunca vimos antes, é inacreditável, mas ao fim de seis meses passa a ser apenas bonito. Eu gosto de personagens, gosto de aprisioná-las em cápsulas que possam durar 500 anos. Reabrir mundos para sentirmos de novo as mesmas emoções vivas... é das experiências mais compensadoras que se podem ter."
Enfrentemos, então, as cores, as sedas, o irremediável bom gosto de "A Single Man", o "look", a casa de Lautner...
"O 'look' tem de vir da personagem. Que tipo de casa é aquela em que George vive? Que tipo de pessoa é? Claro que a casa é belíssima, mas mais importante do que isso serve para nos dar informações sobre a personagem. Los Angeles é uma capital da arquitectura residencial. Achei que a casa tinha de ser de madeira, escura. Teria que representar a atracção da personagem pela liberdade americana, mas ao mesmo tempo uma certa qualidade inglesa, porque George é inglês: daí a madeira escura. O livro é uma espécie de monólogo interior deste homem. Não há uma narrativa. Foi necessário, por isso, encontrar certos dispositivos para o filme" - como desenvolver outras personagens, o que Ford fez durante ano e meio, quando trabalhou sobre o argumento.
"Não sei o que se passa com os outros, mas quando estou deprimido não há cor nenhuma na minha vida. Quando este homem decide que estes são os últimos dias que vai viver neste planeta, começa a olhar para as coisas de maneira diferente. A beleza do mundo, as cores e sons tornam-se intensas no filme, para ajudar o espectador a sentir os sentimentos de George. E é assim que ele acaba como se estivesse a viver em 'technicolor'. O 'look' sem substância é insignificante em termos cinematográficos."
Moda e cinema
E, no entanto, assume que há "semelhanças" entre os dois mundos, o da moda e o do cinema. "É preciso ter uma visão, conseguir trabalhar com um grupo de técnicos para que a nos¬sa visão seja materializada. A moda é muito mais um trabalho de colaboração do que as pessoas supõem, temos de encorajar os nossos colaboradores, dar-lhes liberdade para tirarmos o melhor deles - e simultaneamente conduzi-los em direcção à nossa visão. Trabalhar com uma equipa incrível e actores fantásticos tira-nos um enorme peso de cima. Com Colin, basta colocar a câmara e ele interpreta. "
Firth foi a primeira escolha do realizador (com este papel o actor recebeu o prémio de interpretação no Festival de Veneza e nomeação para o Óscar), embora a colaboração quase tenha falhado.
"Não há muito mais pessoas que pudessem fazer George, que tivessem a idade certa, que tivessem a subtileza e a emoção que Colin tem", diz Ford. "E Colin é um tipo muito 'sexy', algo que muitas vezes não é muito subtil [nas pessoas]. Felizmente que as nossas agendas se compatibilizaram. Mandei-lhe o argumento, voei para Londres [de LA], convenci-o a aceitar o papel em 24 horas e três semanas depois já estávamos a filmar."
Quanto a Colin, assume que no seu trabalho como actor procurou muito menos em Isherwood (mesmo que "muita da textura do amor entre as personagens possa ser encontrada na relação real entre Isherwood e o seu amante Don Bachardy") do que em Tom Ford. Conta que bastaram "dois dias" de rodagem para perceber "claramente" o que o realizador queria e para sentir a confiança que Ford de-positara nele com esta personagem e um filme tão pessoais.
Ajuda a explicar a intensidade deste "huis clos" - mesmo quando o filme se passa em exteriores, é uma Los Angeles subtilmente sugerida, como uma fantasmagoria interior - o facto de a rodagem ter decorrido de forma íntima, durante cinco semanas, trabalhando quase sempre de noite, um mundo isolado do mundo; ainda, a "meticulosidade" de Ford, testemunha o actor, que não se confunde com "o controlo cansativo sobre as coisas", antes cria "espaço para que a imaginação possa florescer, e é isso que é dirigir". (Serve para a "petite histoire" de ''A Single Man": a sequência em que George recebe a noticia, ao telefone, da morte do seu companheiro Jim, e onde, não tão subtilmente assim, lhe informam que ele não é desejado no funeral, "foi rodada na noite em que Barack Obama foi eleito [para a presidência americana], por isso não foi o dia mais fácil para estar arrasado pelo luto", brinca Colin.)
Regressando à epifania de George, que é a epifania de Tom. Diz o realizador de "A Single Man" que a sua redescoberta de Isherwood foi uma lição de vida: "Se começamos a vida como água de 'toilette', devemos ter a possibilidade de a acabar como perfume." Que é o mesmo que dizer que não há aqui fantasmas (da moda), há só um cineasta.
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Helen Barlow, Público
Título Original: A Single Man
Realização: Tom Ford,
Argumento: Tom Ford, David Scearce, Christopher Isherwood (romance)
Direcção de Fotografia: Eduard Grau
Montagem: Joan Sobel
Música: Abel Korzeniowski
Interpretação: Colin Firth, Julianne Moore, Matthew Goode; Ginnifer Goodwin, Nicholas Hoult
Origem: EUA
Ano de Estreia: 2009
Duração: 99’
EM COMPLEMENTO
ARCA D'ÁGUA, André Gil Mata, Portugal, 2009, 23'
Num lago rodeado por prédios, um homem constrói um barco.
O sonho de uma viagem impossível, na busca da liberdade das memórias de um passado
eterno.
Uma reflexão sobre o efeito do tempo e das metamorfoses dos espaços na vida de um homem
e na sua morte feliz.
Título Original: Arca d’Água
Realização: André Gil Mata
Argumento: André Gil Mata
Direcção de Fotografia: Jorge Quintela
Montagem: Karen Akerman
Música: Alfredo Teixeira
Origem: Portugal
Ano de Estreia: 2009
Duração: 23’
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