NOTA DE INTENÇÕES
Para mim é sempre muito difícil, impossível até, resumir em algumas palavras esta “coisa” que acaba por se tornar estranhamente complexa, e à qual consagrámos, durante um ano e meio, grande parte do nosso tempo e da nossa energia.
Além disso, acredito que Código Desconhecido, mais do que qualquer outro dos meus filmes, resiste a este processo (reduzir a um único tema). Penso que, reduzindo-o às suas temáticas mais óbvias (a confusão babilónica das línguas, a incapacidade de comunicar, a frieza da sociedade de consumo, a xenofobia, etc ), não conseguiríamos escapar à simples repetição de clichés: é sempre isso que acontece quando tentamos isolar “temas”. E para fazer isso, na minha opinião, um pequeno resumo é amplamente suficiente.
Além disso, há poucas coisas a contar fora do quadro estético do filme. Se não fosse assim, eu teria escrito um artigo de jornal em vez de rodar um filme. Também não acredito que que a minha opinião sobre estes temas tenha grande interesse para ninguém – não sou um “fabricante de opiniões”. O que é interessante numa mesa é a sua qualidade, a sua forma, o seu carácter funcional, a maneira como o material foi trabalhado, e não a opinião do marceneiro.
A única coisa que me resta dizer depois do filme acabado, e que poderia eventualmente interessar a alguém, são as questões que para mim foram o gatilho e motor do projecto porque o meu filme não é mais do que uma tentativa para testar respostas possíveis a estas questões.
Estas interrogações não são novas, mas são fundamentais à luz da paisagem mediática que nos rodeia. É claro que foram escolhidas de uma forma arbitrária e incompleta, mas espero que elas possam evocar um pouco do clima intelectual que me levou a realizar Código Desconhecido.
A verdade é a soma das coisas que vemos e ouvimos?
A realidade pode ser representada?
Para o observador, o que é que faz o objecto representado real, credível, ou mais precisamente digno de se acreditar?
Qual é a responsabilidade do marionetista se a marioneta imita perfeitamente a vida real?
No mundo das imagens animadas, a ilusão e decepção serão gémeas ou só vagamente relacionadas?
Serão as respostas mentiras?
Serão as perguntas respostas?
Será o fragmento a resposta estética ao carácter incompleto da nossa percepção?
Será a montagem a simulação da totalidade?
Até que ponto é que aquilo que está ausente pode ser contado por aquilo que está presente?
A precisão é uma categoria moral ou estética?
Pode a alusão substituir a descrição?
O OFF é mais preciso do que o ON?
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Michael Haneke
O melhor filme do 53º Festival de Cannes. Uma denúncia pungente da violência habitual que os tempos correntes banalizam. Um grito poderoso de protesto lançado pela civilização humanista. E ao mesmo tempo, um cinema cintilante, porque Michael Haneke sabe sempre ir direito ao essencial, assinalando o crime na rotina dos dias. Não há nada de lacrimoso nem de desesperado na sua demonstração. Uma constatação que convida a reflectir e a rebelar contra a indiferença ambiente.
Soberbo porque não tem traço de ênfase e é de uma autenticidade absoluta. Grande Arte!
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Claude Baignères, Le Figaro, 15/11/00
O formato adotado por Michael Haneke em seu Código Desconhecido (2000) remete, em alguns momentos, ao surrealismo. Isso porque o revolucionário cineasta austríaco optou pela ausência total de lógica ao trabalhar as várias histórias que sustentam o filme: as seqüências foram fragmentadas e misturadas. Cabe ao espectador organizá-las e compreender a cronologia dos fatos. Daí surge o subtítulo Relato Inacabado de Várias Jornadas.
Em uma das primeiras cenas, que se passa em uma movimentada rua de Paris, as histórias dos personagens se cruzam. Anne (Juliette Binoche), uma atriz talentosa, encontra o seu cunhado Jean (Alexandre Hamidi), um adolescente egoísta e agressivo que não se dá bem com o pai fazendeiro, com quem vive. Após contar a ela os seus planos de abandoná-lo, Jean ofende a mendiga Maria (Luminita Gheorghiu), que na verdade é uma imigrante ilegal deportada da Romênia. Indignado com a atitude, entra em ação um jovem negro, professor de música para crianças surdas, que lida a todo tempo com o preconceito. Ele exige que Jean peça desculpas à Maria, mas acaba sendo levado pelos policiais.
A crítica à violência, ao racismo e à xenofobia é aqui muito mais evidente do que em outros títulos de Haneke que tratam dos temas, como Caché (2005) e O Tempo dos Lobos (2003), nos quais isto aparece nas entrelinhas. A ironia, no entanto, surge ainda de leve em um determinado momento nas palavras de Georges (Thierry Neuvic), namorado de Anne e irmão de Jean. Em um restaurante, o fotógrafo de guerra revela a casais amigos que prefere estar no meio das batalhas do que na rotina da capital.
Durante todo o filme, o diretor fez uso de várias técnicas interessantes que também aparecem em outros de seus trabalhos. Uma delas é a do "filme dentro do filme" nas cenas em que Anne está atuando - mais tarde, se debruçaria sobre ela em Caché. Há ainda longos e bem-feitos planos-seqüência (como nesta cena da rua) e até seqüências de fotografias apresentadas como slides.
Nessas circunstâncias, nota-se que a subversão, característica tão marcante nos filmes de Haneke, aparece aqui apenas na forma e não no conteúdo, diferentemente de outras obras. E mesmo no que toca o formato, é preciso reconhecer que a fragmentação e mistura das histórias tornam o filme exageradamente abstrato em alguns momentos, dificultando o entendimento.
Ainda assim, trata-se de um filme forte, com importantes discussões e marcado por boas interpretações, especialmente da bela Juliette Binoche, que apresenta uma de suas melhores performances.
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(daqui)
Com o seu novo filme Michael Haneke faz uma pausa na escalada da dureza abrindo desta vez a porta à reflexão, ao olhar sobre o mundo. A experiência torna-se perturbadora pela presença calorosa de Juliette Binoche.
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Daniel Toscan du Plantier, Le Figaro Magazine, 10/11/00
O cineasta austríaco Michael Haneke agora a assinar uma produção francesa - um verdadeiro acontecimento ( até pelas diferenças polémicas que o filme não poderá deixar de suscitar), um objecto cinematográfico que nos relança no coração das grandes questões contemporâneas sobre as relações sociais e/ou simbólicas favorecidas pelo universo mediático em que vivemos. Em termos simples (e necessariamente simplistas): esta é uma teia de várias histórias que se vão contaminando pela solidão, pelo medo, pelo conhecimento e pelo desconhecimento das personagens. Com uma Juliette Binoche tão terrena, que é divina.
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João Lopes, Cinema2000
ENTREVISTA a Michael Haneke
Porquê planos-sequência?
Porque isso permite aos actores desenvolver sentimentos e evita fazer batota com o tempo. É também um meio, para o espectador, de distinguir o argumento do “filme no filme”, que, ele, é muito découpado. Não é uma solução fácil: o primeiro foi recomeçado 32 vezes.
Porquê Juliette Binoche?
Porque há dois anos, a pedido dela, o meu assessor de imprensa enviou-lhe uma cassete de FUNNY GAMES. Ela gostou muito e telefonou-me para propor trabalharmos juntos. Não dirigi uma vedeta mas sim uma actriz. Não repetimos mais do que duas ou três vezes a cena da passagem a ferro. Noutras palavras, ela sabe muito bem passar a ferro: só fizemos duas ou três repetições da longa cena da passagem a ferro.
Porquê ilustrar as últimas cenas com tambores, já que é contra a música nos filmes?
Não é uma música mas sim uma atmosfera que exprime vários sentimentos de nacionalidades diferentes.
Porque não assinar um “dogma”, já que os princípios são tão próximos dos seus?
Porque cada realizador tem o seu próprio código. O principio do dogma é orgulhoso: dizer aos outros o que devemos ou não fazer... Cada história precisa da sua própria forma e da sua estética. Como Bresson disse nas Notes sur le cinématographe: é preciso escolher um tema a partir dos seus próprios meios. Só imponho regras estritas a mim mesmo. A única coisa que me interessa é uma auto-reflexão sobre o cinema. O exercício de estilo ou o filme de género não me interessam.
Porquê não pôr legendas no que diz o surdo-mudo que termina CÓDIGO DESCONHECIDO? (trata-se de uma fábula de La Fontaine )
Para ilustrar a mensagem do filme – porque há uma mensagem: se não compreende a língua, não sabe.
Porquê cortar as cenas de forma abrupta? Para frustrar o público ou por uma atitude “lacaniana”?
Nem um nem outro. É como na vida: nunca sabemos toda a verdade, todas as razões. Temos apenas percepções da verdade. O cinema-distracção pretende dizer-nos tudo. Como na literatura, nenhum autor quer que toda a verdade se encontre no seu livro. Só pode transmitir fragmentos da verdade. A fragmentação é única forma honesta de contar histórias. O resto não é mais do que pretensão ou uma mentira cínica.
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Christophe Carriére, Premiére
Título Original: Code Inconnu
Realização: Michael Haneke
Argumento: Michael Haneke
Interpretação: Juliette Binoche, Thierry Neuvic, Sepp Bierbichler, Alexandre Hamidi,
Hélène Diarra, Ona Lu Yenke, Djibril Kouyate
Direcção de Fotografia: Jurgen Jurges B.V.K.
Montagem: Andreas Prochaska, Karin Hartusch, Nadine Muse
Música: Giba Gonçalves
Origem: França
Ano de Estreia: 2000
Duração: 115’
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