Andrei Rubliov de Tarkovski. Hoje, 18h, Loulé: aqui tão perto.

Auditório do Instituto D. Afonso III (Convento Espírito Santo). Entrada livre.

ANDREI RUBLIOV, segunda longa-metragem de um dos grandes mestres da sétima arte, o russo Andrei Tarkovki, é um dos seus mais belos e aplaudidos filmes, tendo recebido em Cannes, em 1969, o prémio do Júri da Crítica Internacional.

Considerado por muitos a obra-prima de Tarkovski, o cineasta aborda, através da história da vida do pintor do século XV Andrei Rubliov, a eterna questão do artista contra a autoridade, mas também a da solidão de um génio e a sua capacidade de se erguer acima das multidões, e os problemas da fé e da falta da mesma.

O filme, que poderia ser descrito como um fresco ficcional constituído por episódios ligados por uma lógica mais poética que narrativa, foi apontado em 1995 pelos membros da Academia Europeia de Cinema e Televisão como um dos melhores dez filmes de sempre.

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Andrei Rubliov é peça fundamental no conhecimento internacional do seu realizador Andrei Tarkovski. Para isso contribuíram as dificuldades de difusão que encontrou na União Soviética. Como refere Ivor Montagu, num artigo inserido na revista inglesa Sight and Sound (Primavera 1973), as causas da proibição do filme na União Soviética não são muito claras; julga-se que a acusação de falta de verdade histórica terá estado na origem da sua interdição até 1971.


Andrei Rubliov foi um célebre pintor de ícones - um génio, no dizer de Tarkovski - que viveu entre 1370 e 1430. Talvez que a forma como o filme de Tarkovski recusa o simples preenchimento das convenções biográficas da lenda tenha, de algum modo, contribuído para a citada acusação. Tarkovski lembrou, a propósito, que tal acusação peca por falta de fundamentação: tendo em conta que pouco ou nada se sabe sobre a vida de um monge que viveu há mais de 500 anos, o mesmo critério deveria levar-nos a recusar também obras como Hamlet ou Júlio César.

No fundo, a questão formal que assim se levanta não é alheia, muito pelo contrário, à mise en scene do próprio filme. A suposta "inverosimilhança histórica" de Andrei Rubliov decorre do método narrativo e dramático adoptado por Tarkovski, nele radicando grande parte do fascínio e do carácter de excepção do filme.

Para Tarkovski, a história não é um espaço de integração (em categorias conhecidas), mas um lugar de permanente dispersão. A estrutura do filme não diz outra coisa: respeitando uma certa linearidade cronológica, ele está, ao mesmo tempo, organizado por episódios relativamente autónomos ("Jogral", "Juízo Final", "Sino", etc.) e que mutuamente se respondem e interrogam.
Assim como A Infância de Ivan, primeira longa-metragem de Tarkovski, se apresentava ciclicamente contaminado pela emergência do sonho, a ponto de o "histórico" e o "onírico" se articularem num originalíssimo regime narrativo, assim também em Andrei Rubliov podemos falar de uma relação singular entre o "simbólico" e o "individual". Mais precisamente, a trajectória do personagem Andrei Rubliov vai sendo marcada por episódios que instalam na sua existência a perplexidade do facto artístico e a inevitabilidade do acontecimento histórico: é o caso do desafio inicial do homem que voa e é, sobretudo, o caso do rapaz que decide fundir o sino, sob pena de perder a vida. Rubliov atravessa quase todos esses episódios como espectador, quer dizer, como alguém cuja prática profissional o exclui de uma participação directa, ao mesmo tempo que questões lancinantes emergem.

Consequência principal deste método é o facto de a história de Andrei Rubliov surgir como algo que escapa ao efeito de terminante ou determinista de qualquer centro (incluindo, naturalmente, o próprio Rubliov). Cada acontecimento da vida do personagem surge como prova, num duplo sentido: qual a verdade da história e qual a história da verdade?

"É estranho. Tudo o que realizei, tudo o que tenho a intenção de realizar está sempre ligado a personagens que têm qualquer coisa a superar, que devem vencer em nome desse optimismo ao qual dou tanta importância e de que falo constantemente. Dito de outro modo, o meu tema é este: um homem, apoiado por uma ideia, procura apaixonadamente a resposta a uma questão, vai até ao fim na sua procura para compreender a realidade. E obtém essa compreensão graças ao que experimenta, à sua experiência individual". Tarkoski (Moscovo, Julho de 1969)

A bem dizer, não há história em Tarkovski, isto é, não há evolução factual que não se reinscreva na dimensão estrita de um universo individual(izado) e, em tal deslocação, se amplie e reduza segundo uma lógica que escapa a qualquer verdade colectiva. Uma vez mais, o fabuloso episódio do sino encerra a acção de Andrei Rubliov pode servir de sintoma esclarecedor. Em primeiro lugar, tudo se desencadeia a partir de um logro fundamental: Boris, o rapaz responsável pela fundição, não sabe, realmente, a técnica a utilizar: depois fundição do sino é vivida com espectacular evento social, ao mesmo tempo consagração do poder divino e confirmação de vários poderes temporais; finalmente, tudo isso ecoa em Andrei Rubliov como efeito de desbloqueamento do seu silêncio e do seu desejo de pintar.

O fantasma dominante deste filme é, por isso, o da utilidade da arte, quer dizer, o da sua recuperação por discursos que a podem tornar fiel a um certo destino ou a um certo significado. Ao mesmo tempo, porém, há sempre um excesso que multiplica o ser da arte, confirmando o seu saber mas também o seu irrisório de não ser senão... arte.

Repare-se ainda como Andrei Rubliov não passa de mais um dos órfãos filmados por Tarkovski, ser de uma solidão que só encontra expressão na imensidão sempre reencontrada na natureza. Não é, por isso, a natureza um lugar de redenção em Tarkovski, mas um continente sempre aberto e em constante transfiguração que prolonga as contradições interiores do homem perante a afirmação do seu ser. A arte surge, então, como objecto devolvido à natureza e ao seu movimento. Não é, por isso, acidental, que a chuva comece por aparecer sobre a matéria dos ícones, antes do plano final dos cavalos junto à água. Talvez que a água corrente com que se inicia Solaris, o filme seguinte de Tarkovski, não seja senão a expressão do mesmo rio.

João Lopes, in 100 Dias 100 Filmes, Cinemateca Portuguesa


(colaboração com Allgarve '10)


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