Nada está perdido. Os aerólitos são cada vez mais raros, mas ainda caem no planeta cinema, são filmes inclassificáveis que parecem vir da origem dos tempos e abrem passagem a algo que há-de vir. Podia dizer-se que não há mais belo desafio para um cineasta do que criar a mise-en-scene do que não existe ou do que outrora pode ter existido mas desapareceu sem deixar rasto. O que desapareceu é aqui revelação de um mito da religião cristã que descobrimos permeável ao drama e até ao burlesco, repleto de imagens cristalinas e de sonhos infernais, sem que estes vasos comunicantes jamais fiquem compartimentados. Do muito que AIbert Serra nos contou sobre O Canto dos Pássaros há uma frase sua que intriga: "Quis captar o exacto momento em que o sagrado acaba de nascer, um momento de cinema antes do pecado." Ora, este desafio não só é gigante como é coisa rara de ouvir da boca de um cineasta, muito menos de um autodidacta com 34 anos. Dreyer tentou-o, Rossellini também. Depois deles, houve Pasolini, Godard, Herzog: todos perseguiram a mesma dimensão espiritual. Só que O Canto dos Pássaros - e é isto que é notável - consegue aparecer feito de uma audácia sem progenitura. Como se o tal 'momento do sagrado' pudesse de facto nascer sem qualquer blasfémia, graças a um milagre de cinema, inventando um tempo tão primitivo que é anterior à cultura. Um tempo tão solene e ascético que ainda é pagão. Um tempo em que o cordeiro acariciado pela Virgem Maria anuncia mas não figura ainda o Cordeiro de Deus das Sagradas Escrituras.
De todos os episódios do Novo Testamento, o dos Reis Magos é o mais secreto. A natureza destes monarcas, astrónomos e místicos, é tão incerta quanto a sua origem, e tão-pouco se sabe o que lhes aconteceu depois da adoração ao Deus Menino. Apenas se sabe que a viagem dos Magos ao presépio foi indicada por uma estrela e que o regresso tomou rumo distinto, para despistar a fúria do cruel Herodes, apavorado pelo nascimento do novo reino. Ou seja: do ponto de vista narrativo, esta história é uma página em branco. E o que faz Serra? Transforma três 'LIuíses' camponeses em reis: a Carbó e Serrat Masanellas, que são um ex-professor de ténis e um pedreiro rechonchudo (foram Quixote e Sancho Pança em Honra de Cavalaria), juntou-se Lluís Serrat Batlle, pai do último. A Virgem Maria é interpretada por uma amiga de infância de Serra e produtora dos seus filmes, Montse Triola. Todos eles são de Banyoles, pequena terra natal do realizador, e actores não profissionais. Praticamente, não há argumento, nem maquilhagem, nem iluminação (o filme foi rodado em exteriores, na Islândia, nas ilhas Canárias e em França, no Pays de la Loire). Serra usou duas câmaras HD e explorou a fundo o potencial da imagem digital a preto e branco, sublinhando os seus contrastes. E como se tudo isto não bastasse para estarmos já perante um filme raro, o realizador ainda chamou para o papel de São José um crítico de cinema canadiano, Mark Peranson, o único judeu do elenco. Peranson não fala catalão, mas ainda se recorda do hebreu que aprendeu em criança e foi convidado a falar nessa língua, aumentando ainda mais o efeito de estranheza de um 'canto' para recordar décadas e décadas a fio. Jamais houve um filme assim - e quantos, afinal, se podem orgulhar disso?
Francisco Ferreira, Expresso
O catalão Albert Serra, hoje já uma coqueluche cinéfila, faz filmes porque não consegue fazer literatura. O cinema, diz, é uma forma de não se aborrecer. Isso quer dizer que em O Canto dos Pássaros encontramos diversão? Não: encontramos fé.
Em Honra de Cavalaria, filme de estreia de Albert Serra, havia um Dom Quixote muito pessoal, aquele que (imaginamos) não fora descrito pelas palavras de Cervantes. Se quiséssemos uma sinopse jocosa do filme, podíamos dizer que se tratava de uma sequência de longos planos de Quixote e Sancho em caminhada pelo meio do mato - quase sem palavra.
Honra de Cavalaria não era apenas um pequeno cometa na tela - a sua feitura também parecia uma história mirabolante. Tinha sido realizado com meia-dúzia de tostões, um guião mínimo, uma equipa reduzidíssima e actores amadores. Era uma espécie de prova de que a imaginação e o talento valem mais que profissionalismo, produção esmerada e equipas de "marketing".
Dois anos depois, Serra prolonga essa linguagem de contemplação com O Canto dos Pássaros, de novo usando personagens que já fazem parte da nossa iconografia: desta feita o realizador segue os três Reis Magos no seu caminho de encontro a Cristo. A paleta de cores é diminuída para um preto e branco que nunca é austero, as palavras reduzem-se ao mínimo, os planos duram ainda mais - e começa a desenhar-se um imaginário: Serra parece querer filmar um desejo de transcendência, retirando aquilo que possa dar ao espectador guias de leitura. Somos deixados em suspenso, num exercício de adivinhação: o que querem estes homens?
Dificilmente se imagina Serra a partir dos seus filmes. É um catalão de 33 anos (faz 34 este ano), jovial e de palavra fácil, dado a pequenas provocações e com basto sentido de humor. Um homem de brincos nas orelhas e anéis nos dedos, de camisa branca, casaco azul escuro e gravata preta fina, bigodinho que podia pertencer a um chicano passador de droga, que recusa - com duas piadas - leituras excessivamente complexas da sua obra. Diz que só faz cinema para se divertir com os amigos. Há nisto uma qualidade de pose.
Esteve em Lisboa para apresentar O Canto dos Pássaros. Agora já não é um desconhecido que fez um pequeno e belo primeiro filme. É uma coqueluche do cinema, laudado em revistas e premiado em festivais. No seu registo uma-no-cravo-outra-na-ferradura, limita-se a dizer: "Não sei. Apenas fiz o que quis, o que gosto de fazer". Depois, não sem graça, começa a desmerecer o que faz. "Gosto muito de literatura, não de cinema. Mas a literatura dá muito trabalho e em Espanha é difícil ser melhor que os outros em literatura. No cinema não: é fácil fazer cinema e em Espanha é tudo muito mau, por isso é fácil ser melhor que os outros".
Há alguma verdade nisto, note-se. Serra licenciou-se em Literatura Hispânica e Literatura Comparada, pelo que o seu amor à literatura será verdadeiro. Mas insiste na mesma tecla: "Nunca estudei cinema, nunca estive numa filmagem que não fosse minha, só uso actores e técnicos da minha terra", insiste, recuperando o género de declarações que lhe conhecemos desde Honra de Cavalaria. Fiz cinema para quebrar a rotina. Era cinéfilo, certo, mas faço cinema para me entreter" - faz uma pausa e depois acrescenta, antes de desatar a rir: "Para me entreter a mim, porque os outros aborrecem-se com os meus filmes". Introduz uma ideia que repetirá: "Não sou profissional". Faz questão de que se perceba que nunca repete "a mesma cena", nem faz "ensaios porque são aborrecidos". A ideia de aborrecimento parece ser-lhe essencial.
Pelo menos admite que os seus filmes têm o mínimo grau de preparação, que "o filme está pensado antes da rodagem". Mas afiança que enquanto filma nunca olha "para o monitor", nunca vê "qualquer imagem antes de começar a montar". Vai para a rodagem "com um conceito preciso do que se vai fazer". Onde o filme se decide "é na montagem": "Demoro meses e meses a montar tudo com um amigo que domina mais a linguagem dos computadores. No último mês faço tudo sozinho, porque se trata de detalhes e sobre detalhes não gosto de discutir detalhes com ninguém".
Para o seu primeiro filme demorou "uma semana a fazer o guião". Foi escrito "numa viagem de avião do México para Madrid". Os guiões não são fechados: "Ponho o tema de um diálogo, o assunto acerca do qual os actores vão conversar, mas não escrevo o diálogo". Há uma cena em O Canto dos Pássaros em que os Reis Magos sobem uma montanha e vão conversando entre si. "Aí é tudo improvisado", explica, antes de atirar mais uma das suas frases laminares que parecem servir mais para despistar ou criar mistério que para explicar: "Um guião só serve para conseguir um subsídio".
É menos dado a provocações quando se dedica exclusivamente a pensar o seu cinema. Admite que este filme é, até certo ponto, um prolongamento do anterior, mas o mais interessante é ver como assinala as diferenças. Honra de Cavalaria, diz, "tinha muita contemplação", mas "a câmara era muito física, aproximava-se dos rostos, das ervas". O Canto dos Pássaros é "mais atmosférico, mais abstracto". "Neste filme há muita pedra vulcânica, muitas linhas definidas, o que provoca uma imagem muito gráfica. Há um fascínio, neste filme, com o nível superficial da imagem".
Tem visível prazer em pensar em termos imagéticos. Não o ouvimos discutir o "interior" das personagens - aliás, não gosta de "usar psicologia". A razão é óbvia: "Aborrece-me". A psicologia, adiante, "tem muitos clichés" e "a televisão faz isso melhor". É aqui que o humor de Serra se revela mais sério do que parece à primeira: "Os Sopranos fazem isso melhor, porque têm semanas para desenvolver uma personagem. Por isso o cinema tem de ir buscar algo mais poético, porque não pode fazer o que a televisão americana faz melhor. Porque é que nos recordamos de A Desaparecida, de John Ford? Interessa-nos o conflito com os índios? Não. Interessa-nos a coisa poética".
Isto explica a razão por que gosta de trabalhar "com figuras icónicas": "Toda a gente as conhece, não tenho de explicar a história", o que - imaginamos - o aborreceria fazer. "Não tenho interesse em fazer filmes sobre os problemas das famílias burguesas", acrescenta. Para que fique claro ao que vem, deixa uma frase pessoal em forma de programa estético (ou vice-versa): "Há filmes muito bons sobre isso, mas a mim não me interessa. Não me interessa na vida real (não tenho mulher, nem filhos, nem família) quanto mais em filmes".
O uso de figuras icónicas, no entanto, não implica que o tratamento delas seja sempre igual, e Serra assinala as diferenças entre Honra de Cavalaria e O Canto dos Pássaros: "No primeiro filme, aquelas personagens são arquétipos, porque já temos muita informação sobre elas. Mas os Reis Magos só os conhecemos da pintura, já que na Bíblia só há três linhas a respeito deles". Serra queria conservar esta origem icónica "de personagens planas, sem conflito dramático", o que leva a "uma intensificação do silêncio". Gosta de personagens que estejam "num esforço de superação", mas das quais "não vemos nunca a razão do seu esforço". O importante "está sempre fora do campo", o que implica uma cumplicidade entre espectador e filme: "O espectador tem de procurar o mesmo que os Reis Magos: tem de acreditar que no final do plano acontece algo". Chegamos ao fundamental da estética de Serra: o espectador que se senta para assistir a um filme seu incorre no mesmo que as suas personagens: "Uma busca de fé. O que se encontra no filme é a fé. Algo intemporal, alheado do tempo. A ideia de que ali vai nascer algo".
João Bonifácio e Luís Miguel Oliveira, Público
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