MÃE ROSA | 14 NOV | 21H30 | IPDJ



MÃE ROSA
Brillante Mendoza
Filipinas, 2016, 110', M/14


FICHA TÉCNICA
Título Original: Ma' Rosa
Realização: Brillante Mendoza
Argumento: Troy Espiritu
Montagem: Diego Marx Dobles
Fotografia: Odyssey Flores
Música: Teresa Barrozo
Interpretação:  Jaclyn Jose, Julio Diaz e Baron Geisler
Origem: Filipinas
Ano: 2016
Duração: 110'

FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Cannes – Prémio de Melhor Actriz





NOTA DE INTENÇÕES

A ideia do filme surgiu, há quatro anos, quando fui indirectamente implicado num incidente semelhante. Esta história interessa-me, porque mergulha no coração alterado de uma familia filipina comum. Se um membro da nossa familia se encontra numa situação difícil, por causa dos crimes que cometeu, estaremos dispostas a fazer tudo para o poupar, ainda que isso implique violar valores fundamentais?
Numa sociedade em que a lei do mais forte é uma realidade, a família torna-se amoral, MA' ROSA talvez seja um dos filmes mais difíceis que fiz, por causa da susceptibilidade do seu tema. Também mostra um outro paradigma endémico do sistema policial corrupto das Filipinas, que se tornou prática corrente em todos as bairros de Manila. MA' ROSA narra um momento da vida de uma família filipina, mas é também uma amostra de vida de um bairro popular de Manila. Privilegiei a tratamento documental ao longa de todo o filme, o que lhe confere um forte travo de realismo, reforçado pela utilização de cenários e acessórios naturais. Mas a que poderia parecer um simples trabalho de direcção artística é, na verdade, um desafio considerável para qualquer realizador, porque, ainda que o filme tenha sido rodada com um estilo minimalista, trata-se de uma longa-metragem com actores profissionais, formados em diferentes técnicas de representação.
Com o intuito de capturar a natureza bruta das emoções, pedi aos actores que se esquecessem de tudo o que aprenderam e que actuassem da forma mais natural possível, uma vez que também iam rodar com actores não-profissionais, por outro lado, nunca lhes foi dado o argumento e as únicas indicações que receberam eram as que lhes dava durante a rodagem. Os diálogos, baseados no que os intérpretes sentiam durante a rodagem, são espontâneos. O filme fai rodado respeitando a cronologia da história, para que os intérpretes pudessem sentir a angústia das suas personagens. Com o sentimento de incerteza a ter de se materializar no ecrã, a montagem colou-se ao ponto de vista de Ma' Rasa, a personagem principal, enquanto acompanhamos a história do que lhe aconteceu, naquela noite.
Brillante Mendoza





CRÍTICAS

O cinema de Brillante Mendoza tem uma tal voracidade de real, um tão grande furor de testemunho, que chama o conceito de cinema documental para o definir. Para mais, a prática continuada da câmara à mão, os personagens a serem seguidos nas ruas como se os perseguíssemos, tudo cria — por aparente similitude à estética de algumas atualidades televisivas — um efeito de realidade imediata, sem ficção interposta, como se apanhássemos gente comum numa esquina e nos puséssemos a indagar. Ainda por cima, o que o filme mostra, o quotidiano agreste de um bairro muito pobre de Manila, com a corrupção da polícia a tornar as coisas ainda mais intoleráveis, prende-nos pela angústia e pela indignação, apesar de não sabermos muito dos protagonistas, de quem nos aproximamos mais por solidariedade que por vera empatia. Mas, ao invés do que parece, "Mãe Rosa" não é um quase documento com gente apanhada nas ruas. Pelo contrário, os seus intérpretes são profissionais com carreiras firmadas, a veracidade dos rostos é um trabalho de escolha, de maquilhagem, de guarda-roupa, de cinema, enfim. Precisa é, por outro lado, a eleição dos lugares — as sequências em exteriores são das que mais insuflam o filme de realidade — e dos pormenores, na amostragem de uma sedimentada pobreza que "Mãe Rosa" dá a ver como um facto da vida. E essa pobreza quase congénita que acompanha as vacilações morais ao longo do filme, do pequeno tráfico de droga a que a protagonista se dedica para arredondar os proveitos da minúscula loja onde vai fazendo comércios vários, à corrupção da polícia, à prostituição eventual de um dos filhos. Sem escândalo.
Jorge Leitão Ramos, Expresso

 


A luta pela sobrevivência é interceptada nas ruas e na lama de Mãe Rosa com a eficácia cortante de cinema do género: género Brillante Mendoza.
Por alturas da sua “catedral”­ Lola, de 2009 – grande ano para ele, foi também o ano de Kinatay...­ – , o filipino Brillante Mendoza dizia-nos que lhe interessava a “realidade” mas também a “verdade do cinema”. Num filme em que uma avó se debatia com o guarda-chuva ao vento e uma cidade se dissolvia em água, Mendoza respondia a uma questão muito concreta sobre a chuva: era real ou era fabricada, era de cinema, de ficção, ou era real, de documentário? Veio dos céus e, simultaneamente, foi produzida por máquinas, respondia. Tal como os actores: havia profissionais e havia amadores. Tal como as cidades, acrescentamos, que no cinema fusional de Mendoza, em que o documento tem na ficção possibilidades de expressão e de revelação, foram sendo tratadas e dominadas como estúdios a céu aberto: cada figura humana, mais as suas incessantes caminhadas que não levam a lugar algum, cada produção do caos da realidade, são sinais da claustrofobia do mundo, da crueldade das relações de poder, provas da luta pela sobrevivência, e encontram no determinismo dos géneros cinematográficos forma de expressão eloquente.
Mãe Rosa é um reencontro com tudo aquilo que, em 2009, mostrava um universo em expansão, mostrava um cineasta que começara tarde (aos 45 anos, em 2005, com Massagista) a conquistar o tempo perdido. Um feliz reencontro porque quando o nome de Brillante passava da promessa a confirmação, com prémios e ciclos a servirem de caução, houve um falhado encontro com Isabelle Huppert, mas que afinal era consequência irresistível do momento de que o filipino gozava (Cativos, em 2012). E se em 2015 Taklub, realizado depois da devastação do ciclone Yolanda (seis mil vítimas nas Filipinas), confirmava que o cinema para Mendoza só podia existir junto da catastrófica ligação com lugares e pessoas (as leis da natureza tão intransponíveis como as leis sociais), parecia ter como limite domesticador o programa oficial de protecção contra os desastres naturais que o gerara.
Mãe Rosa, então: é um dos títulos para guardar, numa escolha pessoal, com John John (2007, nos meandros do “mercado” de adopção e das dependências emocionais e económicas que engendra), Lola (duas mulheres que se cruzam, uma a avó de uma vítima de assassinato, a outra do neto suspeito de ser o assassino) ou Kinatay (a perda de inocência de um jovem polícia­ e a perda de inocência do espectador voyeur, um dos “escândalos” da história de Cannes.). Mendoza trilha de novo com as personagens as ruas de um bairro sobrepovoado, encharcado em água e lama, sabendo que elas não chegarão a lado nenhum. Talvez cheguem com o cinema, que as vai buscar e as apanha no momento sempre certo e sempre justo em que elas, emanação da realidade, simultaneamente se dizem com a eloquência da ficção – talvez se possa obstar, mas só se as alturas do lirismo de Lola servirem de comparação, que há uma eficácia e uma secura de “género” que ameaçam o filme como um maquinismo, desde logo o do “género Brillante Mendoza”, até porque se reconhecem as deambulações sem saída, as esquadras de polícia...
Mãe Rosa: pequena comerciante de um bairro pobre, quatro filhos, um negócio de drogas para manter a economia doméstica a flutuar ao nível da sobrevivência. Ela e o marido são apanhados pela polícia, que joga com o casal o jogo da corrupção, e cabe aos filhos intervir­ - conseguir o dinheiro que a polícia pede – para desenrascar os pais. Neste império determinista da precaridade, a câmara de Mendoza não faz um plano a mais, um daqueles para sublinhar, para se aproveitar da miséria com redundância ou para prometer epifanias. A montagem é cortante, cruel, é essa a única forma de estar com as personagens. Há um momento transbordante quando Mãe Rosa tem finalmente tempo para parar a pensar no que lhe aconteceu. E ...­ Mendoza, momento apurado, suspende –... é tudo, e é o fim.
Vasco Câmara, Público

 

 

 

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