CLAUSTROS DO MUSEU MUNICIPAL
Sócios - 2€ (caderno de 5 senhas, 10€)
Não-Sócios - Passe para os 10 dias 25€ / Estudantes 3,5€ / Restantes 4€
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“Uma radiante história de fantasmas e uma história do próprio cinema.”
Artforum
“Uma fantástica fábula de amor.”
Chicago Tribune
“Um verdadeiro presente, de um realizador que tem quase a idade do próprio cinema.”
The New York Times
Um homem fotografa uma jovem morta e a imagem... sorri para ele! Comédia? Drama» Dir-se-ia um cruzamento perverso de ambos, filmado como se fosse um requiem irónico por todas as ilusões e desilusões do romantismo. Manoel de Oliveira nunca desistiu deste velho projecto (o argumento original foi escrito em 1954) e ainda bem: o resultado é um objecto de deliciosa e contagiante liberdade artística.
João Lopes, Cinema 2000
Não esperem meias tintas nem elogios discretos: o novo filme de Manoel de Oliveira, história de um fotógrafo siderado pelo fantasma de uma mulher morta, é magnífico. O seu melhor dos últimos anos. E tem um passado negro.
"O Estranho Caso de Angélica" chega às salas portuguesas quase 60 anos depois da primeira versão do argumento, escrita por Manoel de Oliveira. Quem seguir este longuíssimo percurso concluirá que a saga, afinal, até acabou bem, com o filme a estrear no Un Certain Regard de Cannes (no ano passado), logo ali colhendo louvores e reconhecimento dos quatro cantos do mundo. Porém, a história deste 'estranho caso' está envolta em trevas. Obriga-nos a regressar aos fascistas anos 50 portugueses e à década mais miserável e estéril do nosso cinema - década indigna deste filme e da grandeza do seu autor.
O projeto data de 1952 e chamava-se "Angélica". Não foi o primeiro - nem seria o último - que Oliveira deixaria na gaveta desde "Douro, Faina Fluvial'', mas, neste terreno de dúvidas e de filmes por fazer, todos os indícios levam a acreditar que foi o projeto mais importante do cineasta do Porto. Em 1952, Oliveira submete o guião ao julgamento do Secretariado Nacional de Informação (SNI), organismo responsável pela propaganda política de Salazar, pela informação pública e também pelo cinema. Naqueles anos, as comédias populares portuguesas que triunfaram apesar da penúria do seu valor artístico, esses filmes de triste figura que serviam de extensão do regime, começavam a ser atacados, em especial pelo movimento dos cineclubes, muitos clandestinos. Para aquela geração de cinéfilos lusos, Oliveira é já a figura mais importante da cinematografia, a sua maior esperança. Contudo, o veredicto do SNI, que chumba "Angélica", é severo: "Argumento pessimista e demasiado mórbido." Recusa recebida com indignação... mas pia-se fininho.
Nestes anos 50, Oliveira - é ele quem o diz no dossiê de imprensa de Cannes - descobre ainda que tem outro problema em mãos: "Com 'Angélica', tinha algumas reservas relativamente à ideia de filmar o sonho, já que a máquina de filmar não filma nem sonhos nem pensamentos (...). A pessoa diz que sonhou ou que pensou, mas não podemos ter a certeza quanto ao que ela diz. É qualquer coisa que está deformada ou que pode ser mentira." Ora, em "Angélica", a imagem do sonho está na origem do drama. E é este drama que permitirá transfigurar o real, até ao ponto em que a morte se possa transformar em vida. Esta ideia, como hoje se sabe, é matéria de exploração infindável em Oliveira veja-se "Benilde ou Virgem Mãe", de 1975, bem como os seguintes "Amor de Perdição", "Francisca" ou "Le Soulier de Satin". Só que "Angélica" nascera 20 anos antes, em tempo maldito - e filme maldito se tornou.
É necessário mantermo-nos ainda nos anos 50 para melhor compreender a travessia do deserto de Oliveira e a história de um argumento que ganhará reputação mítica com a passagem dos anos. Em 1954, todo o edifício do cinema português construído pelo regime nos anos 30 aproximava-se do colapso. Fecham estúdios. A produção é magra, a qualidade aberrante. "Restava à nova crítica, que entretanto tomara o poder, pedir para o cadáver do cinema português o local adequado: o cemitério", escreveu João Bénard da Costa num livro que documenta estes factos ("Histórias do Cinema", ed. Casa da Moeda, 1991). Em 1954, Oliveira tinha 46 anos. Não filmava há 12, desde "Aniki Bóbó". Afastara-se do cinema para se dedicar a negócios na indústria e na agricultura. E, em 1955, ano em que o projeto de criação da RTP começa a ganhar corpo, o cinema português chega ao seu annus horribilis, o único da sua história em que nenhum filme foi estreado. Curiosamente, é nesse preciso ano que Oliveira parte para a Alemanha, para um estágio nos laboratórios Agfa, em Leverkussen, onde se familiariza com a fotografia a cor. De regresso a Portugal, realiza em 1956 uma nova curta-metragem sobre o trabalho do grande pintor de aguarelas António Cruz, na cidade do Porto: "O Pintor e a Cidade". Filme notável que valerá a Oliveira, em 1957, o primeiro prémio internacional da sua carreira.
Regressemos ao argumento do filme rechaçado pelo poder, "Angélica", publicado na íntegra (com data de 18 de junho de 1954) no livro "Alguns Projectos Não Realizados e Outros Textos de Manoel de Oliveira" (ed. Cinemateca Portuguesa, 1988). O argumento foi inspirado num episódio autobiográfico, já que ao cineasta, tal como ao protagonista Isaac (Ricardo Trêpa), alguém pediu que fotografasse uma jovem mulher morta, amiga da família. Oliveira possuía uma máquina fotográfica - uma Leica - e notou que, ao fazer o foco, conseguira uma imagem sobreposta em que parecia que, do corpo, se evolava uma figura viva. A ideia do filme nasce desse episódio. E é por causa da fotografia acidental que Isaac começa a acreditar na ilusão de que a morta voltou à vida, ou seja, é pela fotografia que a imagem ganha o poder de uma alucinação.
Esse argumento, bastante próximo da versão que Oliveira atualizou para os tempos de hoje (ainda que com nuances que parecem vir dos anos 50) e que daria origem a "O Estranho Caso de Angélica", é um documento com uma precisão e uma inventividade apaixonantes. Já vêm daí os ruídos estridentes e desafinados, todos esses sons penetrantes e desconexos que assaltam a tranquilidade do jovem Isaac. Também no argumento se encontra descrito ao detalhe o delicioso episódio do gato que se fixa a mirar o pássaro na gaiola, augurando a fatalidade que há-de vir. E, embora Isaac não seja exatamente um alter ego de Oliveira, não podemos esquecer que é ele, tal como o cineasta, aquele que vê e nos dá a ver a fotogenia de Angélica, essa fotogenia fatal, prova de contacto com um 'além deste mundo' que libertará a personagem e em simultâneo o assombra, dia e noite, até à exaustão.
"O Estranho Caso de Angélica" é um filme denso e inesgotável, um desses raros que conseguem - e graças a simples truques de Méliès - interrogar o poder do cinema e a sua relação com a verdade e a mentira. É um ghost movie furioso, ainda que realizado por um homem cético que nos diz que, da morte, nada sabemos: "Pois ninguém de lá veio para a contar." E, no entanto, Oliveira é extraordinário a fazer a mise en scene dos seus fantasmas. Seis décadas volvidas, "O Estranho Caso de Angélica" prova que teria sido a obra-prima dos anos 50 que o cinema português tanto precisou e não teve. A mesma obra-prima que é hoje.
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Francisco Ferreira, Expresso, 30/4/11
Em O Estranho Caso de Angélica, os segredos da vida para além da morte podem estar por detrás da câmara de um fotógrafo.
"Eu da vida ainda presumo saber alguma coisa, da morte não sei nada. Nunca a experimentei, nunca ninguém a experimentou", diz Manoel de Oliveira, do alto dos 102 anos, em entrevista a António Preto, a propósito de O Estranho Caso de Angélica, o filme em que filma a morte/ a morta e a morte/ a morta lhe sorri. É a primeira vez que Manoel de Oliveira recupera um projeto tão antigo. O guião original remonta a 1952 e foi abandonado antes das filmagens. Talvez assim se justifique a elipse temporal comum a alguns filmes de Oliveira, como se o tempo cronológico fosse um pormenor que se dilui... (uma década em 100 anos não é a mesma coisa que uma década em 30). Há assim uma ambiguidade temporal, tal como acontecia em Singularidades de uma Rapariga Loura. Manoel de Oliveira diz que este não é um filme de época, mas claramente situa-se num meio tempo... o tom de época está lá e dificilmente nos convence da contemporaneidade, nem mesmo quando, pela primeira vez na sua filmografia, utiliza efeitos especiais. A própria personagem central, Isaac, interpretada por Ricardo Trepa, padece desse problema temporal: o argumento original foi escrito ainda na ressaca da II Guerra Mundial, onde ser judeu em Portugal tinha determinada conotação que hoje se perdeu, até porque a comunidade é demasiado pequena para ser estigmatizada e também por isso, há um nível de leitura do filme que facilmente se perde. Mas isso não é mesmo o mais importante deste O Estranho Caso de Angélica, que se fosse um livro inserir-se-ia próximo de Teixeira de Pascoaes.
O que realmente importa aqui é o sorriso da rapariga morta, que para morta não está nada mal. É como se Oliveira a filmasse do outro lado, transformada em querubim. A frieza da morte é substituída pelo ideal de beleza romântico, que não é naturalmente o das peles morenas queimadas pelo sol, mas a alva brancura dos sorrisos pálidos, dos cabelos loiros e imaculados, assim como os 'deuses' do Renascimento.
Angélica, claro está, como diz o nome, é um anjo, apesar de não se aplicar o ideal de pureza bíblico - "o marido está inconsolável". Angélica é casada e os anjos têm sexo. Isaac, o fotógrafa judeu que é chamado para tirar o retrato à rapariga depois de morta, encontra no sorriso uma chamada do transcendente. Mas esse apelo, essa atração que não é física mas sim metafísica, não deixa de ter uma carga impura de infidelidade, o que só torna o filme menos óbvio e mais interessante. Isaac, que é um homem espiritual, que fotografa o que ninguém quer reter, a rudeza dos trabalhadores do campo, as vinhas do Douro, sente ali uma atração pelo intangível. Há uma sedução pelo infinito, pela beleza e pelo amor absoluto que não podem ser encontrados na vida. Se por um lado o sorriso de Angélica pode ser visto como o canto das sereias que atrai os marinheiros para o fundo do mar, por outro também se pode descobrir nele um olhar doce sobre a morte, como se, quando partíssemos, partíssemos desta para melhor.
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Manuel Halpern, aeiou.visao.pt
João Lopes, Cinema 2000
Não esperem meias tintas nem elogios discretos: o novo filme de Manoel de Oliveira, história de um fotógrafo siderado pelo fantasma de uma mulher morta, é magnífico. O seu melhor dos últimos anos. E tem um passado negro.
"O Estranho Caso de Angélica" chega às salas portuguesas quase 60 anos depois da primeira versão do argumento, escrita por Manoel de Oliveira. Quem seguir este longuíssimo percurso concluirá que a saga, afinal, até acabou bem, com o filme a estrear no Un Certain Regard de Cannes (no ano passado), logo ali colhendo louvores e reconhecimento dos quatro cantos do mundo. Porém, a história deste 'estranho caso' está envolta em trevas. Obriga-nos a regressar aos fascistas anos 50 portugueses e à década mais miserável e estéril do nosso cinema - década indigna deste filme e da grandeza do seu autor.
O projeto data de 1952 e chamava-se "Angélica". Não foi o primeiro - nem seria o último - que Oliveira deixaria na gaveta desde "Douro, Faina Fluvial'', mas, neste terreno de dúvidas e de filmes por fazer, todos os indícios levam a acreditar que foi o projeto mais importante do cineasta do Porto. Em 1952, Oliveira submete o guião ao julgamento do Secretariado Nacional de Informação (SNI), organismo responsável pela propaganda política de Salazar, pela informação pública e também pelo cinema. Naqueles anos, as comédias populares portuguesas que triunfaram apesar da penúria do seu valor artístico, esses filmes de triste figura que serviam de extensão do regime, começavam a ser atacados, em especial pelo movimento dos cineclubes, muitos clandestinos. Para aquela geração de cinéfilos lusos, Oliveira é já a figura mais importante da cinematografia, a sua maior esperança. Contudo, o veredicto do SNI, que chumba "Angélica", é severo: "Argumento pessimista e demasiado mórbido." Recusa recebida com indignação... mas pia-se fininho.
Nestes anos 50, Oliveira - é ele quem o diz no dossiê de imprensa de Cannes - descobre ainda que tem outro problema em mãos: "Com 'Angélica', tinha algumas reservas relativamente à ideia de filmar o sonho, já que a máquina de filmar não filma nem sonhos nem pensamentos (...). A pessoa diz que sonhou ou que pensou, mas não podemos ter a certeza quanto ao que ela diz. É qualquer coisa que está deformada ou que pode ser mentira." Ora, em "Angélica", a imagem do sonho está na origem do drama. E é este drama que permitirá transfigurar o real, até ao ponto em que a morte se possa transformar em vida. Esta ideia, como hoje se sabe, é matéria de exploração infindável em Oliveira veja-se "Benilde ou Virgem Mãe", de 1975, bem como os seguintes "Amor de Perdição", "Francisca" ou "Le Soulier de Satin". Só que "Angélica" nascera 20 anos antes, em tempo maldito - e filme maldito se tornou.
É necessário mantermo-nos ainda nos anos 50 para melhor compreender a travessia do deserto de Oliveira e a história de um argumento que ganhará reputação mítica com a passagem dos anos. Em 1954, todo o edifício do cinema português construído pelo regime nos anos 30 aproximava-se do colapso. Fecham estúdios. A produção é magra, a qualidade aberrante. "Restava à nova crítica, que entretanto tomara o poder, pedir para o cadáver do cinema português o local adequado: o cemitério", escreveu João Bénard da Costa num livro que documenta estes factos ("Histórias do Cinema", ed. Casa da Moeda, 1991). Em 1954, Oliveira tinha 46 anos. Não filmava há 12, desde "Aniki Bóbó". Afastara-se do cinema para se dedicar a negócios na indústria e na agricultura. E, em 1955, ano em que o projeto de criação da RTP começa a ganhar corpo, o cinema português chega ao seu annus horribilis, o único da sua história em que nenhum filme foi estreado. Curiosamente, é nesse preciso ano que Oliveira parte para a Alemanha, para um estágio nos laboratórios Agfa, em Leverkussen, onde se familiariza com a fotografia a cor. De regresso a Portugal, realiza em 1956 uma nova curta-metragem sobre o trabalho do grande pintor de aguarelas António Cruz, na cidade do Porto: "O Pintor e a Cidade". Filme notável que valerá a Oliveira, em 1957, o primeiro prémio internacional da sua carreira.
Regressemos ao argumento do filme rechaçado pelo poder, "Angélica", publicado na íntegra (com data de 18 de junho de 1954) no livro "Alguns Projectos Não Realizados e Outros Textos de Manoel de Oliveira" (ed. Cinemateca Portuguesa, 1988). O argumento foi inspirado num episódio autobiográfico, já que ao cineasta, tal como ao protagonista Isaac (Ricardo Trêpa), alguém pediu que fotografasse uma jovem mulher morta, amiga da família. Oliveira possuía uma máquina fotográfica - uma Leica - e notou que, ao fazer o foco, conseguira uma imagem sobreposta em que parecia que, do corpo, se evolava uma figura viva. A ideia do filme nasce desse episódio. E é por causa da fotografia acidental que Isaac começa a acreditar na ilusão de que a morta voltou à vida, ou seja, é pela fotografia que a imagem ganha o poder de uma alucinação.
Esse argumento, bastante próximo da versão que Oliveira atualizou para os tempos de hoje (ainda que com nuances que parecem vir dos anos 50) e que daria origem a "O Estranho Caso de Angélica", é um documento com uma precisão e uma inventividade apaixonantes. Já vêm daí os ruídos estridentes e desafinados, todos esses sons penetrantes e desconexos que assaltam a tranquilidade do jovem Isaac. Também no argumento se encontra descrito ao detalhe o delicioso episódio do gato que se fixa a mirar o pássaro na gaiola, augurando a fatalidade que há-de vir. E, embora Isaac não seja exatamente um alter ego de Oliveira, não podemos esquecer que é ele, tal como o cineasta, aquele que vê e nos dá a ver a fotogenia de Angélica, essa fotogenia fatal, prova de contacto com um 'além deste mundo' que libertará a personagem e em simultâneo o assombra, dia e noite, até à exaustão.
"O Estranho Caso de Angélica" é um filme denso e inesgotável, um desses raros que conseguem - e graças a simples truques de Méliès - interrogar o poder do cinema e a sua relação com a verdade e a mentira. É um ghost movie furioso, ainda que realizado por um homem cético que nos diz que, da morte, nada sabemos: "Pois ninguém de lá veio para a contar." E, no entanto, Oliveira é extraordinário a fazer a mise en scene dos seus fantasmas. Seis décadas volvidas, "O Estranho Caso de Angélica" prova que teria sido a obra-prima dos anos 50 que o cinema português tanto precisou e não teve. A mesma obra-prima que é hoje.
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Francisco Ferreira, Expresso, 30/4/11
Em O Estranho Caso de Angélica, os segredos da vida para além da morte podem estar por detrás da câmara de um fotógrafo.
"Eu da vida ainda presumo saber alguma coisa, da morte não sei nada. Nunca a experimentei, nunca ninguém a experimentou", diz Manoel de Oliveira, do alto dos 102 anos, em entrevista a António Preto, a propósito de O Estranho Caso de Angélica, o filme em que filma a morte/ a morta e a morte/ a morta lhe sorri. É a primeira vez que Manoel de Oliveira recupera um projeto tão antigo. O guião original remonta a 1952 e foi abandonado antes das filmagens. Talvez assim se justifique a elipse temporal comum a alguns filmes de Oliveira, como se o tempo cronológico fosse um pormenor que se dilui... (uma década em 100 anos não é a mesma coisa que uma década em 30). Há assim uma ambiguidade temporal, tal como acontecia em Singularidades de uma Rapariga Loura. Manoel de Oliveira diz que este não é um filme de época, mas claramente situa-se num meio tempo... o tom de época está lá e dificilmente nos convence da contemporaneidade, nem mesmo quando, pela primeira vez na sua filmografia, utiliza efeitos especiais. A própria personagem central, Isaac, interpretada por Ricardo Trepa, padece desse problema temporal: o argumento original foi escrito ainda na ressaca da II Guerra Mundial, onde ser judeu em Portugal tinha determinada conotação que hoje se perdeu, até porque a comunidade é demasiado pequena para ser estigmatizada e também por isso, há um nível de leitura do filme que facilmente se perde. Mas isso não é mesmo o mais importante deste O Estranho Caso de Angélica, que se fosse um livro inserir-se-ia próximo de Teixeira de Pascoaes.
O que realmente importa aqui é o sorriso da rapariga morta, que para morta não está nada mal. É como se Oliveira a filmasse do outro lado, transformada em querubim. A frieza da morte é substituída pelo ideal de beleza romântico, que não é naturalmente o das peles morenas queimadas pelo sol, mas a alva brancura dos sorrisos pálidos, dos cabelos loiros e imaculados, assim como os 'deuses' do Renascimento.
Angélica, claro está, como diz o nome, é um anjo, apesar de não se aplicar o ideal de pureza bíblico - "o marido está inconsolável". Angélica é casada e os anjos têm sexo. Isaac, o fotógrafa judeu que é chamado para tirar o retrato à rapariga depois de morta, encontra no sorriso uma chamada do transcendente. Mas esse apelo, essa atração que não é física mas sim metafísica, não deixa de ter uma carga impura de infidelidade, o que só torna o filme menos óbvio e mais interessante. Isaac, que é um homem espiritual, que fotografa o que ninguém quer reter, a rudeza dos trabalhadores do campo, as vinhas do Douro, sente ali uma atração pelo intangível. Há uma sedução pelo infinito, pela beleza e pelo amor absoluto que não podem ser encontrados na vida. Se por um lado o sorriso de Angélica pode ser visto como o canto das sereias que atrai os marinheiros para o fundo do mar, por outro também se pode descobrir nele um olhar doce sobre a morte, como se, quando partíssemos, partíssemos desta para melhor.
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Manuel Halpern, aeiou.visao.pt
Título Original: O Estranho Caso de Angélica
Realização: Manoel de Oliveira
Argumento: Manoel de Oliveira
Fotografia: Sabine Lancelin
Montagem: Valérie Loiseleux
Som: Henri Maikoff
Interpretação: Ricardo Trêpa, Pilar López de Ayala, Leonor Silveira, Luis Miguel Cintra,
Ana Maria Magalhães, Isabel Ruth, Filipe Vargas
Origem: Portugal
Ano: 2010
Duração: 97’
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