O PEQUENO QUINQUIN | 12 Maio | IPDJ | 21h30

O PEQUENO QUINQUIN
Bruno Dumont, França, 2014, 197’, M/12

FESTIVAIS E PRÉMIOS
Quinzena dos Realizadores – Festival de Cannes
Lisbon & Estoril Film Festival – Competição
Mostra de São Paulo – Prémio da Crítica – Menção Especial
Toronto International Film Festival – Selecção Oficial

FICHA TÉCNICA
Título Original: P'tit Quinquin
Realização e Argumento: Bruno Dumont
Fotografia - Guillaume Deffontaines
Interpretação: Alane Delhaye, Lucy Caron, Bernard Pruvost, Philippe Jore, Philippe Peuvion, Lisa Hartmann, Julien Bodard, Corentin Carpentier
Origem: França
Ano: 2014
Duração: 197’




CRÍTICAS
Se David Lynch tivesse situado o seu “Twin Peaks” na província francesa, o resultado teria sido, provavelmente, algo como “O Pequeno Quinquin”, de Bruno Dumont. Facto: à primeira vista, pouco religa entre si o surrealismo de Lynch e o naturalismo de Dumont (sempre preocupado com a relação entre a natureza e a violência, a loucura e a graça).
Porém, numa ótica temática, os dois cineastas partilham uma obsessão comum pela questão do mal, explorando (cada um a seu modo) o conjunto de forças subterrâneas que corrompem os espaços e os corpos. Pois bem: é justamente o desejo de auscultar o coração do mal que rege a ação de “O Pequeno Quinquin”. O que temos aqui? Uma minissérie de televisão em quatro episódios (cada um com cerca de 50 minutos), que se instala numa aldeia costeira do norte de França, para seguir os passos da personagem do título: uma criança na casa dos 12 que, nas férias de verão, passa os dias a brincar na rua com os amigos. É pelos seus olhos (incrustados num rosto bruto) que assistimos à descoberta do cadáver da primeira vítima de uma série de homicídios que, apesar do seu carácter macabro (corpos retalhados, devorados por animais...), parecem deixar indiferentes os habitantes da aldeia. Os crimes, esses, serão investigados por um duo de polícias ineptos (um velho capitão desgrenhado e um tenente com dentes podres) que, a julgar pela forma como repetem as verdades de La Palice ditas pelo outro, são uma espécie de versão extravagante do Dupond e Dupont de Hergé.
 O que se segue é um procedural que nunca sai do mesmo sítio, mas que possibilita a composição — em paralelo — do retrato de uma comunidade rural que se alheia do horror que a envolve. Ora, neste quadro, a primeira coisa notável é o modo como Dumont constrói um mundo às avessas, apoiando-se, para isso, numa galeria de figuras (interpretadas por um brilhante leque de não-atores) cujas palavras nada dizem e cujos gestos estão sempre fora de tom. Prova da natureza disfuncional deste mundo é a genial sequência do funeral, onde a gravitas da situação será dinamitada — a golpes de humor negro — por uma sucessão de episódios caricatos (o organista virtuoso que não para de tocar, a adolescente que canta em atrozes falsetes...). 
Mas, sobre esta tela burlesca, Dumont formulará uma questão da maior importância, a saber: quando nasce o mal? Ou melhor: a partir de que ponto a violência corriqueira das personagens (a perseguição aos rapazes forasteiros levada a cabo por Quinquin e os amigos) pode ser vista como o prelúdio do mal radical que vem contaminar a aldeia? De facto, o que — ontem como hoje — Dumont quer dar a pensar é a naturalidade de uma violência latente que ameaça explodir a todo o instante e que desfigura os corpos que ousam resistir-lhe (vejam-se os espasmos que atravessam o rosto do polícia). É por isso que a paisagem (os descampados que ladeiam a aldeia) está sempre presente em fundo, servindo como polo de um jogo de espelhos entre a brutalidade da natureza objetiva e a brutalidade da natureza subjetiva — dominada por pulsões que arriscam mergulhar as personagens na loucura, tornando-as apenas numa parte integrante do décor (como acontece com o tio demente do protagonista). Digamos pois que, de pequeno, este filme tem somente o adjetivo do seu título.

Vasco Baptista Marques, Expresso, 14/2/15



Do realismo ao delírio burlesco
Eis um belíssimo exemplo de colaboração cinema/televisão: concebido como mini-série televisiva, "O Pequeno Quinquin" é também uma longa-metragem de cinema — a tradição do realismo francês é retomada e reconvertida num delicioso registo de comédia.
A história de Quinquin (Alane Delhaye) e da sua namorada Ève (Lucy Caron) tem qualquer coisa de visceralmente romântico: ele está loucamente apaixonado por ela e, durante as férias, dão grandes passeios de bicicleta... Em todo o caso, o filme "O Pequeno Quinquin" é menos uma celebração romântica e mais um mergulho nas vidas esquecidas de uma pequena povoação da zona de Pas-de-Calais, no norte de França. Drama, então? Não, antes uma insólita e saborosa comédia!
É verdade: o realizador Bruno Dumont — que conhecemos através de títulos como "A Humanidade" (1999), "Hadewijch" (2009) ou "Camille Claudel 1915" (2013) — mantém-se fiel ao assombrado realismo do seu universo para construir uma narrativa que vai deslizando para uma ambiência de absurdo, pontuado por delirantes marcas burlescas.
À partida, existe um pretexto mais ou menos policial: a descoberta de um crime macabro nos campos em que Quinquin gosta de se refugiar. Em todo o caso, a investigação que se desenvolve, conduzida pela surreal personagem do comandante Van der Weyden (Bernard Pruvost), não vive tanto desse mistério, como dos enigmas ambulantes que são as personagens desta farsa afinal encenada à flor da pele — e os espantosos actores locais, completamente amadores, não serão alheios à singularidade dos resultados.
Produzido pelo canal franco-alemão Arte, "O Pequeno Quinquin" constitui um exemplo modelar de uma inventiva articulação cinema/televisão (que, neste caso, gerou um objecto que é, de uma só vez, uma mini-série e uma longa-metragem para as salas escuras). Acima de tudo, Dumont demonstra que é possível trabalhar através de convenções mais ou menos correntes, gerando uma obra que transcende lugares-comuns éticos e estéticos.
João Lopes, www.rtp.pt/cinemax

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