VISITA OU MEMÓRIAS E CONFISSÕES | 19 ABRIL | 21H30 | TMF





VISITA OU MEMÓRIAS E CONFISSÕES
Manoel de Oliveira
Portugal, 1982, 68’, M/12


FICHA TÉCNICA 

Realização: Manoel de Oliveira
Argumento: Manoel de Oliveira
Diálogos: Agustina Bessa-Luís
Fotografia: Elso Rique
Montagem: Manoel de Oliveira e Ana Luísa Guimarães
Som: Joaquim Pinto
Com: Manoel de Oliveira, Maria Isabel Oliveira, Urbano Tavares Rodrigues, Teresa Madruga, Diogo Dória
Origem: Portugal
Ano: 1982
Duração: 68’







Ao longo do seu trabalho, muitas vezes nos falou Manoel de Oliveira dos fantasmas que a “máquina” do cinema (assim chamava ele, com uma graça particular, à câmara) tinha a capacidade de fixar. Não creio que esta questão dos fantasmas, certamente ampliada agora pelo desaparecimento do cineasta e pela maravilhosa descoberta do seu filme póstumo, tenha sido tão densa e tão complexa na obra de Oliveira como é em “Visita ou Memórias e Confissões”. Idealizado e rodado para ser mostrado só após a morte do seu autor, “Visita...” não deixa por isso, para todos nós, de ser o último filme de Oliveira (um último presente, já lhe chamei), quis o destino que fosse de 2015 — embora tenha sido rodado entre o final de 1981 e parte de 1982, a seguir a “Francisca”. É bem verdade, e por falar de fantasmas, que os filmes renascem cada vez que são vistos. E que a perenidade dos mesmos não depende de calendários. Se prova fosse necessária, aqui está ela.
As primeiras perguntas das tantas que me colocou “Visita ou Memórias e Confissões” (e haverá no filme tempo e espaço para que os três elementos do título se apresentem e se entrelacem, ao ponto de já não os conseguiremos isolar) foram estas: como é que se consegue fazer um filme, chamemos-lhe assim. (embora “Visita...” não o seja), ‘autobiográfico’, ou melhor, de ‘natureza autobiográfica’, mas em simultâneo tão afastado, pela sua estrutura e pelos seus efeitos, de qualquer egocentrismo? Como é que “um filme de Manoel de Oliveira sobre Manoel de Oliveira a propósito de uma casa (...), um filme meu sobre mim próprio”, assim o apresenta o cineasta naquele genérico falado, é afinal capaz de meditar tanto sobre o fingimento do cinema e do ato de filmar em si, numa reflexão teórica que atravessa toda esta obra? Se tal género de filme, agora tão em voga, sobretudo desde o advento do digital, se tornou prática comum dos dias que correm, era-o muito menos ou quase não o era em 1981. Como em “Visita ou Memórias e Confissões”, decerto nunca o foi. 
Aqui não há surpresas, que Oliveira sempre esteve à frente do seu tempo. Até no filme que ao tempo deu e que só este determinou poder ser mostrado. A origem de “Visita ou Memórias e Confissões”, contada melhor do que ninguém pelo próprio Oliveira no filme, já foi revelada e está associada à perda da frondosa casa da Rua da Vilarinha, no Porto (que o cineasta se viu forçado a vender para saldar dívidas), de onde só saímos ou através de filmes dentro do filme (aos quais não podemos chamar de home movies), ou de um momento em que Oliveira encena a sua própria detenção pela PIDE, no início dos anos 60, por ter dito algo, numa apresentação de “Acto da Primavera”, que não agradou aos ouvidos do regime. Trazido para os calabouços de Lisboa para interrogatório, ali conheceu Urbano Tavares Rodrigues, companheiro do mesmo pesadelo e que, tal como Oliveira, aceitou o pacto da encenação. “A minha mulher e eu vivemos quarenta anos naquela casa”, disse o cineasta no livro de entrevistas a Jacques Parsi e Antoine de Baecque. “É toda uma vida. Com os meus filhos, com os meus netos: tudo isto constitui uma história.” Mas é esta a história de “Visita ou Memórias e Confissões”? Não só — e é isto que o torna apaixonante. Há, é verdade momentos em que sentimos que a câmara parece filmar cada parede, cada objeto, cada fotografia, quase como se Oliveira os quisesse fixar uma última vez e para sempre. Mas a tradução dos sentimentos e das ideias, a transmissão das emoções, não são nunca as do registo saudosista. São antes ideias e problemas de cinema materializados que vão ganhando consistência à medida que os episódios se desvelam, desde aquele magnífico primeiro plano em que uma cancela se abre misteriosamente à nossa frente, num plano acompanhado a Beethoven, conduzindo-nos a uma magnólia e sua única flor, antes de chegarmos à porta da casa. 
De seguida, virão mais portas sobre portas, reais e imaginárias, de uma vida, da vida de uma família e da presença desta no cinema, trompe l‘oeil sobre trompe l'‘oeil, sem que todos estes compartimentos que nunca separam o cinema da vida fiquem alguma vez estanques. As vozes de um casal (ditas por Teresa Madruga e Diogo Dória), sempre em fora de campo, e cuja origem nunca saberemos, tão pouco o que os traz ali. São um par furtivo, anjos ou almas penadas, que sentimos terem vindo por bem, e que nos deixarão no fim, quando finalmente os vemos, envoltos na penumbra. “Tens a certeza de que é esta casa?”, pergunta-lhe ele antes de ela, com receio, se aventurar a entrar. A origem dessas personagens, geradas num texto magnífico de Agustina, não é menos misteriosa nem menos ficcional. Se o texto foi escrito, não sabemos, antes, durante ou depois da rodagem, pouco importa. “Subiu alto o nosso porteiro”, diz uma das vozes referindo-se à palmeira do jardim, num momento em que a câmara foca os ramos da palmeira que já tocam numa janela do primeiro andar. Isso é: foi o texto que encontrou a mise en scène, ou o contrário? Tanto melhor se nunca o soubemos. Sabemos sim que é um texto escrito com total conhecimento do que ali está em causa e da arquitetura daquela casa, que já se tornou assombrada. 
Outros mistérios surgem quando aquele casal de vozes, que imaginamos atrás da câmara subjetiva, e que entretanto percorrem todas as divisões da casa, do quarto de casal à copa, é interrompido por outro fantasma que o casal não identifica, e que tem corpo presente: o do próprio Oliveira. Que sem deixar de falar de si e dos seus nos dirá que a realidade do cinema é a ficção e ‘que só através dela lhe poderemos aceder. Que sem deixar de falar de si e dos seus, ora se interpreta a si próprio, narrando na primeira pessoa um texto sem fingir que o está a ler algures, fora de campo, ora denuncia os dispositivos da sua própria encenação, na secretária, ou enquanto nos fala do álbum de família, frequentemente acompanhado de diferentes imagens de Mona Lisa. Dos “fantasmas da realidade”, falou Oliveira mais do que uma vez: por exemplo, quando se dirigiu àquilo que comummente nos habituámos a chamar documentário. Coisa que “Visita ou Memórias e Confissões”, de resto, não é. Lá mais para a frente, e sem sair do cinema, também chegará o momento em que Oliveira vai destrinçar estas coisas, quando nos fala da atração pelas suas personagens femininas, ou seja, pela ficção, em contraponto (ou em complemento) à existência da sua mulher e companheira de sempre, Maria Isabel, que é “a realidade, sem subterfúgios”.
Cannes programou, suponho que sequer antes de ver, “Visita ou Memórias e Confissões” na secção Classiques [...] Contudo, talvez o festival se tenha apressado de ‘categoria’. É que, de classique, esta “Visita...” nada tem. Aliás, o filme de Manoel de Oliveira ‘deste ano de 2015’ corre até o sério risco de ser o mais ousado, o mais criativo, o mais moderno dos que o festival exibirá este ano. O mais comovente, também, pois é prova de fé no absoluto e na essência dos seres e das coisas. Estava à espera do seu tempo. E o seu tempo é o de hoje.
Francisco Ferreira, Expresso, 16/05/2015


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