AMA-SAN | 11 ABRIL | IPDJ | 21H30


AMA-SAN
Cláudia Varejão
Portugal, 2016, 112’, M/12


FICHA TÉCNICA
Realização e Fotografia: Cláudia Varejão
Montagem: João Braz, Cláudia Varejão
Som: Takashi Sugimoto
Com Mayumi Mitsuhashi, Masumi Shibahara, Matsumi Koiso
Origem: Portugal
Ano: 2016
Duração: 112’

 FESTIVAIS E PRÉMIOS
Melhor filme da competição portuguesa  - Prémio Ingreme -  Doclisboa  2016
Melhor filme da competição internacional – Extra Muros Competition - 11th Pravo Ljudski Film Festival, Sarajevo 2016
Menção especial do júri - International Film Festival Karlovy Vary 2016
Special prize of the bellona foundation - IFF Message to Man, S.Petersburgo, 2016

TRAILER



SOBRE O FILME
A história das Ama teve início há cerca de um milénio e distingue-as como peregrinas da condição feminina. Enquanto os homens se dedicavam à caça ou à pesca em alto mar, geralmente por longos períodos de tempo, as mulheres para sustentar a família tiveram de encontrar um modo de subsistir. Durante o inverno dedicavam-se ao trabalho no campo e com a chegada do bom tempo e graças  à proximidade da costa, reuníam-se  em  grupo,  na  praia,  para  apanhar  marisco. O que colectavam no mar traduzia-se em negócio em terra. E sobretudo as pérolas das ostras que vendiam, associou-as a um símbolo de poder, beleza e espiritualidade. O mergulho das Ama tornou-as independentes e em muitas famílias, a mulher chegou a tornar-se no único elemento trabalhador. Este fenómeno, num país patriarcal e conservador como o Japão, jamais se voltou a repetir.
As Ama, inexplicavelmente e sem conflitos ou feridas expostas, trilharam um percurso único e libertador em toda a história das mulheres no mundo. As Ama vivem desde então uma vida independente dentro da sua comunidade e tecem entre si laços de irmandade. Principal fonte de rendimento da família e por isso decisivas, estas mulheres têm um lugar destacado e respeitado. Uma grande percentagem das mulheres das zonas tradicionais das Ama mergulhou em algum momento das suas vidas, como meio de conseguir comida e dinheiro para a família. Mas só algumas persistiram, tornando o mergulho a sua profissão, mergulhando todos os anos durante a temporada de pesca no Japão, de Março a Setembro.
Em Wagu, uma pequena vila costeira da Península de Ise, a vida marítima das mulheres começa quando as cerejeiras dão flor. As Sakuras chegam com a Primavera e enchem as ruas de luz e cor. Na doca de pesca aumenta o movimento dos barcos e nos templos dão início às cerimónias que marcam o início da estação. Estima-se que na vila de Wagu mergulhem quotidianamente aproximadamente 50 mulheres.
Nesse número insere-se a embarcação Minemaru, um pequeno barco azul que parte todas as manhãs com 7 Amas. Este grupo de mulheres juntou-se há cerca de 30 anos e nunca mais parou de mergulhar. O filme acompanha a vida quotidiana de 3 dessas mulheres: Mayumi, Masumi e Matsumi.
A acção constrõe-se em torno do quotidiano de três Amas e é através dos seus gestos diários que temos acesso não só a uma profissão que corre agora o risco de desaparecer, como à intimidade de cada Ama. Cada uma delas representa uma geração distinta - mais de quatro décadas separam a mais nova da mais velha - e as suas performances no trabalho revelam as diferenças no seus mergulhos.
Se por um lado é a especificidade da profissão que justifica a existência deste filme, é igualmente fascinante conhecer as personagens no seu dia-a-dia. A câmara faz parte do quotidiano destas três mulheres como se fosse um elemento das suas famílias. É um olhar que, não sendo introsivo, assiste aos momentos mais privados de cada uma delas. Essa proximidade, de alguém que permanece silenciosa mas atenta, permite mapear as motivações e emoções de cada personagem e, por vezes, geram-se momentos que transcendem a barreira da língua. Esta é a porta aberta do filme, a identificação do espectador com qualquer uma destas mulheres: o medo de não ser capaz, a responsabilidade no trabalho, o amor à família, os sonhos, o futuro, a angústia de morte.
Apesar do interesse etnográfico, há uma acuidade plástica e uma construção narrativa que situa este filme mais perto da ficção do que do documentário. À la limite, poderá falar-se do género, Etnoficção. As Amas desempenham naturalmente o papel real das suas vidas, seja enquanto membros da comunidade piscatória ou enquanto mulheres, mães e avós de uma família. A ideia de narrativa acenta no drama do quotidiano, seja ele intrínseco à dureza do trabalho ou às vidas
familiares que ancoram estas mulheres à terra. E é aqui que o cinema nos permite entender para além do género de filme.
Este filme é sobre a resolução, ou a recusa, de uma pretensa contradição entre a mulher japonesa e as Ama-San. Sendo aqui o Japão utilizado como metáfora para um cenário universal, que tende a resolver o lugar de todos e de cada um na sociedade. E se num primeiro gesto este filme partiu para o conhecimento dos modos e meios desta tradição, depois de conhecer as Ama-San, o meu olhar mergulhou no mar secreto que as habita – porque ninguém sabe o que se passa no mar – sem nunca as sacralizar.
Este é um filme que se desenvolve em torno de mulheres cujo antagonista não é mais do que a própria vida, com nada (e tudo) de heróico. É um filme sobre a doçura a que se permite uma mulher que é capaz de tudo. É sobre o poder feminino e a forma como ele é canalizado, seja na vida do mar ou em terra. É um filme sobre a força - não sobre os outros – mas sobre o nosso corpo face à vida.
 
CRÍTICA

Ama-San, de Cláudia Varejão, entra na intimidade de mulheres japonesas que se dedicam a uma tradição ancestral: o mergulho, à cata de preciosidades no fundo do mar.
Vencedor da competição portuguesa na última edição do DocLisboa, Ama-San vem, no entanto, do outro lado do mundo. É um filme sobre mulheres japonesas - as “ama” - que se dedicam a uma tradição ancestral ainda presente em algumas povoações costeiras do Japão: o mergulho, à cata de preciosidades depositadas no fundo do mar, em especial as pérolas. Cláudia Varejão segue três dessas mulheres (a tradição implica que esta seja uma actividade feminina), de segmentos etários diferentes, entre a actividade profissional e os momentos corriqueiros do dia a dia, passados com a família ou dedicados ao lazer (por exemplo em sessões de karaoke, para citar outra “instituição” japonesa). O karaoke serve de exemplo de uma das coisas que Ama-San consegue muito bem: evitar filmar estas mulheres como vivendo numa espécie de “reserva” desligada do mundo e voltada para o atavismo da sua tradição profissional. Ao integrá-las na vida corrente, pelo que mostra ou pelo que escuta (sobretudo da mais nova das mulheres, aquela que ainda está menos compenetrada da carga simbólica da sua profissão), Ama-san abre uma janela para uma vista mais vasta, contendo uma hipótese de reflexão sobre a coexistência de tradições culturais ancestrais e modernidade, social e tecnológica (algo em que o Japão, tudo o indica, será um país pródigo).
Não deixa por isso de ser um filme atento aos rituais. Pensamos a dada altura naquela frase do protagonista do último Carax (Holy Motors), quando falava da “beleza do gesto”. Aqui, o “gesto”, e a perservação da sua “beleza”, são quase tudo, como se fosse essa auto-consciência a justificar que esta actividade continue a ser praticada assim, em moldes e métodos quase artesanais, em vez de se abrir para suportes tecnológicos que por certo tornariam tudo mais seguro, mais eficaz e mais simples. Mas, como em tantos outros elementos das tradições japonesas, a “forma” impera - Cláudia Varejão segue isso muito bem, filmando longamente os preparativos (que implicam a indumentária, o arranjo dos cabelos, o planeamento do mergulho propriamente dito), e de vez em quando oferecendo esse “presente” que são as muito belas imagens submarinas. Dar essa beleza é importante, porque ela não apenas complementa a do “gesto”, preenche-lhe o sentido.
Ao mesmo tempo, não reduz as suas personagens a “tipos” nem se esconde atrás de uma distância de documentário antropológico. O filme é também um processo de familiarização com aquelas pessoas específicas, uma entrada na sua intimidade e nos seus redutos domésticos. Discretamente, sem o transformar em piada ou em citação cinéfila, Cláudia Varejão encontra soluções semelhantes às de alguns célebres realizadores japoneses (como por exemplo Ozu) para filmar a peculiar organização do espaço das casas japonesas - a câmara numa posição que tem tanto de recolhimento não invasivo como de perspectiva idealmente reveladora, como se procurasse ver o mais possível mostrando-se (a ela própria) o menos possível. O que, finalmente, enxota qualquer hipótese de “exotismo” - a pouco e pouco, o mergulho, mais do que no fundo do mar, é naquela vila japonesa, cujo ar acabamos a respirar com toda a normalidade.
Luís Miguel Oliveira, Público
 



ENTREVISTA À REALIZADORA
A cineasta Cláudia Varejão mergulha na intimidade e no território de um grupo de pescadoras de pérolas japonesas: Ama-San.
Ama-san, vencedor da competição nacional no último DocLisboa, mergulha com as pescadoras de pérolas japonesas, e depois continua a “mergulhar” na intimidade delas, seguindo-as em casa e na vida de família. As “ama-san” – expressão que quer dizer “mulheres do mar” – são uma tradição antiga no Japão, ainda viva nalgumas aldeias costeiras do Japão, e nem é preciso ir muito longe de Tóquio. Cláudia Varejão acompanha-as e tenta percebê-las, arriscando também ela a “imersão” num contexto cultural e linguístico que lhe são estranhos.
Em conversa com o Ipsilon, conta como também tentou fazer esse factor funcionar a favor do filme, e ajuda-nos a compreender melhor quem são estas “mulheres do mar” e qual o seu estatuto na sociedade japonesa: têm um espaço só delas, sim, mas terão um real poder ou não passa de uma ilusão?
Como é que encontrou estas mulheres mergulhadoras?
De uma maneira muito simples. Em 2012 li um livro da Sónia Baptista [performer e bailarina] que a dada altura fazia referência a umas mulheres pescadoras de pérolas. Fiquei curiosa e fui pesquisar. Dei logo de caras com umas fotografias dos anos 50, feitas por um antropólogo italiano, Fosco Maraini, umas imagens incríveis. E depois encontrei mais algumas, numa série da BBC entre outras coisas. Imagens delas, velhas, com fatos de borracha e uns panos na cabeça… Mas não havia de fundo sobre estas mulheres, não havia filme nenhum. E o meu instinto disse-me “embora, vamos a isto”. Concorri a umas bolsas da Fundação Oriente para estadias de curta duração em países asiáticos, e ainda me disseram “mas olhe que isto já não existe”. Mas eu sabia que ainda existiam. E em 2013 fui um mês para o Japão, fazer uma espécie de mapa das aldeias costeiras, mas era muito difícil, eram comunidades muito fechadas. Já estava a ficar frustrada quando perguntei a um pescador numa aldeia se ali havia “amas”, e ele respondeu que sim. Foi telefonar à presidente da associação das “amas” e combinou-se um encontro.
Essa era a aldeia onde acabou por filmar?
Sim, na maior parte. Mas então, apareceu-me uma mulher toda colorida, muito arranjada, muito gentil. Veio a ser a mulher do meio no filme, entre a mais velha e a mais nova. Convidou-me a ir com elas no barco no dia a seguir. Eram mulheres de gerações muito distintas, e muito receptivas à minha presença. E era impressionante, ficavam quatro horas no mar… Era muito forte visual e fisicamente. Fiquei convencida, voltei para Portugal, escrevi o projecto e propu-lo à [produtora] Terratreme. Em 2014 voltei ao Japão para filmar.
E quanto tempo esteve lá para a filmagem?
Um mês. Escolhi logo as que queria acompanhar, já as tinha observado.
A proximidade com elas, enquanto pessoas, parece fundamental, mais do que a tentação de um registo de tipo etnográfico…
Pois, venho da ficção, ficar só com a etnografia não me interessava muito. Não queria só a vida no mar, queria vê-las em casa, em família. Era importante conquistar alguma intimidade.
Isso é uma das coisas fortes no filme. É fácil de adivinhar que elas vivem de forma fechada, mas o filme quebra essa barreira. Como conseguiu isso?
Fui estabelecendo uma relação, naturalmente. As idas ao mar foram filmadas primeiro, depois os jantares e outras ocasiões mais públicas. Todas as cenas mais íntimas foram filmadas na última semana. Também houve sorte porque se gerou uma certa empatia. Eu estava curiosa por elas mas elas também ficaram curiosas por mim, portanto houve aqui um encontro, e o filme é o retrato dele.
Elas aceitam tão bem a presença da câmara que em alguns momentos se pensa que podem estar a “representar”, a comportar-se para a câmara. Teve essa sensação?
Tive. Senti que elas tinham vontade de contribuir. Para elas também foi uma experiência. A vida delas fora da época do mergulho, que vai de Março a Setembro, também não é muito agitada. Senti vontade delas de viverem aquela experiência de fazer um filme, que claro que era uma coisa nova.
Como fez para se entender com elas, e para perceber o que diziam frente à câmara? Fala japonês?
Não, não falo. Mas na minha equipa levava Takeshi Sugimoto, que vive em Portugal e é director de fotografia mas foi fazer o som, e também Aya Koretzky, que é realizadora mas que foi como tradutora. As “amas” falavam sempre através deles, e foi com eles que estabeleceram a principal relação. Naqueles planos em que elas falam para fora de campo, muitas vezes é a eles que se dirigem. Mas o facto de elas se esquecerem que eu estava ali com a câmara, porque fui eu que fiz a imagem, julgo que acabou por funcionar a favor do filme. Eu estava sempre num canto da sala, e muito baixinha…
… à Ozu…
…um bocadinho à Ozu, sim.
Mas como é que percebia o que estavam a dizer? Há cenas de diálogo bastante longas…
Ah, isso é giro. É claro que não percebia o que estavam a dizer textualmente, mas qualquer coisa na expressividade delas, oral e física, me fazia entender tudo, de quem ou do que estavam a falar. E foi extraordinário quando cheguei à montagem e me traduziram o material todo: não tive surpresa nenhuma. Tinha percebido tudo. Mas é claro que filmei intuitivamente, a mexer a câmara seguindo a melodia da língua. Foi muito interessante trabalhar assim.
E houve momentos em que tenha preparado situações de maneira a fazer acontecer alguma coisa?
Por exemplo, a cena do fogo de artifício, quando estão todos a assistir. Fui quem comprou o fogo de artifício para fazer a cena. Tinha pouco tempo para filmar, portanto era inevitável promover algumas situações. Depois deixava que acontecesse. Mas não fiquei sentada à espera que o filme viesse ter comigo. E houve algumas coisas que gostaria de ter filmado, como situações de conflito, ou acidentes. Mas não havia tempo para esperar por isso.
E mergulhou?

Pensei nisso, mas abandonei a ideia, e ainda bem porque seria um acto falhado da minha parte. Nunca conseguiria acompanhá-las. Contratei lá um operador para filmar as sequências submarinas. E também não se aguentou: quis mergulhar em apneia como elas, para ser mais autêntico, e passado dois mergulhos voltou ao barco a dizer “eh pá, dá aí a garrafa”…
Mas ficaram muito bonitas, essas cenas…
Eu estava com algum receio, até pelas dificuldades de comunicação. Mostrei-lhe o que já tinha filmado, para ele entender o tom e procurar uma identidade visual semelhante. E funcionou, foi uma coisa que casou bem.
A beleza dessas imagens rima o lado ritualístico da actividade das mulheres, destaca a “beleza do gesto”…
O ritual é transversal à vida delas… É o ritual do banho, o ritual da preparação das refeições. Presumo que seja uma coisa muito japonesa, e não uma característica específica delas. O filme até se repete um bocado nas cenas do barco, com o ritual da colocação do lenço, e depois tirar o lenço. Eu acho que o filme é sobre isso, sobre a repetição, sobre o ritual. E sobre o tempo, sobre a sabedoria que se atinge com o tempo.
Há uma ambiguidade no filme: sendo esta actividade um exclusivo das mulheres, tanto se pode vê-la como um território onde o poder é delas como apenas o território para onde são empurradas. Elas são muito fortes, mas essa dúvida de leitura está no filme.
Eu tive exactamente essa dúvida, e pensei muito nela. Achei que estas mulheres representavam uma figura poderosa, ao contrário da gueixa, da mulher submissa. Elas de facto conquistaram um lugar de respeito, e algumas fizeram tanto dinheiro com as pérolas que os maridos até deixaram de trabalhar. Mas na verdade, é ou não é? Quem as leva para o mar? São os homens. Quando chegam a terra dão 50% dos ganhos ao marido. Conquistaram ali um território, mas no fundo esse território é uma ilusão, uma ilusão de poder.
Luís Miguel Oliveira, Público  

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