O ORNITÓLOGO
João
Pedro Rodrigues
Portugal/França/Brasil, 2016, 117’, M/16
FICHA TÉCNICA
Realização: João Pedro Rodrigues
Argumento e Diálogos: João
Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata
Montagem: Raphaël
Lefèvre
Fotografia: Rui
Poças
Vozes: João
Pedro Rodrigues
Interpretação: Paul
Hamy, Xelo Cagiao Teijo, João Pedro Rodrigues, Han Wen e Chan Suan
Origem: Portugal/França/Brasil
Ano: 2016
Duração: 117’
FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Locarno – Melhor realização
CRÍTICA
Dois
meses após o prémio em Locarno, voltamos aos abismos de “O Ornitólogo”, às suas
metamorfoses incontroláveis, à fusão do sagrado e do profano, do platónico e do
carnal – com a morte a rondar por perto.
Não é nada fácil entrar num filme denso e
secreto como 'O Ornitólogo". Talvez seja melhor ir com cautela. Ou com uma
"Allegoria della Prudenza", título de um quadro de Ticiano sobre
todas as idades do Homem e que também é título de uma curta-metragem de João
Pedro Rodrigues (J.P.R.), na qual unia umbilicalmente, e em gesto solene, o
túmulo de Mizoguchi e a urna de Paulo Rocha. Deixemo-nos levar por aqui, pelos
túmulos, pelas urnas. Ou melhor, por uma presença da morte que, embora esteja
pacificada naquela curta, paira há
muito — e ameaçadoramente — sobre esta obra, e em especial sobre "O
Ornitólogo". Que não será — digamos isto em jeito de convite — uma
celebração da morte mas sim da vida.
Sabemos,
de facto, muito pouco sobre o ornitólogo do título, que se chama Fernando e é
interpretado pelo ator francês Paul Hamy. Desconfiamos, ainda com os pés presos
à Terra, que uma expedição científica daquelas exigiria mais do que uma só
pessoa — talvez Fernando esteja mesmo a precisar de estar sozinho. Personagem
de ficção, ele não deixa de ser o ornitólogo que J.P.R. sonhou ser um dia (e à
hipótese do autorretrato chegaremos). Como é hábito no trabalho do cineasta,
Fernando também não é homem que fale muito, e naquele Douro transmontano e
mítico, naquela fronteira luso-espanhola que é área protegida e deserta,
palavras são tudo o que ele não precisa: não só lhe falta um interlocutor como
corre o risco de 'espantar' as aves que são o seu objeto de estudo. Ora,
acontece que Fernando troca umas mensagens de telemóvel com um tal Sérgio (que
se supõe ser seu namorado e tem o nome da personagem central de "O
Fantasma" , primeira longa-metragem, de 2000) e chega até a atender uma
chamada deste, que logo cai por falta de cobertura de rede. Descobrimos aí
várias coisas: que o filme tem necessidade de marcar uma data e uma hora, de
sublinhar que se passa num 'aqui e agora' , quando, na verdade, se
prepara para se lançar (e para nos levar) para um 'não tempo' – em tudo
dominado pelo desejo.
Descobrimos
também que o nosso herói tem de tomar uns comprimidos, que depois perde quando
o rio lhe prega uma partida e os rápidos o arrastam de caiaque (o primeiro dos
elementos fálicos do filme). Não sabemos para que servem os comprimidos, se a
vida de Fernando deles depende, se o protegem de alguma doença. Ou protegem-no
antes de uma alucinação?
Começa
Fernando a alucinar quando aquelas peregrinas chinesas a caminho de Santiago de
Compostela o salvam da morte no primeiro dos seus renascimentos? E quando estas
o amarram a uma árvore [...] segundo as técnicas do shibari, variação nipónica
do bondage e das práticas BDSM? São as chinesas umas perversas? É Fernando quem
alucina? Ou é ele antes o objeto de desejo de quem o olha (o espectador, pelo
ponto de vista do cineasta)? E se Fernando alucina, porque é que tem o sexo ereto
no momento em que está preso? Isto é: aquele é um corpo de dor, um corpo de
prazer, ou ambos, dor e prazer, em simultâneo num só corpo, até chegarmos a uma
certa noite de eclipse, algures num centenário souto transmontano? Por esta
altura (a amarração de Fernando à árvore) leva "O Ornitólogo"
pouco mais de meia hora; a procissão,
convenhamos, ainda vai no adro. Não diremos muito mais para não estragar o que
nos espera. Pouco mais de meia hora de filme, e já J.P.R. começou a sublimar o
desejo, procurando no corpo, e no sexo, uma forma de elevação (que o filme,
citando uma homilia de Santo António, já nos apresentara
em epígrafe). Ou seja: entregamo-nos a um filme em que os corpos são uma
entidade plural, em que as personagens sofrem metamorfoses incontroláveis, ao
mesmo tempo que se fundem o sagrado e o profano, o platónico e o carnal — até
chegarmos a esse estado de "alegre blasfémia" que o cineasta, ele que
só crê no cinema, sublinhou querer atingir na estreia do filme em Locarno.
Mas sejamos, de novo, prudentes: não temos respostas claras
para as perguntas que o filme nos lança.
Tanto melhor. Preferimos aceitar esta ideia do que
dizermos, a priori, que não queremos
compreender nem a religião, nem a sensualidade, nem o misticismo que aqui se
entrelaçam. Também é curioso notar que as opiniões menos favoráveis ao filme
quedaram-se num 'nim' embaraçoso - facto estranho, porque J.P.R. nunca arriscou
tanto, nunca ficou tão próximo da inverosimilhança, do grotesco, até do gore,
numa cena de sangria a céu aberto que faria as delícias de um Dario Argento ou
de um Mario Bava. É que "O Ornitólogo" — por muito prosaica que esta
ideia pareça — não nos dá os seus segredos de barato nem é, no limite, um filme
'que se explique'.
Uma das coisas que mais apreciamos nesta obra de J .P .R. é
precisamente como o filme defende ao máximo as suas personagens, sempre muito
cinzeladas, definidas por detalhes que nos vão exigindo a máxima atenção
(olhares, frases, objetos...), de um visionamento a outro.
Porque é inexplicável o seu espaço, aquele Douro que Rui
Poças fotografou em cinemascope no
primeiro filme de J.P.R. a céu aberto e em que não há portas nem janelas. Tal
como é inexplicável o seu tempo, que, à
medida que o filme avança, mais curto para Fernando parece tornar-se — e que é
um tempo místico, figurado no momento em que a personagem entra às tantas num
túnel escuro que não tem regresso. Pelo caminho, Fernando encontra um homem
puro, um pastor de cabras que é surdo-mudo, Jesus (papel do ator galego Xelo
Cagiao). Os corpos rolam naquela praia fluvial, noutra fusão que é de amor e de
morte, sem que a cena perca a graça natural do seu movimento. Em quem pensa o
espectador? Qual é o limite do seu olhar? São problemas concretos e
apaixonantes. Pensamos nós no pastor de cabras que Fernando, na ficção, engata?
No Menino Jesus que Santo António (e Fernando está em vias de se converter
neste) levava ao colo na iconografia católica? Ou na fusão de ambos?
AUTORRETRATO CAMUFLADO
Na
edição em DVD de "Morrer como Um Homem" (2008), J.P.R. incluiu um
extra, uma curta-metragem, em que, filmado por ele próprio em close-up, se camufla como os soldados do
exército na preparação para os treinos de combate. Recorde-se que uma das cenas
de "Morrer como Um Homem" decorre nesse ambiente. É importante notar
que, desde então, quer em "O que Arde Cura" (2012), curta-metragem
(que J.P.R. protagoniza) do seu companheiro de trabalho e de vida João Rui
Guerra da Mata, quer nos filmes que ambos coassinaram, "A Última Vez que
Vi Macau" ou "Mahjong", a presença física do cineasta no ecrã
tem vindo a acentuar-se e a ganhar cada vez mais preponderância (como ganhou,
por exemplo, na obra de César Monteiro). Também disso fala o cineasta num livro
de entrevistas que acaba de ser lançado em França, "Le Jardin des
Fauves" , fruto de várias sessões de conversa" com o cineasta e
produtor Antoine Barraud (coisa rara: um cineasta a entrevistar outro). Em 'O
Ornitólogo" , o realizador vai mais longe. A voz de Fernando é a do
realizador, e esta transferência para um autorretrato que se insinua não ficará
pela banda sonora.
"Acho
que esta passagem para o ecrã" , contou-nos J.P.R. há dias, ao regressar
de um festival em França [La Roche-Sur-Yon], "tem a ver com a fase atual
da minha vida, com o facto de eu ter dobrado os 50 anos. Não sei se não ando à
procura de um outro grau de exposição ou de representação da minha própria
pessoa. É curioso, porque o Centro Georges Pompidou [que vai apresentar em
Paris uma retrospetiva integral do cineasta a partir de 25 de novembro]
encomendou-me uma curta objetivamente autobiográfica, que já está pronta e se
enquadra numa série de filmes com o título 'Oü en êtes-vous?' O filme chama-se
'Oü en êtes-vous, João Pedro Rodrigues?' Eu já sabia desde o primeiro dia de
rodagem que a voz de Fernando iria ser a minha. Porque a minha voz habita
aquele corpo, há uma osmose desde o início. A dobragem, de resto, foi uma etapa
complicadíssima do filme, fizemos para cima de vinte versões, testes sobre
testes. Se o corpo de Fernando é duplo, esta é uma ideia que, mesmo a nível
teórico, faz todo o sentido. "
E
no entanto, ressalva J .P.R. , este flirt com a autobiografia, esta vontade de
se querer filmar o que se quer ter, de só poder filmar-se o que se deseja, não
anula as personagens. "Eu sou todas elas, sou o Fantasma, sou a Odete, sou
o Fernando. É como se me tentasse pôr no corpo das outras pessoas. Quero que
elas vivam por mim, mas que sejam livres no seu próprio devir — e se tornem
gloriosas. Mas tenho de as desejar, senão elas não existem. Talvez tudo isto
não passe de um jogo que deve ser encarado como tal. De uma aventura."
Da
nossa parte, seguimo-la como ela nos exigiu: com um amor incondicional. Até
àquele desfecho que é um testemunho de felicidade e em que pensámos em
'Passarinhos e Passarões" (o filme de Pasolini), já que estamos a falar de
ornitologia...
Francisco Ferreira,
Expresso
ENTREVISTA AO REALIZADOR
Como
cruzar a história de um ornitólogo comum, de binóculos em riste pelo Douro
transmontano, com a de Santo António, frade franciscano sobre quem rezam mais
mitos que verdades? Aventura hagiográfica a partir das beatitudes da ilusão
cinematográfica, sob feitos e feitiços assinaláveis do director de fotografia
Rui Poças, assim é a proposta de «O Ornitólogo», quarta longa-metragem de João
Pedro Rodrigues, com a qual o cineasta devolveu a território luso, no passado
dia 13, o prémio que Pedro Costa (por «Cavalo Dinheiro») vencera há dois anos:
o Leopardo de Prata de Melhor Realizador do Festival de Locarno. Envolta numa
polémica de salários em atraso a que não escapam nem os do realizador (ladaínha
digna de um outro filme cá do burgo, o segundo tomo de As Mil e Uma Noites, de
Miguel Gomes), a quarta longa-metragem de Rodrigues parte do certame suíço para
a inauguração, a 25 de Novembro, da retrospectiva integral que lhe é dedicada
no Centre Georges Pompidou, em Paris, onde a sua exibição será acompanhada da
fita “Où en êtes-vous?”, encomenda daquela instituição. Onde está, onde esteve
e para onde vai afinal o “miúdo solitário ainda hoje não muito sociável”, nas
palavras do próprio, cinquenta anos de idade, uma dezena de curtas-metragens e
quatro longas no bolso? Como o seu cinema, a resposta não é clara, mas ronda a
biologia, a escola de António Reis, o western
americano e o desafio absoluto de permanecer desconfortável.
É
verdade que queria ser ornitólogo quando era miúdo?
Em casa
a visão do mundo era uma visão científica e racional. Os meus pais são ambos da
Físico-química. Passávamos muitos fins-de-semana em Tomar, de onde o meu pai
era, e era lá que praticava a observação de aves. Desde os meus dez anos que as
queria estudar. Queria fazer uma catalogação completa das aves que ali passavam
e nidificavam ao longo do ano. Tenho um temperamento obsessivo por natureza.
Com quinze comecei a ir ao cinema, mas apesar disso continuei a estudar
Biologia. Não acabei esse curso e aí sim fui para o Conservatório, a actual
Escola Superior de Teatro e Cinema [em Lisboa]. Apesar de não ser
autobiográfico, este filme é um regresso a um caminho que eu podia ter
percorrido.
Como
migrou para o cinema e com quem ia vê-lo?
Não sei
porquê comecei a ir sozinho aos ciclos da Gulbenkian que eram organizados pelo
João Bénard da Costa. Ciclo de cinema americano dos anos 40, 50, ciclo de
cinema alemão... A ornitologia e o cinema são ambas actividades que se fazem
sozinho. Cada um vê o filme por si, da sua maneira, embora esteja acompanhado
por outras pessoas na sala. As aves, por sua vez, devem ser vistas pelo menor
número de pessoas, pois são tímidas e fogem. Quando se consegue avistar uma
mais difícil, há uma espécie de momento íntimo com ela. O mesmo acontecia
quando antigamente havia filmes que eu desejava ver e não podia porque ainda
não se descarregavam da internet – quando finalmente chegava o dia, era um
momento único, raro, quase sagrado.
João
Bénard da Costa participou, então, da sua cinefilia.
Na
Cinemateca Portuguesa, naquela altura, Luís de Pina ainda era vivo [e director
da instituição], as folhas de sala eram quase todas escritas pelo Bénard da
Costa. Ele ensinou-me muito a olhar para os filmes como imagens, sons,
enquadramentos. O que é um plano, quando acaba, qual é a sua duração, a sua
intenção? Eu era muito naïf
quando comecei a ver filmes e depois, quando fui para o Conservatório, os meus
professores, António Reis, Paulo Rocha, Alberto Seixas Santos, Jorge Silva
Melo, que foram os fundamentais, ensinaram-me a ver cinema para além de uma
simples história, a passar além da emoção embora mantendo-a. Os textos do
Bénard da Costa eram também eles cheios de emoção, ele usava muito o adjectivo
“inadjectivável”, qualquer coisa que era tão boa que era “inadjectivável”. Esse
lado desmesurado, que tem a ver com a paixão, foi para mim fundador na minha
relação com o cinema. Ainda hoje quando estou muito tempo sem ver filmes é como
se me estivesse a faltar qualquer coisa.
Porque
o marcaram aqueles professores?
O
António Reis morreu logo a seguir a eu ter saído do Conservatório. Tinha com
ele uma relação que se estendia até à Cinemateca, onde eu ia compulsivamente a
seguir às aulas e onde o encontrava com a mulher e as filhas. Esta extensão
Escola-Cinemateca é como eu acho que só é possível fazer cinema, o cinema
confunde-se realmente com a vida. Eu não tenho uma profissão ou não a vejo como
tal, é a única coisa que eu sei ou tento saber fazer, não tenho horários, e
acredito que é impossível fazer qualquer actividade artística sem ser desta
forma, embora claro que com alguma disciplina. Eles também me ensinaram este
lado obsessivo. E que não é importante só ver filmes, mas também fazer outras
coisas, por exemplo ler. Logo numa das primeiras aulas, o Jorge Silva Melo, que
dava Argumento, deu-nos uma lista com os livros fundamentais para qualquer
pessoa perceber um bocadinho de literatura. Não tinha nada a ver com estas
aulas que hoje em dia são dadas por gurus do argumento como Robert McKee. Fazíamos
o exercício de pensar como um livro tinha sido adaptado, depois víamos filmes.
Por exemplo «Carta de Uma Desconhecida», de Max Ophüls a partir do livro do
Stefan Zweig, ou «O Dinheiro» do Robert Bresson a partir de Dostoiévsky. Depois
vim a trabalhar em alguns filmes do Jorge Silva Melo. Com o Paulo Rocha fiz a
grande descoberta do cinema asiático que é aquele que talvez hoje ache ainda
mais interessante. Ele mostrou-nos principalmente Ozu e Mizoguchi. O Alberto
Seixas Santos deu-me também o olhar analítico, e mais tarde trabalhei com ele
num filme chamado «Mal» [1999].
António
Reis que também tinha uma ligação com Trás-os-Montes, província onde filmou «O
Ornitólogo».
Uma das grandes alegrias de ir filmar para Trás-os-Montes foi saber que já tinham lá filmado, naquele território, o António Reis e a Margarida Cordeiro. Ela ainda lá vive, mantive algum contacto ao longo destes anos e encontrei-a antes de fazer este filme. Pedi-lhe ajuda na procura de cenários com determinadas aves e ela sugeriu-me algumas zonas, sítios que nem nomes têm. Mas o meu filme não tem nada a ver com o «Trás-os-Montes» [1976] deles, mesmo se esse filme se tornou num mito do cinema português.
Que tipo de aves procurava? Imagino que seja difícil prever o momento em que se pode captá-las...
Nessa zona existem aves raras como o abutre-do-egipto e as cegonhas-pretas. Estas últimas são o oposto das brancas que estamos habituados a ver e que são gregárias. As pretas são muito solitárias, vivem em casais, fazem os ninhos distanciadas umas das outras ou em falésias à beira dos rios. Têm também elas qualquer coisa de mito. Tivemos a colaboração dos guardas do Parque Natural do Douro Internacional e de um ornitólogo chamado Carlos Pacheco que sabem onde elas estão e foi mais fácil apanhá-las do que imaginava. Filmámos na Primavera de 2014, estávamos na altura da nidificação.
Uma das grandes alegrias de ir filmar para Trás-os-Montes foi saber que já tinham lá filmado, naquele território, o António Reis e a Margarida Cordeiro. Ela ainda lá vive, mantive algum contacto ao longo destes anos e encontrei-a antes de fazer este filme. Pedi-lhe ajuda na procura de cenários com determinadas aves e ela sugeriu-me algumas zonas, sítios que nem nomes têm. Mas o meu filme não tem nada a ver com o «Trás-os-Montes» [1976] deles, mesmo se esse filme se tornou num mito do cinema português.
Que tipo de aves procurava? Imagino que seja difícil prever o momento em que se pode captá-las...
Nessa zona existem aves raras como o abutre-do-egipto e as cegonhas-pretas. Estas últimas são o oposto das brancas que estamos habituados a ver e que são gregárias. As pretas são muito solitárias, vivem em casais, fazem os ninhos distanciadas umas das outras ou em falésias à beira dos rios. Têm também elas qualquer coisa de mito. Tivemos a colaboração dos guardas do Parque Natural do Douro Internacional e de um ornitólogo chamado Carlos Pacheco que sabem onde elas estão e foi mais fácil apanhá-las do que imaginava. Filmámos na Primavera de 2014, estávamos na altura da nidificação.
Há
qualquer coisa de Anthony Mann neste ornitólogo a atravessar uma natureza que
lhe é monumental.
Sim, no western americano há uma relação privilegiada do homem com a natureza. Onde vemos o homem sozinho e o seu cavalo, aqui temos o homem e o seu caiaque. Nos filmes do Anthony Mann, o James Stewart tem um ar masculino e doce ao mesmo tempo, basta olhar para os olhos dele para ver a sua humanidade. Mas também pensei no Budd Boetticher, em cujos filmes o Randolph Scott tem qualquer coisa de furtivo, uma presença muito bruta do corpo, aquela pele, queria encontrar nesta personagem alguma dessa dureza. E quis que este ornitólogo atravessasse a natureza como se fosse parte dela. Em muitos lugares onde estivemos não passam homens há muito tempo. É como se fosse uma viagem no tempo. Não é só uma viagem física. É uma viagem a um tempo onde este mundo não estava tão destruído e transformado. Apesar de as margens do Douro terem sido cultivadas durante muito tempo, chegando as pessoas lá de mula, burro, a pé, hoje há muitos olivais abandonados, resultado, como se sabe, da enorme desertificação do país. Essa história sente-se, mas é como se tudo isso tivesse sido induzido pela natureza, como se voltássemos a um estado selvagem, não domesticado, virgem, a qualquer coisa que se perdeu e ainda é possível encontrar.
Sim, no western americano há uma relação privilegiada do homem com a natureza. Onde vemos o homem sozinho e o seu cavalo, aqui temos o homem e o seu caiaque. Nos filmes do Anthony Mann, o James Stewart tem um ar masculino e doce ao mesmo tempo, basta olhar para os olhos dele para ver a sua humanidade. Mas também pensei no Budd Boetticher, em cujos filmes o Randolph Scott tem qualquer coisa de furtivo, uma presença muito bruta do corpo, aquela pele, queria encontrar nesta personagem alguma dessa dureza. E quis que este ornitólogo atravessasse a natureza como se fosse parte dela. Em muitos lugares onde estivemos não passam homens há muito tempo. É como se fosse uma viagem no tempo. Não é só uma viagem física. É uma viagem a um tempo onde este mundo não estava tão destruído e transformado. Apesar de as margens do Douro terem sido cultivadas durante muito tempo, chegando as pessoas lá de mula, burro, a pé, hoje há muitos olivais abandonados, resultado, como se sabe, da enorme desertificação do país. Essa história sente-se, mas é como se tudo isso tivesse sido induzido pela natureza, como se voltássemos a um estado selvagem, não domesticado, virgem, a qualquer coisa que se perdeu e ainda é possível encontrar.
Proferiu
termos como “mito”, “sagrado”, “virgem”, mas ainda não falámos de Santo
António, figura omnipresente no filme.
Interessa-me
contar mitos da história popular portuguesa, aquilo que é do domínio de todos,
e de alguma forma inventar os meus filmes a partir dela. Embora se passe na
actualidade, o filme é uma interpretação muito pessoal do Santo António, que
viveu no século XIII. É uma personagem que já vem de um filme que fiz chamado
«Manhã de Santo António» [2012], que tinha que ver com as festividades à volta
do 13 de Junho mas nada com a sua biografia. Não há assim tanta coisa escrita
que se saiba ser verdade sobre este frade que nasceu em Lisboa e morreu em
Pádua, que em Coimbra conheceu frades franciscanos, ficou muito comovido com
aquela nova forma de pensar a religião e foi evangelizar com um grupo de
franciscanos para o Norte de África, quase que morreu, escapou, e no regresso,
o barco onde vinha, deu à costa em Itália. Interessava-me este lado de viagem.
Os franciscanos estavam ligados à natureza, ao estudo, a uma vida na pobreza.
Fazia-me sentido através da personagem do ornitólogo ir buscar esta outra
história. O facto de estarmos neste espaço sem tempo, onde quase não há
presença humana, era o espaço ideal para abordar episódios da vida de Santo
António e a sua relação com o Divino. Eu não sou crente, mas o abandono dos
franciscanos faz muito sentido agora se pensarmos no mundo de hoje em que há
uma ostentação contínua da riqueza e em que o maior poder virá do dinheiro.
É
indiferente para si que ele seja conhecido como um santo casamenteiro?
Isso,
se pensar, foi uma apropriação do regime do Estado Novo a partir da
representação que existe de Santo António com o Menino Jesus nos braços,
presente em muitas igrejas. Essa imagem interessava para uma ideologia de moral
da família. Não é que eu queira destruir essa imagem, mas penso que de alguma
forma o filme tem um lado iconoclasta ao olhá-lo de um outro ponto de vista.
Acha
que as religiões tradicionais se tornaram expressões obsoletas e alienantes e
que o cinema pode, à sua maneira, reivindicar um papel na espiritualidade dos
homens?
É uma
questão difícil de responder, ainda por cima estamos a viver um momento
trágico. Em nome de muitas e variadas religiões cometem-se actos absolutamente
horrorosos e atrozes. A minha aproximação à religião, que foi muito
forçosamente a católica pois vivo em Portugal, foi pela pintura. A maior parte
da pintura ocidental é religiosa, começou nos frescos das igrejas, só depois é
que começou a escapar às encomendas do clero...
A
iconoclastia pode ser uma via para a transcendência?
Os meus
filmes têm uma presença muito física não só dos actores, como dos cenários, dos
lugares ou da forma como os filmo, e tento a partir dela chegar a uma
transcendência. Não gosto muito de chamar o cinema de arte, embora obviamente o
seja. O cinema é um ponto de vista sobre o mundo. É de alguma forma o modo que
encontrei para sublimar essa relação que tenho com o mundo, tornando-a pessoal
e também misteriosa. O cinema que me interessa é um cinema em que nem tudo é
claro, não quer dizer que seja tudo opaco, mas o prazer vem de haver sempre um
mistério que permanece.
Diria
que está sempre a pegar nesse mistério que é a fronteira entre a natureza
humana e a animal. O primeiro plano de «O Fantasma» [2000] é o de um cão, e o
protagonista humano como que se transforma num. «Odete» [2005] tem no instinto
maternal ou reprodutivo uma espécie de motor. Em «Morrer Como Um Homem» [2009]
estão lá também os cães, espectadores mudos mas também capazes de interferir
nas vidas dos donos sem que estes se lembrassem que o poderiam fazer. Em «A
Última Vez que Vi Macau» [2019] os animais como que se assumem como
protagonistas de um espaço de memória inicialmente humano...
Somos
feitos da natureza, somos seres vivos, pertencemos aos animais antes de sermos
homens, mulheres. Daí ser importante para mim o lado físico, filmar corpos que
estão vivos. E é o desejo das personagens que as faz mover. Em «O Fantasma», a
personagem é uma espécie de criança e as crianças, como não passaram por uma
socialização, não sentem culpa, fazem o que desejam, daí a proximidade com a
animalidade. De repente a personagem tem sentimentos e talvez seja esse o seu
grande dilema. Não me interessa seguir padrões e deixo-me surpreender pelas
próprias personagens – não é que eu não as construa, mas há um momento na
escrita em que me deixo guiar pela personagem. No «Morrer Como Um Homem» os
cães são duplos dos próprios donos – a Tónia é a Tónia e o Vadio é o Rosário.
Tinha que ver com esta ideia de estarmos muito habituados a viver com animais
domésticos. Em «O Ornitólogo», o actor tem tanta importância como o lugar onde
está. Os animais são selvagens, não sabemos quando vão aparecer, são livres.
Em
«Morrer Como um Homem» um médico cirurgião diz: “Nada se perde, tudo se
transforma”. E de facto, tudo parece metamorfosear-se nos seus filmes, onde a
narrativa começa com uma ligação muito concreta ao real para acabarmos com as
personagens isoladas nos seus medos e fantasias.
Tem razão quando diz que é como se os filmes descolassem da realidade para um outro lugar que vai na direcção do fantástico. Gosto da palavra fantasia. Em inglês “fantasy” serve para o género do fantástico como também para fantasia. O cinema é feito de imagens reais e nesse sentido é sempre real, é como vemos o mundo. Mas consegue de uma maneira se calhar mais evidente do que na literatura, descolar para outra coisa. É verdade que nos meus filmes a forma muda, as personagens mudam, transformam-se... Em «O Ornitólogo», além de haver uma personagem que olha para as aves, pensei também muito em como as aves nos olhavam a nós, isso tem qualquer coisa de misterioso. Como é que se filma isso? E é certo que, de alguma forma, neste filme, é a natureza que vê primeiro essa transformação.
Tem razão quando diz que é como se os filmes descolassem da realidade para um outro lugar que vai na direcção do fantástico. Gosto da palavra fantasia. Em inglês “fantasy” serve para o género do fantástico como também para fantasia. O cinema é feito de imagens reais e nesse sentido é sempre real, é como vemos o mundo. Mas consegue de uma maneira se calhar mais evidente do que na literatura, descolar para outra coisa. É verdade que nos meus filmes a forma muda, as personagens mudam, transformam-se... Em «O Ornitólogo», além de haver uma personagem que olha para as aves, pensei também muito em como as aves nos olhavam a nós, isso tem qualquer coisa de misterioso. Como é que se filma isso? E é certo que, de alguma forma, neste filme, é a natureza que vê primeiro essa transformação.
O
desejo obsessivo, a doença, os amores impossíveis ou desencontrados, a solidão.
Nunca dá às personagens a possibilidade do conforto. E pego novamente em
«Morrer Como Um Homem», naquele momento em que Maria Bakker ao entrar em casa,
trocando uns sapatos rasos por outros de salto, dizia: “Estes sapatos estão tão
confortáveis, enervam-me!”
Nesse
filme havia uma espécie de parti pris de todos os actores serem homens ou
transexuais. Não sei se conhece o «The Women», de George Cukor, em que só há
mulheres, até os animais são cadelas – foi como fazer esse filme mas ao
contrário! Mas isto é só uma pequena anedota. Em relação ao desconforto, a
nossa evolução tem a ver com tentarmos ultrapassá-lo, eu não consigo estar
confortável comigo mesmo e acho que é impossível estarmos sempre confortáveis.
Os motor do drama é a incapacidade do herói atingir os seus objectivos.
(Texto
publicado originalmente na Metropolis
nº41)
Aisha Rahim, cinemametropolis.com
Sem comentários:
Enviar um comentário