LUCKY | 9 JAN | IPDJ | 21H30



LUCKY
John Carroll Lynch, EUA, 2017, 88’, M/12


FICHA TÉCNICA
Realização: John Carroll Lynch
Argumento: Logan Sparks e Drago Sumonja
Montagem: Robert Gajic
Fotografia: Tim Suhrstedt
Música: Elvis Kuehn
Interpretação: Harry Dean Stanton, David Lynch, Ron Livingston, Ed Begley Jr. e Tom Skerritt
Origem: EUA
Ano: 2017
Duração: 88'
 

FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Cinema SXSW – Secção Visões






ENTREVISTA AO REALIZADOR
Lucky é o belíssimo filme do adeus a Harry Dean Stanton, o ator de Paris, Texas que morreu em setembro passado, aos 91 anos. O DN falou com o realizador John Carroll Lynch, aquando da sua passagem por Lisboa no LEFFEST.
A ideia deste filme focou-se, desde o princípio, sobre Harry Dean Stanton?
Mais do que um filme sobre ele, diria que é um filme inspirado por ele. O que aconteceu foi que os dois argumentistas [Logan Sparks e Drago Sumonja] tinham vontade de trabalhar com o Harry, porque o conheciam há muito tempo. Então surgiram com esta ideia de olhar para ele como uma espécie de guru no deserto. Tudo começou com essa premissa, e depois acrescentaram muita da sua filosofia. A grande dúvida era se o Harry poderia aceitar fazer o filme. E ele aceitou. Eu fui um casamento arranjado mais tarde.
O que é que mais o preocupou durante a rodagem, em relação ao próprio Harry?
Para além do cansaço físico, eu queria certificar-me de que ele estava mental e emocionalmente apto para o trabalho, como era preciso que estivesse para entrar nesta viagem. Havia dias em que pensava - ao vê-lo naquelas longas caminhadas que fazia - se o título do filme não deveria ser “Lucky ou como torturar Harry Dean Stanton”…
É curioso que tenha realizado um filme com esta dimensão de viagem espiritual, através de uma abordagem realista muito sustentada pelo ateísmo da personagem, Lucky…
O que me agrada no ateísmo do filme é que ele aumenta os riscos para a personagem. O drama é sobre riscos, e eu não consigo pensar num momento mais dramático na vida de uma pessoa do que o escolhido: a iminência da morte. Lucky é muito mais velho do que qualquer pessoa à sua volta, não tem nenhum problema de saúde - apesar de fumar um maço de cigarros por dia - e, no entanto, pode simplesmente morrer da queda que deu na cozinha. Ele não aguarda ressurreição ou reencarnação, limita-se a enfrentar o vazio. E o que tenta fazer é encontrar uma maneira de viver os dias que lhe restam de uma qualquer forma que se pareça com vida, em vez de simplesmente esperar pela morte.
E como surgiu David Lynch neste projeto? Ele que foi amigo e o fã número um de Harry Dean Stanton.
O David foi ideia do Harry. Estávamos à procura de alguém para a personagem do Howard [um homem solitário a quem desaparece o cágado de estimação] e perguntámos-lhe quem poderia encaixar no papel. Ele só disse “que tal o David?” Todos achámos uma excelente ideia, mas não estávamos convencidos de que iríamos conseguir, porque ele estava a meio da pós-produção de Twin Peaks… Mas fizeram-lhe chegar o material, ele gostou e ajustámo-nos aos dias em que podia filmar. Veio tão magnificamente preparado, com a personagem de tal forma assumida naquela desarmante inocência, que a sua interpretação criou uma bela afinidade com a melodia que atravessa o filme… É que também Howard está a enfrentar pela primeira vez o facto de estar sozinho.
Como é que o Harry lidava com os conteúdos biográficos do argumento?
Havia alturas em que o material era tão íntimo que ele ficava pouco confortável e não queria dizer certas coisas. Mas disse-as. Particularmente a história da cotovia que parou de cantar, o momento mais triste da sua infância, é verdadeira e ele já tinha contado algumas vezes… Mas é diferente quando estás a assinar alguma da tua biografia para uma personagem de ficção.
É mais forte do que um documentário.
Muito mais forte. Sabe, a intenção do argumento era criar um filme que se aguentasse por si, independentemente de o espectador conhecer ou não a biografia do Harry. E acho que conseguimos isso, que Lucky vivesse por si, como personagem. Foi muito gratificante para mim quando ele, já depois da rodagem, descreveu a personagem como alguém que o Logan [Sparks, argumentista] concebeu. Achei isso maravilhoso, porque o próprio dizia em muitas entrevistas que durante 40 anos não representou outro que não Harry Dean Stanton. Pensei muito nisto durante todo o processo: a pessoa que Harry criou não é ele, mas uma interessante revelação da sua essência… É como um vinagre balsâmico da sua vida, é muito mais concentrado.
Lucky tem momentos singulares, como aquele em que Harry canta uma canção mexicana. Durante a rodagem houve outros momentos especiais?
Há um momento que me vem de imediato à memória. Era um dia muito quente. Filmámo-lo a andar seis ou sete quilómetros e depois ele sentou-se numa cadeira que estava no meio da rua. Fui ao pé dele e perguntei “quer que lhe traga alguma coisa?”, ele disse que não e acendeu um cigarro. Ficámos ali sentados cerca de 5 minutos em silêncio. Não dissemos nada um ao outro e foi simplesmente maravilhoso.
Inês N. Lourenço, dn

 
 
CRÍTICA
Foi um derradeiros filmes interpretados por Harry Dean Stanton: "Lucky", estreia na realização de John Carroll Lynch, é uma bela homenagem e também uma intransigente defesa de um cinema de actores.
A imagem de Harry Dean Stanton a dialogar com David Lynch poderá fazer-nos pensar que estamos num filme do próprio Lynch. Afinal de contas, o emblemático actor americano, falecido no passado dia 15 de Setembro, contava 91 anos, foi uma figura cúmplice dos enigmas lynchianos, tendo ainda surgido na nova temporada de "Twin Peaks". Mas não: estamos perante um dos títulos finais de Harry Dean Stanton, "Lucky", realizado por John Carroll Lynch (actor a estrear-se na realização).
"Lucky" talvez se possa definir como um objecto que nasce, justamente, da presença de Harry Dean Stanton, ou melhor, do facto de o seu envelhecimento se adequar de forma singularmente realista ao envelhecimento da própria personagem central. Não por qualquer lógica voyeurista, antes porque o actor aceita que a sua performance favoreça também uma espécie de documentário surreal sobre as vivências daquela cidadezinha made in USA em que tudo acontece.
E lembramo-nos da tradição clássica do "western", em particular dos seus lugares de escassos habitantes em que as rotinas do dia a dia parecem favorecer uma reflexão mais ou menos irónica sobre a fragilidade da vida e a certeza da morte. Embora situado num tempo que reconhecemos cúmplice do nosso, "Lucky" mobiliza essas memórias, de desencantada nostalgia, revisitando o imaginário de um tempo que não pode ser repetido, muito menos mimado.
Lynch (John Carroll, neste caso) consegue, afinal, celebrar os pequenos incidentes da existência humana, com eles e através deles defendendo uma ideia de cinema que passa, justamente, antes do mais, pela fisicalidade dos actores. Em tempo de tantos delírios gratuitos dos (chamados) efeitos especiais, "Lucky" é uma declaração de amor pelos actores e pelas respectivas personagens — acreditando ainda num cinema humano, porventura demasiado humano.
João Lopes, rtp.pt/cinemax

 
 

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