2ªf é UM GÉNIO. 2ªf é COPPOLA. 2ªf é TETRO. IPJ, 21h30.

Há um jovem que procura um irmão mais velho que anos antes se foi embora da casa paterna. Há um pai com tendências centrípetas, fazendo o mundo convergir para um ponto onde ele está. Há uma história trágica com ressonâncias de incesto e há uma jovenzinha fascinada que um pai rouba a um filho e depois se desarticula, como uma boneca a quem partiram as ligações. Há um tipo que praticamente enlouquece com a história da sua vida que não pára de escrever e mastigar - e uma mulher que o salva sem lhe matar os fantasmas. E há Coppola a dizer que todas aquelas histórias, personagens, relações, tramas e traições são verdadeiras, embora nada daquilo alguma vez tenha ocorrido.



Já estou a ver, daqui a poucos anos, os biógrafos do realizador debruçados sobre "Tetro", tentando esclarecer em cada recanto uma correspondência com a realidade, como se este fosse um filme com chaves para decifrar. Acrescento já que quero, no futuro, ler esse esforço, mas que, perante o filme, isso é o que menos me interessa. Pelo contrário, interessa-me muito verificar que esta espécie muito particular de saga familiar, em tom de melodrama embalado pelo som do bandoneón (fascinante banda sonora de Osvaldo Golijov), tem o sopro de uma ópera popular. É por isso que nenhum dos personagens é verdadeiramente realista e que a fotografia a preto-e-branco cria uma impressão de sufoco como eu não via desde "A Saudade de Veronika Voss" de Fassbinder (quem diria que já passou mais de um quarto de século!). É por isso que as ruas do bairro de La Boca, numa Buenos Aires apaixonante e onírica, parecem cenários de um palco incomensurável, como pareciam as de "Do Fundo do Coração" que eram mesmo feitas num estúdio, as de "Tetro" não. É por isso que quando Maribel Verdú dança diante de um Alden Ehrenreich que não podia estar mais embevecido, aquilo parece um momento perfeito e a gente nem se interroga sobre os cordéis de ficção que ligam a cena ao que veio antes e ao que vem depois. Não: a gente fica ali, mais enfeitiçada do que o protagonista, sem querer saber mais nada a não ser a pura beleza diante dos olhos.



E apetece que dure - infindavelmente. Como nos melhores filmes de Powell e Pressburger que Coppola explicitamente convoca, como nas grandes árias de Verdi que desejamos que não acabem nunca, "Tetro" é um objecto com o poder de retorsa sedução que só os pináculos artificialistas conseguem destilar. Tem tudo lá dentro, Eros e Thanatos, espantos, dores, bailado, a grande música, o teatro mais delirante, a tragédia, os espaços largos (como nos westerns), o melodrama da ralé, faca-e-alguidar, e a melhor arte elitista - até tem uma cena de iniciação sexual feita com uma alegria tão exuberante que apetece ser virgem outra vez. Esta massa infrene, pulsante, é caldeada pela mão de um autor que sabe tudo o que há para saber sobre cinema e que, como já nada tem a provar, faz aqui o mais livre dos seus filmes, o mais secreto, o mais barroco, um dos mais belos.

(Tenho um amigo que acha Francis Ford Coppola o maior cineasta da História do Cinema. "Tetro" - e a trilogia dos Padrinhos, e "Apocalypse Now" e "Do Fundo do Coração" - quase me fazem dar-lhe razão.)

Jorge Leitão Correia, Expresso



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