“Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón”
Pedro Almodóvar, 1980
O primeiro longa, com pretensão comercial, de Almodóvar, foi rodado nos fim de semana, em sistema de cooperativa, ou seja, ninguém cobrava salários. Todos estavam interessados em participar do filme. Com uma ideia muito tênue, Almodóvar lançou-se à procura de atores para seu filme. Escolheu Alaska por seu figurino, pois queria uma moderna sádica no papel de Bom. Alaska, sem experiência como atriz, fez ela mesma, no filme, uma personagem que interpreta até a atualidade em seus clips e shows. Carmen Maura era a base dramática em que se apoiava o projeto e também a financeira, pois conseguiu dinheiro com amigos. Camuflada sob o pseudônimo de Eva Siva, Mercedes Guillamón, filha de um diplomata e colaboradora habitual nos curtas de Almodóvar, ganhou o papel de Luci, a dona de casa masoquista.
“Pepi, Luci, Bom...” tem defeitos técnicos imensos, cabeças cortadas, enquadramentos amadores, principalmente o de abertura, em que temos um travelling da fachada do prédio de Pepi. José Salcedo, montador fez o que pôde, mas a continuidade de sentido do filme tropeça a todo momento. Almodóvar declarou: “Quando um filme tem um defeito, é um filme incorreto, mas quando tem muito mais que um, a isso se chama Nova Linguagem, Estilo.” Boa justificativa para a falta de direção, falta de atores que consigam sustentar personagens, de cenários próprios, figurino, etc. “Pepi, Luci, Bom...” lembra bastante a tosca produção, já em 16mm, do curta “Salomé”, de 1978.
O que o filme tem de interessante é o recorte das gerações que participaram de La Movida: Pepi é uma trintona; Luci, uma quarentona dona de casa, dominada pelo marido policial, e Bom é a jovem moderna que quer gozar a vida e fugir dos traumas de um passado que não chegou a conhecer. Os que plenamente viveram o movimento foram os trintões ou quarentões, que tinham crescido sob o repressivo franquismo e podiam extravasar seus desejos. Os personagens que já tinham uma história de vida maior, pelo menos cronologicamente, na gíria da época, eram chamados Pepis (derivado obviamente de papa, papito).
(…) Em “Pepi, Luci, Bom...”, a personagem Luci tem a intenção de ser uma guarra [capacho] e, no primeiro encontro, Bom, por ideia de Pepi, lhe proporciona uma ‘chuva dourada’ (de urina), que é claramente simulada, assim como a surra que o marido policial dá em Luci, finalmente satisfeita. A irreverência e a ausência de censura realizam-se nos diálogos e nas situações inusitadas.
O processo de criação dentro de La Movida pode ser perfeitamente compreendido usando-se a metodologia dos Estudos Culturais desenvolvida por Hall, que propõe a existência do Circuito de Cultura: que se organiza em produção (codificação); representação; consumo (decodificação); identidade; mediações. (HALL, 2003, p. 347). Dentro desse processo, os sentidos/significados são produzidos e circulam na sociedade. Na cultura espanhola da época, esmagada por quatro décadas de terrorismo praticado pelo Estado, que eliminou quase a maioria de seus opositores/inimigos, o campo simbólico era terreno propício às primeiras transformações. Como Hall, acredita que “Culture is the process by which meaning is produced, circulated, consumed, commodified, and endlessly reproduced and renegotiated in society. (HALL, 1980, p. 63.) Os jovens autores de La Movida queriam uma nova identidade para a sociedade espanhola. A princípio suas produções chocaram os estabelecidos atores sociais e políticos, mas eles tiveram repercussão em uma ampla parcela da sociedade e provocaram discussões, pautas, reinvindicações que transformaram a política e a economia espanholas da década de 80.
A apresentação de “Pepi, Luci, Bom...” em San Sebastián não chegou a ser um acontecimento. Com exceção da crítica de El País, a recepção do filme foi fria. Muitos inferiram que a direção era inexistente, e que a maioria não gostou de nada do que viu, caracterizando-o como grotesco. Os que apreciavam eram o próprio diretor e todo o grupo de La Movida. A valorização do filme foi feita a posteriori pela carreira desenvolvida por Almodóvar como cineasta, o que, nessa época, estava longe de ser pelas próprias características do movimento onde todos desenhavam, fotografavam, pintavam... “Pepi, Luci, Bom...” e “Laberinto de pasiones” têm paralelismos com os filmes da Warhol Factory. São uma obra coletiva. Todos contribuem com dinheiro (“Laberinto de Pasiones” foi uma encomenda dos Cines Alphaville), ideias, muitos atores improvisam ou vivem o personagem que criaram dentro de El Rollo de La Movida.
A técnica do documentário é um recurso utilizado o tempo todo, mesmo porque algumas situações dramáticas são resolvidas mais facilmente com esse artifício; com essa estrutura de docudrama, a narrativa é costurada e cria uma verossimilhança interna, que talvez não fosse alcançada de outra maneira.
O filme foi produzido em 16mm e depois transferido para 35. Nota-se bastante diferença de imagem entre algumas cenas. A sequência do comercial das calcinhas Ponte deve ter sido feita já em 35mm, pela sua qualidade fotográfica. Bem ao gosto pop, temos o anúncio de um produto impossível, que está parodiando uma campanha da época, sobre o uso de preservativos. Almodóvar não hesita: cria uma calcinha que guarda o xixi, transforma um flato em perfume e, se enrolada de modo apropriado, pode funcionar como fogoso amante; o locutor, emocionado, diz o slogan: “Haga lo que haga, Ponte bragas!”16 [Faça o que fizer, Ponte calcinha!”].
No filme, Alaska é a vocalista do grupo de rock Bomitoni. No dia da apresentação, vemos na plateia Augustín Almodóvar, Las Costus, Ana Belén e quase todos de El Rollo. Na apresentação, o suposto grupo, que é uma mescla dos Pegamoides (grupo de Alaska) com alguns atores, cantam “Muy certa de ti”, e uma música especialmente composta por Almodóvar para a cena Murciana:
Te quiero porque eres sucia, [Eu gosto de você porque você é suja]
Guarra, puta y hortera, [(pistolera, puta e vulgar]
La más obscena de Murcia, [a mais obscena de Murcia]
Y a mi disposición entera [e sempre a minha disposição]
Solo pienso en ti, [Só penso em você]
Murciana! [Murciana!]
Porque eres [Porque você é]
Una marrana. [Uma piranha.]
Bom canta a poética música para Luci, personagem que é de Murcia, e ela, que está na plateia, vai ao delírio.
Toda a escatologia pop de La Movida estava presente no filme. A linha narrativa era bastante simples. Pepi se deixa violentar por um policial, para não ser denunciada por cultivar maconha em sua sacada (em “Volver”, Agustina cultiva Juana no pátio de sua casa no povoado). Depois Pepi resolve vingar-se e encomenda uma surra para ser dada no policial, sem saber que o policial tinha um irmão gêmeo, e que a agressão cairia sobre o inocente. Irmãos que trocam de identidade, pelo bem ou pelo mal (deles ou dos outros), como voltaria a aparecer em “La mala educación”.
Seguindo seu plano, Pepi conhece Luci, a mulher insatisfeita do policial, e lhe pede aulas de tricô. Numa dessas aulas, Bom chega e dá um banho de urina em Luci, que fica apaixonada. Pepi transforma-se numa publicitária de sucesso, Luci acaba cansando-se de Bom e volta para o marido, depois que esse lhe dá uma tremenda surra, pois ela é sadomasoquista. Bom vira cantora de bolero.
Depois da estreia em Madri, o filme circulou pela Espanha. Alaska conta que Pedro e ela viajaram bastante para promovê-lo. Em Murcia, ela ficou nervosa, pois a música que canta para Luci não é nada elogiosa. O filme ficou apenas um dia em cartaz na cidade. Em Madri, ele foi veiculado durante dois anos, e vê-lo era considerado um item necessário no rol de quem se julgava moderno. Por esse sucesso madrileno, o Cine Alphaville de Madri decidiu produzir outro filme de Almodóvar.
João Eduardo Hidalgo, “Docudramas de La Movida madrilena: “Pepi, Luci, Bom y otras chicas del Montón” e “Laberinto de pasiones”, do cineasta espanhol Pedro Almodóvar”
(sugerimos a leitura do ensaio na íntegra, pois contém uma boa contextualização e explicação do fenómeno Movida Madrilena)
.
Sem comentários:
Enviar um comentário