2ªf, 7 Nov, JOÃO CANIJO APRESENTA "SANGUE DO MEU SANGUE"!

É um imenso prazer anunciá-lo, pois, para além do mais, nunca tinha sido possível acertar a agenda do realizador
com a nossa exibição de seus filmes anteriores.
É desta!


IPJ, 2ªf, Dia 7 Nov, 21h30 (versão curta - 140')

entradas: sócios 2€, estudantes 3,5€, restantes 4€

reservas ccf@cineclubefaro.com


NOTA DE INTENÇÕES
«Nós somos feitos de sonhos, e a nossa pequena vida anda às voltas num sono.»
Shakespeare

«A única coisa que qualquer um de nós quer na vida é ser amado sem explicações. Queremos amor incondicional, sem dar nem receber explicações. O amor mais profundo é o que não precisa de razões para existir.»
António Lobo Antunes

A citação de Lobo Antunes diz respeito ao drama central do filme: a tragédia da vida choca com o amor incondicional, um amor sem explicações, que não precisa de razões para existir.
O amor incondicional pode ser posto à prova, mas nunca é posto em causa, porque, como foi definida por Aristóteles, a felicidade é absolutamente final, porque é sempre escolhida em função de si mesma e nunca como um meio para outra coisa. E no contexto deste filme, todas as acções têm em vista um bem: a felicidade da pessoa amada. A felicidade da pessoa amada é o alvo de todas as coisas, é aquilo em função do qual tudo o resto é feito. A felicidade da pessoa amada é escolhida sempre como um fim e nunca como um meio.

O filme passa-se num meio suburbano para tentar perceber como os afectos e o amor resistem e sobrevivem quando mergulhados num universo estéril. Observa-se o amor quando ameaçado por uma circunstância irremediável, para dele compreender melhor a essência. Porque é num ambiente de falta de civilização, de ignorância, de violência, que melhor se pode abordar a questão do amor. Quanto maior for a aridez emocional do meio ambiente, mais inquestionável se torna qualquer gesto de amor e mais incondicional é esse amor.

Este filme trata a barbárie de uma sociedade porque, acima de tudo, é um filme sobre o amor incondicional. E é na barbárie que esse amor ganha corpo, porque apenas num contexto de violência uma ligação de sangue poderia ser posta em causa.
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João Canijo



O novo filme de João Canijo é uma obra-prima que merece ser arrumada ao lado de “O Segredo de um Cuscus”, de Abdellatif Kechiche, ou “Segredos e Mentiras”, de Mike Leigh, como um dos grandes filmes do último quarto de século.

Há uma cena de refeição em “Sangue do Meu Sangue” onde é inevitável vermos ecos do “Segredo de um Cuscus” de Abdellatif Kechiche - onde no filme do cineasta francês toda a gente se reunia à volta do cuscus do sr. Slimane, aqui são os carapaus do Nini, dono do restaurante onde Márcia é cozinheira e seu companheiro, que muitos clientes vinham de longe para comer. Mas a comida não é aqui o que une a família de Márcia (a irmã cabeleireira, a filha universitária que trabalha num supermercado e o namorado segurança, o filho pequeno dealer e a namorada que mal abre a boca). A refeição da folga de Márcia e Nini, na casa do Bairro Padre Cruz, é o ponto sem regresso, em que a tragédia que se pusera imperceptivelmente em marcha começa a ganhar um embalo imparável.

Desde “Ganhar a Vida” que João Canijo vem explorando os meandros da tragédia humana no Portugal real e, para nós, “Sangue do Meu Sangue” é o ponto fulcral e sublime dessa investigação. Se fomos buscar o “Segredo de um Cuscus”, é porque, nesse filme, Kechiche filmava as cenas de família como longos “takes” onde todos falavam ao mesmo tempo à volta de uma mesa. Aqui, Canijo faz algo de semelhante mas leva-o mais longe, desde a primeira cena deste “film-fleuve” que coloca em simultâneo duas acções, duas conversas num mesmo enquadramento, forçando o espectador a escolher uma mas sempre mantendo a outra presente. E isso espelha-se também no modo como o núcleo familiar de Márcia se divide em dois núcleos narrativos - a mãe e a filha de um lado, a tia e o sobrinho do outro - num cruzamento contínuo e interligado de histórias cujo centro gravitacional é sempre o horizonte social do subúrbio pobre onde moram.

Canijo e o seu elenco definem “Sangue do Meu Sangue” como um filme sobre o amor incondicional - mas, mais do que isso, é um filme sobre a força das mulheres, sobre as mães-coragem que se sacrificam pelas crianças, capazes de tudo para garantir um futuro melhor, quer sejam mães verdadeiras ou mães de substituição (Márcia e Ivete são capazes de tudo, até de fazer de Cláudia e Joca inimigos, para garantir que eles não deitam fora a sua vida). Nenhuma delas mais extraordinária do que Rita Blanco, numa daquelas interpretações de estarrecer que se vêem muito de longe em longe - damos por nós incapazes de afastar o olhar sempre que ela está no écrã, sem desprimor para um elenco de primeiríssima água onde não há um único passo em falso.

Por falar em elenco, seria injusto não falar também daquela que é uma das referências centrais do realizador, o inglês Mike Leigh, cuja construção do argumento em colaboração com os actores se sente a cada instante de “Sangue do Meu Sangue”, no modo como tudo se submete à presença e à entrega dos actores, como são eles que ditam o olhar da câmara (sempre em “takes” longos, móveis, discretos). São os actores e as personagens que criam este filme, e Canijo celebra-os dando-lhes todo o espaço para eles respirarem, montando ao sabor das suas ascensões e quedas, deixando cada cena prolongar-se pelo tempo exacto para transmitir a sensação de que não estamos a ver actores num filme mas pessoas a viver.

Até na sua própria estrutura, com uma geometria variável de duração que permite duas versões de cinema, uma normal de 2h20 e uma “longa” de 3h10 (que, para já, só pode ser vista numa sala de Lisboa). A aposta de Canijo é exactamente o oposto do ópio telenovelesco: onde a telenovela reduz tudo a uma superfície lisa e anódina, ficando-se pela rama maniqueísta do bem e do mal, Canijo mergulha a fundo na complexidade, nos cambiantes de cinzento que estão mais próximos da vida do que da ficção. E o olhar que Canijo dirige a cada um deles, sempre atento mas nunca gratuito, sempre impiedoso mesmo que ocasionalmente doloroso, o tempo que lhes dá para se desvendarem perante os nossos olhos, é algo que não se vê muito no cinema moderno - português ou não. E não há telenovela que seja capaz disso. Exemplo perfeito do encontro entre um projecto, um cineasta e um elenco, “Sangue do Meu Sangue” é um dos grandes filmes portugueses (mas não só), do último quarto de século, é o melhor filme de João Canijo, é uma obra-prima para as calendas. Que o público assim o saiba receber.
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Jorge Mourinha, Ípsilon


Espantoso plano Inicial. Dir-se-ia prodígio cenográfico, pórtico de entrada para uma ficção, digno de Kurosawa, com aquela letra gigantesca no Interior da qual o Joca/Rafael Morais se afunda no caminho para um bairro de onde - havemos de perceber ao longo do filme - a vida encontra maneiras de não deixar (quase) ninguém sair. Mas não é cenografia, é apenas um elemento edificado, está lá no terreno. É o princípio de "Sangue do Meu Sangue", inscreve uma matriz estética que Canijo vai assumir o tempo todo: a narrativa há de mergulhar no naturalismo até quase nos convencer que estamos a ver gente e vidas em carne viva, suspendendo todas as descrenças; ao mesmo tempo, mostrará o artifício, a construção, seja pela posição da câmara (não raras vezes olhando de um ponto 'impossível' - e haverá ações que se passam fora do olhar), seja pelo trabalho sobre o som, sempre inserindo um pequeno grão na transparência. O filme navega num turbilhão de fúria. É a história de uma família, a mãe cozinheira (Rita Blanco), uma irmã que trabalha num cabeleireiro e é dada a esoterias (Anabela Moreira), uma filha que estuda para enfermeira e trabalha num supermercado, um filho que já esteve internado correcionalmente e, se é apanhado noutra, vai mesmo preso (Rafael Morais). Os fios de uma existência dura vão tornar-se trágicos quando a filha se torna amante de um professor, médico e homem casado (Marcello Urgeghe), e quando o filho tenta dar um golpe no patrão do tráfico da zona (Nuno Lopes) - ambos a caminho de um preço insuportável. O amor das duas mulheres mais velhas pelos mais jovens da família vai tentar fazê-los sair do destino que se afigura negro. A história podia ser de telenovela - mas a sério. Uma telenovela onde os pobres não fossem castiços e os ricos não se armassem em viscondes da treta. Onde houvesse sangue, falta de espaço, suor, cansaço, pouco dinheiro, falta de esperança, promiscuidade, ideias feitas. Onde a forma como as pessoas falassem e os sons que rodeassem as suas existências as definissem por completo (e nunca houve, no cinema português, banda sonora tão vibrante e significativa, em que a mistura e a montagem acordassem universos Inteiros). Uma telenovela que mostrasse que a vida é tudo, mesmo o horror, às vezes além do intolerável. Nem nos apetece saber - mas há quem por lá ande. O trabalho dos atores é superlativo. Primeiro na construção do argumento (documentado em "Trabalho de Actriz, Trabalho de Actor", exibido na quinta-feira na RTP e editado em DVD). Depois na generosidade com que se entregaram a esta ficção (as atrizes aceitaram desfear-se para que os poros, o desalinho, o mau gosto das roupas definisse as personagens do Bairro Padre Cruz - e não é um detalhe). E sempre o talento a derramar-se num filme inesquecível. Injustíssimo destacar seja quem for num conjunto sublime, mas refira-se Nuno Lopes e Anabela Moreira, extraordinários na transfiguração brutal que sobre si operam.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso



Saí do estúdio para o ar tépido de uma noite de Outono, reconciliado comigo, com o Mundo, com o realizador João Canijo, com o défice externo e o financiamento público da cultura, consciente de que pelos critérios de produtividade dos actuais governantes não haveria bilheteira que alguma vez pagasse o quanto vale esta obra-prima. "Sangue do meu sangue" é um filme belíssimo que olha o nosso Mundo com uma sobriedade enternecida e cúmplice, que exorciza os nossos fantasmas e desarma os nossos mais íntimos demónios. É uma tragédia clássica. A civilização foi-se erguendo ao longo dos milénios, precisamente, por este contínuo refazer dos mitos e das obsessões elementares que os gregos originalmente encarnaram nos deuses do Olimpo ou transpuseram para heróis terrenos - os habitantes desta superfície imprecisa onde nos achamos, entre o céu e o inferno. As personagens da tragédia de João Canijo habitam os cenários e interpretam os papéis destes humanos. Márcia, encarnada por Rita Blanco, a velha "mãe solteira" com filhos de diferentes pais e um amante terno e solícito. O enredo de pecados secretos e paixões inocentes que desemboca num amor interdito. O brilho e a miséria do quotidiano das drogas, do tráfico e da prostituição. A tia maternal que se sacrifica pelo sobrinho jovem e incauto que, por seu turno, lhe sacrificará uma vida. O traficante de droga que cuida com paciente desvelo as suas filhas, logo que "sobe o pano" e o "teatro" começa.

Todos cumprem com sublime humanidade o destino inelutável que lhes foi urdido pelo realizador, num espaço sufocante e promíscuo, atravessado por conversas alheias e ruídos estranhos, num "interseccionismo" de reminiscências pessoanas, como em "Hora absurda" -"Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto / Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...". O "karaoke" da discoteca lisboeta e os seus intérpretes do Bairro do Padre Cruz são os mesmos que delicadamente me ensurdecem nas noites de sexta-feira, aqui, na associação recreativa da minha rua. A desmesura dos edifícios desta nova "urbanidade", com abismos insondáveis cavados sob esvoaçantes viadutos, contrasta com a exiguidade do interior das habitações, os compartimentos minúsculos sobrepostos no ecrã, os contornos desfocados, as camas partilhadas e, incrustada na cozinha, a mesa onde os comensais se acotovelam com os seus ressentimentos e afinidades, os seus medos e os seus sonhos. Uma pobreza exposta com respeito e seriedade, sem pieguice, sem cosméticas grotescas nem piedosos eufemismos. João Canijo oferece-nos, com grandeza e dignidade, o espectáculo da nossa miséria... para nosso gozo e reflexão.

Saí para essa noite amena de Outono reconciliado com João Canijo. De relance, tinha-o surpreendido numa entrevista para a televisão onde parecia contestar que os gregos actuais de alguma forma pudessem representar "os gregos antigos", alegadamente, por estes terem vivido, durante alguns séculos, sob o domínio turco. Uma conclusão algo precipitada porque os turcos otomanos foram os herdeiros históricos do Império Romano do Oriente, em meados do século XV. Porque a Grécia reconquistou a sua independência política por mérito dos gregos que se mobilizaram heroicamente contra a ocupação nazi durante a II Guerra Mundial, enquanto os portugueses e os espanhóis se furtavam cobardemente atrás da "neutra" cumplicidade de Francisco Franco e Oliveira Salazar, a participar no combate contra os fascistas italianos e os nazis alemães. Também por ser testemunho de muita ingratidão para com os gregos - que inventaram a tragédia que João Canijo tão bem soube reconstruir e actualizar em "Sangue do meu sangue". E, por fim, porque não devia escapar às artes performativas contemporâneas a dimensão trágica da extraordinária encenação que os gregos montaram neste último ano, a bem da ilustração dos povos europeus, para denunciar o absurdo e a barbárie das terapias de austeridade que estão agora em moda, a pretexto de erradicar a epidemia mais recente que dá pelo nome de "dívida soberana".

Pedro Bacelar de Vasconcelos

Para o dizer simplesmente, é o melhor filme de João Canijo. Resultado de uma maneira de construir personagens e narrativas que é aqui levada a um grau máximo, mas resultado também de outro factor que nunca se vira assim num filme de Canijo, e que esse, sim, é uma relativa novidade: o trabalho de câmara. Em vez dos ziguezagues de uma câmara que quase se limitava a ser testemunha da encenação (em “Noite Escura”, em “Mal Nascida”), ei-la aqui, rigorosa e pesada, a ser o elemento central na organização das cenas, a desenhar, abrindo-os ou fechando-os, o espaço e o tempo em que se movimentam as personagens. O trabalho dos actores é extraordinário, de facto, mas numa curta nota como esta em vez de repetir esse elogio preferimos falar ainda de outro elemento discretamente essencial. O som, o som “do bairro”, mas sobretudo o som dos televisores, ligados em todo o lado e durante todo o tempo, dando à televisão portuguesa, e visto que Canijo gosta muito dos gregos, o papel de um “coro”, mas um coro inútil e patético, que nada tem a dizer sobre a tragédia portuguesa que não sejam novelas e futebol (e reparar na ironia com que Canijo usa o “clube de Portugal”: a primeira cena tem o som do primeiro jogo da selecção no Mundial 2010, e durante a humilhação final de Ivete acontece o golo da Espanha que acabou com o que eram, em linguagem televisiva, as “esperanças portuguesas”).
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Luís Miguel Oliveira, Ípsilon


Escusamos de perder tempo desde já com palavras desnecessárias e ir directamente ao que interessa: Sangue do meu Sangue é o evento cinematográfico português do ano e um dos melhores a estrear desde há muitos anos. João Canijo sempre trabalhou como poucos neste país, mas parece que há aqui algo de muito especial e diferente que se traduz num hype raras vezes visto no cinema português. Hype esse perfeitamente justificado e superado facilmente pela obra que se nos apresenta.

João Canijo sempre foi um digno cineasta adepto do realismo social, dedicando-se sobretudo à tragédia grega no interior rural do país (Ganhar a Vida (2001), Noite Escura (2004) e Mal Nascida (2007) mas aqui o que vemos é mesmo a realidade e sobretudo, apesar da miséria que encaramos, não é uma tragédia. Dentro de uma inevitável falta de esperança, este é o filme mais positivo do autor. Não quer com isto dizer que abdique do drama social, do realismo, mas também nunca cai no melodrama novelístico (muitas vezes encaramos um ponto de vista quase clínico) e sobretudo, dentro da iminente tragédia, ela nunca chega na realidade a acontecer, porque finalizamos Sangue do meu Sangue com um senso de redenção. E sobretudo com uma mensagem positiva de amor incondicional.

Em Sangue do meu Sangue encontramos uma forma diferente de trabalhar, um método longe do sentido plano que habitualmente encontramos no cinema e televisão portugueses. Aqui vemos texturas, enquadramentos fabulosos e narrativas simultâneas, com diálogos simultâneos, a obrigar o espectador a escolher qual seguir, enquanto lá fora (ainda numa terceira acção) numa casa paralela se ouve um casal (real e não ficcionado) a discutir. Isto é a vida. É a realidade, a vida com mais que um acontecimento em simultâneo, não escolhe, não selecciona, não reparte. João Canijo também não. Porque ele sabe, sobretudo, retratar a vida e o país em que vivemos, com múltiplas referências à nossa identidade nacional, seja ela através das profissões, da comida ou da música.

O espaço familiar comum ao cinema do cineasta é aqui ainda mais rico que o habitual, especialmente porque o argumento foi construído não só através de João Canijo mas também pelos próprios actores, que criaram e desenvolveram as personagens. Um Mike Leigh português. Um excelente trabalho de direcção de actores, embora o cineasta não goste desse título. Um dos elencos mais soberbos dos últimos anos, com interpretações fabulosas, especialmente as femininas. Rita Blanco, a quem qualquer papel lhe assenta como uma luva, a interiorizar uma mãe capaz de tudo para salvar a filha (Cleia Almeida) de uma tragédia e uma tia – interpretada por Anabela Moreira - (personagem riquíssima, cabelereira, de vida desinspirada e que se sente inútil para todos) capaz de se sacrificar perante um dealer (Nuno Lopes) para salvar o seu sobrinho (Rafael Morais). História nua e crua, mas que não permite ao espectador desviar o olhar um único segundo – veja-se a estarrecedora cena final entre Anabela Moreira e Nuno Lopes. E pensar que tudo isto se passa no Portugal real, no nosso país, porta ocidental da Europa, na capital do país, na Europa. O Bairro do Padre Cruz é um microcosmos assustador, de onde sairá o futuro do nosso país (há futuro ali?), onde se vive encurralado entre paredes meias a mais desgraça e desalento. Mas nem por isso se vive uma tragédia inevitável ali, há sempre um sentido de esperança, há sempre amor e também humor, perante estes retratos únicos da vida.
E muito haveria para dizer sobre Sangue do meu Sangue mas nada seria suficiente. Daí que este é um filme para ser visto, revisto e assimilado. Uma obra-prima, o melhor filme de João Canijo, um dos grandes filmes portugueses de sempre.
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Tiago Ramos, splitscreen



REPORTAGEM (INCLUI DECLARAÇÕES DE REALIZADOR)

Admitimos que será desagradável iniciar uma reportagem com uma palavra que nos está a faltar. Há qualquer coisa de especial no ambiente, mas não queríamos repetir o adjectivo em assumida demasia, no super-lead acima. Podíamo-nos socorrer do inglês para dizer exquisite, mas o livro de estilo não permite, ou dessa misteriosa língua basca, cheia de "zês" e "kapas", - berezia - mas ninguém, a não ser os próprios bascos, entenderiam. Por isso, resignamo-nos à redundância, e à "especialidade" de conversar com o realizador João Canijo, e as suas três actrizes Rita Blanco, Anabela Moreira e Cleia Almeida a propósito de Sangue do Meu Sangue, naquela Bahía de La Concha, uma marginal pedonal à Copacabana, mas muito europeia, mais francesa do que espanhola, cheia de sol e maresia. Há qualquer coisa de... especial (que remédio, às vezes são mesmo as palavras que nos escolhem a nós). No impecável urbanismo, na arquitectura da cidade (uma das mais estudadas nas universidades a nível mundial), na clemência da temperatura das águas, aquecidas por uma corrente do golfo que passa por ali no Mar da Cantábria, no Rio Urumea sacudido pelas ondas, nas pessoas que passam, onde até os velhos parecem felizes.

Uma companhia de bailado faz o seu ensaio na areia, num palco delineado com redes de pescadores. João Canijo discorda, será antes uma aula de expressão corporal, "os bailarinos não têm corpos assim", ele sabe que é especialista e professor, e não se deve discutir com especialistas - só com amadores. E entretanto passam surfistas, passam banhistas, passam cidadãos a fazer jogging, passam ciclistas, passam cinéfilos de todo o mundo deste festival quase sexagenário, passam pais que levam à frente carrinhos com bebés louros, passam imensos cães - aliás, a cidade deve ser o paraíso dos veterinários, há uma intensa ratio canina per capita, e, no entanto, nem um dejecto no chão. E, às tantas, passam também Aristóteles, Platão, Schopenhauer, Matisse, José Gil, Cassavets, Mike Leigh, e Steve Jones, o biólogo autor de Almost Like a Whale, uma reescrita da Origem das Espécies de Darwin, que explica geneticamente o que Freud explicava sexualmente... Todos eles convocados pelo realizador quando fala do seu filme, já selecionado para os festivais de San Sebastian, Toronto, Rio de Janeiro, Coreia, Miami ("parece que o critério é serem todos festivais à beira de água", comenta o produtor Pedro Borges) e duplamente premiado na 59ª edição do festival espanhol, com o prémio da crítica internacional e uma menção honrosa da TVE (o que lhe permitirá passar na televisão estatal espanhola). O filme foi escolhido para a prestigiadíssima selecção oficial (a principal) de entre 2 165 candidatos. Cerca de 155 mil espectadores espalham-se todos os anos pelas 21 salas da cidade, pelas 631 sessões e duas centenas de actos paralelos, ao longo dos nove dias e noites - "a semana mais glamorosa da cidade", dizem. E até há uma passadeira vermelha, mas nem esta consegue ser pindérica.

Nesta edição, incluiu-se uma secção nova, só com filmes sobre gastronomia, não fosse esta a cidade com maior concentração de restaurantes por metro quadrado classificados com estrelas Michelan. Na Câmara Municipal uma tela orgulhosa: "Iortu Dogu!", ou seja "!Lo Hemos Conseguido": a candidatura a capital europeia da cultura 2016.

"Este é um filme de gajas", diz João Canijo, como se com este comentário condensasse o seu filme todo. E de certo ponto de vista - o seu e o dos actores que com ele construíram o guião - até condensa. É uma história de "amor incondicional, depois do "desamor absoluto" dos filmes anteriores, das tragédias gregas passadas num bar de alterne (Noite Escura, 2004), em que uma Efigénia (Cleia Almeida) quase que é sacrificada pelo pai Agamémnon (Fernando Luís). Depois de uma Electra transmontana (Anabela Moreira), que mata a mãe, no seu pacto de vingança com o irmão Orestes (Mal Nascida, 2007). Sangue do Meu Sangue tem duas histórias paralelas, uma de sacrifício e incesto, outra de sacrifício e violação. Só que ambos os casos não se entrecruzam, nem se comunicam, apesar da promiscuidade da casa onde as personagens se acotovelam, em que as paredes são tão finas e vulneráveis como as vidas que elas abrigam. Porque, explica Canijo, "cada um de nós olha uma forma diferente, e ninguém está a ver a nuvem" (Schopenauer). E este espírito de sacrifício, este "amor incondicional", intuitivo, sem reflexão nem hesitação teria muito mais valor se fosse passado num bairro periférico, onde as pessoas têm de se haver com a sobrevivência quotidiana e não lhes sobra tempo para outras elaborações. Por isso escolheu o Bairro Padre Cruz (sugestão da sua empregada doméstica), um bairro social do tempo de Salazar, perto da Pontinha. A câmara cedeu-lhe a casa do nº 21 do Rio Sabor, uma micro-moradia geminada, toda entaipada depois de ter servido de casa de chuto do neto de um dos iniciais moradores (cantoneiros que vieram do campo para construir as estradas para os outros). E as personagens do filme também fazem coisas para os outros. Ou cozinham para os outros (Rita Blanco), ou tratam dos cabelos e dos pés dos outros (Anabela Moreira), ou passam-lhes os códigos de barras das compras pela máquina registadora no Pingo Doce (Cleia Almeida). Como Canijo acredita que "as palavras faladas são sinais das expressões e dos afectos da alma" (Aristóteles) e que não se pode impor uma interpretação a um actor, tal como não se pode pedir a Maria João Pires que toque desta ou daquela maneira, todo este filme tem por base um processo longo, que durou dois anos de discussões, ensaios, improvisações com os actores, à maneira de Mike Leigh ou Cassavets (o processo pode ser visto no documentário Trabalho de Actor). Canijo não queria que os actores imitassem, queria que eles se deixassem contagiar pelo ambiente e pelas personagens. Cleia Almeida, grande revelação neste filme, foi mesmo trabalhar como caixa de supermercado e decorou os códigos do fiambre e queijo fresco ("só assim poderia adquirir aquele gesto de passar os rótulos", conta. Rita Blanco trabalhou como cozinheira, ela que está talvez a atravessar a fase mais gloriosa da sua carreira, depois de ter filmado com Haneke - e foi em San Sebastian que se reencontrou com o actor espanhol com quem forma o casal de porteiros portugueses no filme do austríaco vencedor da Palma de Ouro em Cannes, no ano passado. Ela é uma actriz especial, talvez a única em Portugal capaz de assumir os registos da comédia e do drama. E Anabela Moreira, que, mais uma vez, foi mais longe neste processo de "contaminação": "Eu pergunto-me sempre o que posso dar mais ao João, tenho esta necessidade de ir às últimas consequências". Em Noite Escura, fazia parte do "coro" de alternadeiras e fez um "estágio" num bar de alterne. Em Mal Nascida, engordou 25 quilos, rapou o cabelo, deixou crescer pêlos, foi viver com uma família transmontana, conviveu com porcos - aliás, afeiçoou-se ao porquinho Moisés. Em Sangue do Meu Sangue ela, que vive no Restelo, habitou aquela casa sufocante, cheia de ecos da rabugem e dos escarros dos vizinhos. As pessoas do bairro nem acreditavam que ela era actriz (até em San Sebastian recebe chamadas de antigas "vizinhas"), foi ela quem trouxe muitos figurantes reais para dentro do enredo, convenceu o casal de velhotes rabugentos do lado a deixarem-se filmar, e até ajudou a limpar a casa arruinada de lixo, seringas e fezes. "Quando assisti pela primeira vez ao filme, senti logo aquele cheiro da casa".

O que torna este filme especial, não é só a forma de representar "orgânica", segundo o realizador, das actrizes que são capazes de passar dos registos mais dramáticos para as conversas mais banais que envolvem gino-canesten, sopa de nabiças "que faz bem ao ómega" ou implantes mamários de água salgada. Ou todo o método de construção que lhe subjaz - único em Portugal, e provavelmente irrepetível nos tempos mais próximos.

O que também torna Sangue do Meu Sangue especial são as opções plásticas e sonoras de João Canijo. Em muitas das cenas, há sempre uma parede, um obstáculo, um corrimão que se intromete. O que aparece primeiro plano não significa que seja a cena principal. Muitas vezes, duas cenas desenrolam-se em simultâneo no ecrã, e o espectador tem de optar por seguir uma ou outra. "Como na vida, tudo se passa ao mesmo tempo", justifica. Ou como Matisse que tinha a ambição de que tudo o que colocasse num quadro tivesse o mesmo valor. E depois há a sonoplastia, perfeitamente notável. Há três, quatros "pistas" ligadas - "ou mais" sugere Canijo. As falas dos actores, os vizinhos do lado sempre sempre numa prolixidade de insultos, "carpideiros" do tempo em modo contínuo, "todo o santo dia", o barulho do bairro, as tosses, as músicas dos bailaricos e o som da televisão ligada: telenovela brasileira na casa das mulheres, filmes pornográficos e futebol em casa do "mauzão" traficante (mais um desempenho fantástico de Nuno Lopes), e o noticiário (Cavaco Silva a falar de economia) nas casa dos ricos.

"Há muita verdade naquelas mulheres", comenta João Canijo. "A falsidade está na maneira como as filmo". João Canijo continua fascinado pelas mulheres ("regra geral, elas são muito melhores actrizes do que os homens") E aqui vem a parte do cientista americano: "porque são geneticamente receptoras, têm maior capacidade de entrega". No filme as mulheres são tratadas com muito mais benignidade: têm actos heróicos, de amor, de entrega, de sacrifício. Os homens ou são seres monstruosos, ou passivos ou ridículos, ou violam, humilham, roubam e enganam. "As mulheres têm o dom da dádiva, os homens o dom de tirar", responde Canijo à pergunta da VISÃO, na conferência de impresa, após a projecção numa sala com mais de mil lugares praticamente cheia de espanhóis que se suspenderam no drama desta família, arquejaram colectivamente num momento crucial do filme e no final comentam uns com os outros: "mui fuerte". "As mulheres são muito mais interessantes do que os homens, já cheguei a essa conclusão. São seres intrigantes, nunca sei do que elas gostam, fazem-me a vida negra, têm mudanças de humor repentino uma vez por mês, o que as transforma numa espécie de monstros devoradores...". Ainda continua intrigado por este núcleo de actrizes, Rita, Anabela e Cleia - afinal foi ele que as "descobriu". Foi professor de Anabela, encontrou-se com Cleia num casting e Rita conheceu-a tinha ela 18 anos, era aluna do conservatório, e ele assistente de realização de um filme manhoso. "Apareceu-me um bichinho com o cabelo todo para a frente, mas depois pedi-lhe para dizer o texto e... ah!". Já aboliu a caracterização, a maquilhagem, agora no seu próximo filme irá eliminar os décors: "Só 'gajedo'": Um foot-movie, nove mulheres, entre elas as três actrizes, numa peregrinação de Trás-os-montes a Fátima.
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Ana Margarida de Carvalho, Visão


ENTREVISTAS A RITA BLANCO

"Sangue do Meu Sangue" acaba com uma longa panorâmica do caos urbanístico da Linha de Sintra. O novo filme de João Canijo passa-se no Bairro Padre Cruz (na Pontinha), onde vive uma família liderada por uma mãe. Nesse final, porém, o realizador vai além dos limites precisos do bairro, espreitando uma e outra vez para esse 'segundo' mundo que, não sendo um gueto, está definitivamente arredado das facilidades do centro. É como se a câmara fosse uma personagem que, sentada num snack-bar lisboeta, decidisse atravessar o balcão e fosse para casa com a cozinheira que lhe faz a sopa. Rita Blanco (Márcia) é essa cozinheira. E também a razão que leva o realizador a pisar este território. Para Canijo, sempre foi mais fácil filmar nos sítios onde a vida das pes¬soas não lhes deixa tempo para pensarem sobre as suas emoções. Mas, muitos filmes depois, Rita Blanco conseguiu 'vingar-se' de Canijo.

Tem uma marca autoral muito grande neste filme, não tem?
Não é assim tão simples. Eu e o João [Canijo] trabalhamos há muito tempo juntos... Normalmente, sou eu que me aproximo da filmografia dele. Mas sempre participei nos seus guiões, na construção das histórias, sempre escrevi os meus diálogos nos filmes dele. Desta vez, quando o João me disse que queria fazer um filme em que eu seria a mãe de uma filha, respondi-lhe que queria abordar o amor incondicional. Sabia que o tema ia ao encontro do João, porque era um assunto que já estava presente noutros trabalhos dele.

Mas desta vez teve uma implicação maior...
Eu quis que o filme tivesse um fim de esperança, porque, do meu ponto de vista, o amor incondicional só pode trazer um final feliz.

É uma crença pessoal associar o amor incondicional à maternidade?
É. O meu amor pela minha filha é incondicional. Se alguém chegar e me disser: "Olhe, precisamos de lhe tirar o coração para dar à sua filha agora mesmo. Nem dá tempo para a anestesia." Respondo: "Abra, abra, tire à vontade, sirva-se!" Em "Noite Escura" [de Canijo], por exemplo, havia uma mãe que levava a filha à morte...

Isso é impensável para si?
Totalmente. Por isso ainda me agradou mais fazer esta personagem. Precisei desta redenção. Queria mostrar que o amor incondicional é mesmo incondicional. A mãe [de "Sangue do Meu Sangue"] prefere perder a filha, e o amor dela, do que permitir que ela saiba que cometeu incesto. Foi a mãe que deu azo a que a situação pudesse acontecer, e por isso é levada às últimas consequências. O amor incondicional só aparece em situações extremas.

É uma personagem heróica?
É uma mulher com uma inteligência instintiva maternal. Ao guardar o segredo, ela mantém a sanidade mental da filha.

Parece inverosímil guardar um segredo tão importante para sempre...
Ela aguenta. Acredito que, se eu tivesse cometido um erro assim, levava o segredo até ao fim para não magoar mais ninguém. Todos temos segredos para levar até ao fim, para não magoarmos os outros. Não temos?

Foi também a Rita que conseguiu que Canijo fizesse um filme em que as mulheres são mais fortes do que os homens?
Já havia mais mulheres fortes noutros filmes dele. O que acontece aqui é que as mulheres são em maior número, e isso tem a ver com as preferências do João. Mas as mulheres não são mesmo mais fortes? As mulheres têm uma capacidade inacreditável de estar em vários sítios ao mesmo tempo. Gostava de ver um homem a trabalhar o dia inteiro e a seguir ir tratar dos filhos e da mulher, que chegou a casa cansada: pôr a loiça e a roupa para lavar. E levantar-se no dia seguinte, às seis da manhã, para ir deixar os filhos à escola e ir trabalhar... Não é fácil! São as mulheres que fazem isso, e mal! Porque elas é que educam os homens.

Os homens, neste filme, são todos uns tontos...
Um deles é até muito fraquinho... Mas acho que o que faz de meu companheiro, o Nini [Fernando Luís], é encantador, porque sabe estar ao lado da Márcia, sabe ajudá-la sem a pressionar.

Há, portanto, um homem projetado, ideal?
Há um homem possível, um homem que pode amar as mulheres; mas que nós não queremos. É o Nini.

Até o Nini precisa de ser guiado...
Todos os homens precisam de mulheres que os guiem. Começa na infância, não é? No fundo, o filme é um jogo entre homens e mulheres, no qual as mulheres são mais fortes, o que corresponde à verdade. É muito raro os homens serem mais fortes do que as mulheres. Parecem mais fortes quando são giros e quando são difíceis, porque vão para a guerra, e nós adoramos isso. A questão é: será que nós, mulheres, queremos ser felizes? As mulheres podem ser mais facilmente felizes sozinhas, aceitam melhor a solidão. Esta Márcia aguentava-se bem sozinha. Fui eu que a fiz do princípio ao fim, e por isso o sei; mas ficar sem a filha já era um rude golpe.

O processo de construção do filme foi longo; no seu caso, trabalhou como cozinheira; os ensaios foram longos... Este processo deu-lhe mais gozo?
Trabalhei em três restaurantes por períodos curtos. Descascava batatas, porque queria saber qual é o cansaço, que dores é que dá. Os outros atores fizeram a mesma coisa, foram para o supermercado... O processo ajudou-me a dominar o que faço. Gosto de participar na parte da construção do todo.

Há aí uma encenadora em potência?
Não. Há uma atriz. Se um dia me apetecer fazer um espetáculo, faço-o. Não me apetece ser realizadora, mas quero ser atriz que pensa. O facto de ter sido eu a construir parte da história não me faz realizadora.

Foi o melhor trabalho da sua vida até agora?
No cinema, sim. Foi aquele em que pude ir mais longe. Custa-me dizer isto, porque gostei muito de outros papéis. Mas neste tive mais espaço e mais tempo para trabalhar. Consegui fazer aquela coisa redondinha onde não há um som ou gesto errados. Márcia é a minha personagem que tem mais rigor.

E também é o tema que mais lhe agrada?
O das mães? Sim, é o das mães.

O que é mais importante: o ser mãe ou o amor incondicional?
O ser mãe.

Mesmo que seja uma má mãe?
Todas nós somos também más mães. Não há mães perfeitas.
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Cristina Margato, Expresso



Olhamos para a mulher de "Sangue do Meu Sangue" a tentar resolver a sua vida através da vida dos outros e percebemos que o corpo a quem demos o nome de Rita Blanco existe para lá da imagem que dele fizemos. Esta mulher, a Márcia do filme de João Canijo, é uma mãe pragmática, que não se tolhe perante o que de assustador possa acontecer ao seu núcleo familiar - o incesto - que ela tem como uma fortaleza contra tudo e todos no bairro Padre Cruz, Lisboa.

Rita Blanco é essa mulher, discurso e corpo construídos à margem de uma imagem pública que sempre a viu como um corpo estranho. E nunca ela foi tão "de dentro" como neste fabuloso filme de Canijo, a distribuir o jogo, a jogar no limite para nunca se perder. A ser espectadora e actriz da sua própria vida. A brincar com ela. À porta de sua casa uma imagem em tamanho natural, recortada em cartão, restos de um anúncio a um detergente. O post-it onde a filha escreveu "Amo-te" ainda resiste às pancadas que lhe dão, no meio da cara, quando se toca à campainha. É esse gesto de permanente desmontagem que a persegue.

Vimos Rita Blanco, hoje 48 anos, de pés suspensos em "Filha da Mãe", 1990. Agora parece brotar do mais duro dos chãos. "Quis sempre falar das pessoas", diz-nos, desarmando as imagens pré-feitas que possam existir e que sempre tentaram perceber, quando não mesmo limitar, o modo como circulou da TV para o teatro e da publicidade para o cinema. Rita, actriz por inteiro, só se confunde com as personagens que interpreta porque, a sustentar esse desejo de abraçar os que vê na rua, há o desejo, sincero, de perguntar como pode ser aquela pessoa. E, de filme para filme, de peça para peça, de série para série, ascende, afinal, aos céus, para ser a mais estranha das mais completas e complexas actrizes portuguesas.

Através do veículo "televisão" as pessoas conhecem-na, entra em casa todos os dias. Como responde a isso?
É ilusório. Quando sou uma personagem agradável, as pessoas gostam de mim. Quando não sou, têm tendência a partidarizar: "eu gosto mesmo de você é na vida real", etc. Se calhar posso dizer que cultivei a minha espontaneidade.

Cultivou ou construiu?
Construí. A partir de uma certa altura tem de ser uma construção, o que não quer dizer que seja menos espontânea ou sincera. Terei sido naturalmente espontânea e tive sempre facilidade em me expressar. Quero continuar a comunicar como sempre comuniquei. Quis construir uma ligação com as pessoas. Não posso ser a Rita no meio da rua, mas sou a Rita que eles imaginaram, e que eu também imaginei.

Que Rita é essa que as pessoas vêem? Há actores sobre os quais uma pessoa levará uma ideia pré-definida quando vai ver um filme ou uma peça.
Mas espero surpreendê-los. Isso terá sido mais verdade quando estava a fazer de Rita Blanco. A maior parte dos actores só se expõe enquanto actores. Aquilo que procuro é que se reconheça aquela pessoa, para além do passado da personagem. Acho que os actores têm de ler muito e de ver muito, [para que] quando chegam aos palcos, ou aos filmes, ou à televisão, [o demonstrem], apesar de a televisão não ter espaço para personagens elaboradas. Não quer dizer que as pes¬soas vão ver a Rita Blanco, mas sabem que aquele actor que interpretou aquilo deve ter tido um passado que o fez fazer aquelas escolhas.

A televisão faz com que os actores sejam mais preguiçosos?
Não há espaço de trabalho. Ninguém pode construir uma personagem escrita a traços rudes e interpretada a 300 à hora. Uma telenovela não pode ter textos muito bons a não ser quando se fazem adaptações. Até [mesmo] o processo de trabalho: imaginemos 20 cenas num dia no mesmo décor, ao fim de dez a fazer a mesma coisa acabamos por enlouquecer.

Acha, então, que é uma contradição inerente aos actores da sua geração, uma "estratégia de sobrevivência", a necessidade de ter de aparecer.
Não, eu gosto muito desta frase maçadora: "o homem e a sua circunstância". Não estou nada arrependida de ter feito televisão. Disponibilizou-¬me para uma velocidade inacreditável. Diverti-me imenso a fazer [o programa de sátira na SIC] "A Noite da Má-língua" [1994-1997], e isso só me levou a ser mais trabalhadora, a ler jornais, a informar-me. Tem interesse enquanto actriz? Com certeza, sou, primeiro que tudo, pessoa e se não for uma pessoa nunca poderei ser uma actriz.

Tenho dificuldade em entrar em projectos onde não me divirta nada. [Entro num projecto] porque gosto de duas ou três pessoas que lá estão ou porque é um desafio. Reajo mais depressa do que a maior parte das pessoas, e isso tem a ver com a escola da televisão. Dá-me prazer mudar os textos que me dão no momento. Descobri, à conta disso, que nunca direi o mesmo texto em televisão ou em cinema, sob pena de não me ouvirem. Se as pessoas não souberem o que vou dizer têm de me ouvir. É a nossa obrigação enquanto actores.

Em ficção, a coisa que mais gostei de fazer foi o "Conta-me como foi" [série para a RTP passada nos anos 60 e 70]. Tinha um papel que me foi grato, e que me deixava brincar com aquilo de que mais gosto, a literatura. Divertia-me a procurar expressões do Norte, da minha avó, coisas do Eça [de Queirós]. As pessoas estavam habituadas a que eu fosse um bocadinho agreste, e gostaram de me ver a fazer de boa mãe, mulher esforçada, mulher humilde.

Há qualquer coisa na sua figura nessa série que a torna parte da mobília. Mas em "Filha da Mãe" [João Canijo, 1990], a Rita era, logo naquele primeiro plano com os pés suspensos, alguém que é estranho, que surge pendurado. Em "Sangue do Meu Sangue" a sua relação com a terra não podia ser mais forte: é a pessoa que impede que haja melodrama.
A grande maioria das deixas ditas por mim nos filmes do Canijo foi trabalhada com ele. Começou logo no primeiro filme, "Três Menos Eu" [1988]. As mulheres são mais presentes nos filmes dele, os homens aparecem cada vez menos. Ele tem uma ideia terrível das mulheres. Tentou moldar-me a uma imagem de pessoa quase sem sexo. Era a maneira como ele me via. O João construiu uma imagem para servir aquela actriz, como se fosse um elfo. Não é um rapaz nem uma rapariga, é uma fusão dele com as mulheres.

Ou seja, diz mais sobre ele do que sobre si.
Ele queria isolar-me do mundo. Eu podia fazê-lo e fi-lo. Estou cá para o servir.

Todos os actores têm uma filmografia, mas não quer dizer que todos tenham obra. Encontra essa obra?
O Canijo quer mulheres de bairros e sofridas. Vou directa e "facilmente" a essas personagens. Há pessoas que acham que sou uma mulher sofrida. Estou muito próxima do João Canijo por várias razões: crescemos intelectualmente os dois, íamos juntos ver os mesmos filmes, ler as mesmas coisas, ver as mesmas exposições. Quando fiz "Alentejo sem lei" [série de televisão, 1990], aquilo já não fazia sentido e afastei-me. Há actores que são mais moldáveis do que eu. Eu preciso de confiar imenso nas pessoas e que confiem em mim, deixando-me fazer o que quero. E volto ao [encenador] Luís Miguel Cintra. Eu de onde venho volto sempre lá, porque são pessoas que me reconhecem e que reconheço. [Rita BIanco estreou-se no teatro em 1983 em "Mariana espera casamento", no Teatro da Cornucópia]

Canijo, Botelho e Luís Miguel Cintra: consegue perceber o que querem de si?
Querem coisas diferentes. Mas, penso, acreditam que ainda possa surpreendê-los.

No caso de Luís Miguel Cintra, se pensarmos nas personagens que interpretou em "Sangue no pescoço do gato", Fassbinder [2007], "Miserere" [2010] ou "A Cacatua Verde" [2011], de Schnitzler, são também elas corpos estranhos que surgem e passam por uma descoberta, de revelação e de transformação. "Miserere" [a partir de "Auto da Alma", de Gil Vicente] talvez seja o mais evidente: com a materialização de um falso ídolo, Amy Winehouse, como corpo estranho, essa alma errante.
Foi a imagem de partida. Ter-me-ia sempre repugnado imitar alguma coisa. Mas ali, na primeira reunião, vi a Amy, mesmo que depois não correspondesse com essa imagem. A fragilidade física, perdida, é ingénua e sincera. Aquela rapariga expunha-se imenso, da pior maneira ou não. O Luís Miguel deu-me todo o espaço do mundo, que eu preciso. Se não me deixam pensar no que vou fazer, baralho-me.

Acredita em figuras tutelares? Houve a família do Herman José na televisão, há a do Luís Miguel Cintra no teatro, a do João Canijo no cinema...
Interessa-me trabalhar com poucas pessoas. Isto é uma arrogância inacreditável, enfim... é a minha limitação, uma delas. Eu admirava o Herman e fui lá para aprender. No caso do João não foi a mesma situação. Ele não funciona como meu tutor, mas como parceiro. Tive várias figuras que me ensinaram muitas coisas. Também só pude estar com aquelas pessoas porque andei no Liceu Francês, o que fez com que reconhecesse a cultura francesa, que era próxima de nós. O Jorge Silva Melo falou-me de coisas que para mim foram importantes. O João Canijo obrigou-me a trabalhar imenso. É viciado em trabalho. Fez-me bem porque sou a rainha da preguiça. Forcei-me tanto que agora no panorama português pareço uma pessoa trabalhadora.

Quando decidiu fazer a telenovela "Tempo de Viver" ...
Eu não decidi, fui processada e foi a paga. Foi a única telenovela que fiz na vida e fez-me perceber que não podia fazer telenovelas. Fui processada por uma produtora porque tinha abandonado um projecto antes de ele ser concretizado, visto que não tinha concordado com a situação, e andámos anos... foi uma situação chata, ficou acordado que eu entrava numa telenovela e ficaria pago o meu castigo. Fi-lo e por acaso vim a trabalhar anos mais tarde com a pessoa por quem tinha sido processada e depois até ficámos a dar-nos muito bem.

Falávamos de telenovelas porque em várias cenas de "O Sangue do Meu Sangue" há uma televisão por trás a mostrar as telenovelas. Um espectador que a viu nessa telenovela e a pode ver em "Sangue do Meu Sangue" pode proceder a uma identificação: volta a ser uma mulher que conhece a realidade onde está e trabalha o melhor possível com ela e tenta desenvencilhar-se o melhor possível. Este tipo de personagens que terão a ver com a tal biografia do actor, uma genealogia, uma certa família.
Sim, e tenho muito gosto nisso. São todas da minha família. Quando estou a trabalhar não penso em nada, começo a idealizar com a pessoa que está ao meu lado, por isso é que digo que só posso trabalhar com poucas pessoas, porque tenho de ter confiança total. Ou seja, que haja uma comunhão e que não seja só eu a servir uma pessoa, que nos sirvamos uns aos outros.

Falam-me em figuras tutelares, eu falo de pessoas com quem sinto cumplicidade, e que também sentirão por mim. Acho que tem mais a ver com isso. Que eu aprendo coisas interessantes? Sim, que lhes dou algumas coisas? Penso que sim, espero que sim.

Voltando a "Filha da Mãe" e a Canijo. Disse que em "Alentejo sem Lei" houve um momento...
Passei-me, até lhe atirei uma cadeira à cabeça [risos]. Precisava de evoluir e que as personagens [se] abrissem. O João estava naquela carreirinha e eu ia também, mas já me estava a afogar. O João foi criando essa imagem e cristalizou-a. E eu já não podia mais, estava a crescer, já tinha lido mais 50 livros, já tinha não sei quantas vivências. Então, as personagens queriam alargar e não estavam a ter espaço. Tivemos uma zanga, e fui apanhar ar e trabalhar com outras pessoas: o Luís Miguel Cintra, o [João] Botelho, o Manoel de Oliveira, o [João] César [Monteiro]... quando voltei já não havia aquela cristalização, até porque o João [Canijo] me tinha visto trabalhar noutros sítios. A partir daí foi possível continuar. Mas deixem-me dizer uma coisa: eu, que gosto muito dos filmes do João Canijo, nunca faria um filme com ele.

Então?
Não tem nada a ver comigo. Eu nunca falaria sobre aquilo. Se fizesse um filme, não faria aquilo. Saúdo-o completamente.

Mas quando está a ajudar a construir os diálogos, está a ajudar a construir que universo?
Estou a juntar o meu ao dele.

Quando regressou a Canijo, ganhou um poder. Já não é como na primeira fase, é outro tipo de confronto...
É, talvez. Mas sempre houve esse confronto. Lembro-me desde o primeiro filme de não concordar com nada. Sempre nos confrontámos imenso. E [quando digo que] nunca poderia fazer um filme dele não é por gostar ou deixar de gostar, é porque nunca me passaria pela cabeça.

Este filme começou com uma ideia sua, a de, por uma vez, as coisas não acabarem mal...
Uma ideia minha, mas o João deu-me a premissa "tu és a mãe e esta é a filha"; e eu disse: "quero falar sobre o amor incondicional, temos andado a falar disso e eu quero ir mais longe"; e ele: "sim, sim, eu também quero. Ah, é verdade, é no bairro Padre Cruz". E é assim, percebem? Construo a história no bairro Padre Cruz, mas é um filme dele sobre aquelas pessoas.

No seu regresso a Canijo, passa uma sensação forte de quem já não está com os pés no ar como em "Filha da Mãe" ...
Mas isso tem a ver com o que sou. Gosto imenso das pessoas. Quero estar mesmo próxima das pessoas e falar sobre as pessoas. Sabem porque leio? Para ser actriz, viver aquelas vidas todas. Todos os dias me comovo com as pessoas, com a fragilidade, com a solidão... as pessoas estão muito desprotegidas. Às vezes vou no carro com a minha filha e digo: "Viste?". E ela: "Oh, não...não vais começar a chorar outra vez, pois não?". As pessoas valem muito a pena, eu só sou actriz para falar sobre as pessoas.

Parecemos um bocado obcecados com a ideia do corpo e da pertença a um espaço, um território. Rita Blanco é um corpo que faz parte da mobília, no qual nos projectamos e identificamos...
E que assim se pode moldar a várias coisas. E as pessoas não ficam agarradas a uma imagem, como vocês diziam...

Quando se entra numa sala de cinema ou teatro, não se vai virgem. O que acontece é que no seu trabalho com Canijo há uma releitura de coisas que faz noutros sítios...
Sempre. Porque sou sempre eu. E não me quero abandonar. Se não perco-me.

No fundo interessa-lhe ser fiel a uma certa biografia enquanto actriz.
Sim, sem dúvida.

Mas há coisas que são trabalho e há outras que são biografia?
Não, são todas a minha biografia. Por exemplo, vou fazer uma série sobre a maternidade, as personagens são mais lineares, mais esquemáticas... e eu sei porque o vou fazer, porque es¬tão lá pessoas de que gosto... isso também tem a ver com a minha biografia. Eu só trabalho hoje com quem faz parte do meu passado e da minha vi¬da; o resto não me interessa. Por exemplo, trabalhar com [Michael] Haneke ["Amour", com Isabelle Huppert e Jean-Louis Trintignant] foi engraçado, porque eu gostava do imaginário dele. "Reconhecia-me" naquela cabeça. Numa entrevista dele, que vem com o DVD do "Laço Branco", as pessoas podem dizer que ele parece infantil, e eu adoro isso, porque acho que está muito trabalhado e ele sabe exactamente o que quer. De repente percebi porque é que ele me tinha escolhido. Pode ser uma ilusão minha, mas houve ali uma insistência dele, até ao fim, mudando as coisas para que eu pudesse fazer o filme.

Acha que ele a reconheceu?
Ele percebeu que eu percebia. Aliás, lembro-me de dizer, de forma totalmente natural: "tenho muito gosto em trabalhar consigo, se tiver gosto em trabalhar comigo". Acho que ele percebeu que eu estava a ser profundamente sincera. E fazer o papel de uma porteira, papel pequenino, era só para trabalhar com ele e pelo gosto de cinco minutos com o Trintignant, que é um homem que faz parte do meu passado.

No documentário sobre "Sangue do Meu Sangue", "Trabalho de Actriz, Trabalho de Actor" [lançado em DVD no dia 2 de Outubro, dia em que está marcada sessão no Teatro do Bairro, em Lisboa, com a presença dos actores e do realizador], a Rita é aquela que distribui o jogo.
Pois, porque tenho a tendência para que as minhas ideias sejam aceites (risos). Mas também sempre disponível para os outros dizerem o que acham, obviamente, desde que eu perceba (risos).

Os dois anos de ensaio foram mesmo necessários? O filme não teria sido o que é se não tivesse existido aquele período?
Não, não teria sido o que é. Podia ter sido melhor ou pior, mas não teria sido aquilo. Teve a ver com o conhecer melhor as pessoas, reconhecermo-nos todos uns aos outros e àquele bairro, trabalharmos todos com ideias diferentes...

Há pessoas que engordam, que emagrecem. Põe essas coisas como limite? Por exemplo, não foi viver para o Bairro do Padre Cruz na sua fase de pesquisa...
Por várias razões. Primeiro, porque achava que não era necessário. Depois, tenho a minha vida, que é para mim muito estruturante. Se estiver muito tempo sem ver a minha filha, corto os pulsos. Eu vi durante muitas horas aquelas pessoas a falarem sobre a sua vida. Além disso, não queria copiar nenhuma delas, queria construir a minha Márcia. Íamos para o bairro todos os dias e o facto de não ter dormido lá não quer dizer que não conhecesse aquilo. Não se esqueçam que tenho 48 anos, já reconheci muitas pessoas próximas daquilo. Portanto, não era necessário dormir ali. É muito importante para mim que a personagem seja uma construção intelectual. Quero fazer meu olhar sobre essa mulher. O divertido de ser actriz é poder ter uma série de vidas, sem ter de as viver.

Quando, depois de trabalhar no restaurante, reproduz as acções que aprendeu, está a interpretar o descascar das batatas em vez de estar a descascar batatas?
Sem dúvida. Se me perguntarem se eu podia trabalhar num restaurante, eu dizia que não. Eu "apanhava" as coisas que achava que eram importantes para construir a personagem. E isso é fazer "triagem" , que cada actor faz à sua maneira.

Representar é um processo mimético?
Não, é meter tudo dentro de um saco e depois separar até tudo fazer sentido e não precisar de pensar mais nisso. Fui eu que construí a personagem, portanto ela estava sempre ao meu serviço. Eu é que sabia o que era importante para mim. Andei perdida muitas vezes, mas sabia onde queria chegar e do que queria falar.

E no filme rapidamente construímos a primeira história, a da mãe e da filha.

A mãe achava que se a filha (Cláudia, interpretada por Cleia Almeida) não soubesse que estava a ter uma relação de incesto não havia incesto. Preferiria perder o amor e a consideração da filha a que a filha perdesse a vida dela. Ainda que esta personagem não seja uma mulher que pensa demasiado sobre as coisas, é uma mulher prática que pensa: "não, isto tem de se resolver".

Mas porque é que essa mãe não resolve o problema do filho [Joca, interpretado por Rafael Morais]?
Ela dá-lhe amor em casa e deu-lhe todas as possibilidades que deu à outra filha; ele não as aproveitou. Ela não pode destruir a vida da família por causa disso. Ele em casa pode estar, nas condições que ela impõe: respeitar os outros, trabalhar para contribuir para a casa e não estragar a vida aos outros. "Quem não está bem, muda-se" é a opção desta personagem. Ela ama o filho, mas ama o núcleo; ela sabe, porque é uma mulher prática, que o filho pode destruir o núcleo e isso ela não pode permitir.

Eu acredito imenso na satisfação e na possibilidade de ser feliz e nesta personagem pude aplicar isso. É uma mulher sã, que tenta salvar coisas muito complicadas para que as pessoas possam viver as suas vidas.

Fomos construindo as personagens à frente uns dos outros e em função uns dos outros. Daí eu às vezes, por ser mais "crescida", notar que uma característica ou outra podia fazer perigar o todo. E aí eu dizia: "Alto! Espera aí. Isso pode ser muito giro para a tua personagem mas não cabe aqui".

Ou seja, foi uma "mãe leoa" no argumento? [risos] Existe competição entre actrizes?
Se eu sentir isso torno-me violenta. Mas não sou muito competitiva. No fim, posso pensar: "estive tão mal e os outros estiveram tão bem", mas enquanto estamos a trabalhar não. Sou é muito defensora das minhas ideias. Perguntei ao João: "Achas que sou egoísta?", e ele respondeu: "Não. Tu és, das actrizes com quem trabalhei, a menos egoísta" . Sou vaidosa e infelizmente ainda não consegui vencer isso; passo a vida a lutar contra o meu ego.

A Márcia tem de saltar por cima de tudo o que possa ser uma ética, uma responsabilidade, ou um amor incondicional, para fazer sobreviver o seu núcleo.
Sim. É uma mulher que quis ter um filho sozinha, porque tinha achado aquele rapaz muito giro, mesmo sabendo que não era para ela. Construiu tudo para que a filha pudesse sair dali e tivesse uma vida porreira. Amava-a ao ponto de ser amiga dela, de desejar o melhor para ela. Pensa em como vai resolver o problema com a filha, sem atrito e seguindo com a vida, porque não há outra hi¬pótese. É uma mulher honesta; tem a ver com a Margarida do "Conta-me Como Foi", que também é honesta mas devido ao salazarismo e ao ser português - que é ser honesto, cumprir, trabalhar e tentar construir um futuro... Eu quis sempre construir famílias portuguesas. Querem o quê? Sou portuguesa...

Todas as mulheres que tem interpretado têm uma relação com o espaço envolvente e zelam para que o espaço se mantenha...
Sim, sendo que têm opções diferentes. A da "Noite Escura", que é mais saloia: é uma "bimbalhona"), faz uma coisa horrível: como não conseguiu ser ar¬tista, quer que a filha apareça na televisão e obriga-se a esquecer que isso pode provocar uma desgraça à filha; projecta-se na miúda e o sonho torna-se mais importante do que o amor. A Márcia é o contrário. Está disposta a tudo para que a filha seja feliz.

A propósito de "Conta-me Como Foi"... Vieram cá os espanhóis, porque a série [original espanhol] estava a ser um sucesso. Entrevistaram os actores. Perguntaram-me sobre o facto de a Margarida [Mercedes, no original] ser uma mulher submissa. Eu respondi que não podia representá-la com castanholas. Isto porque a personagem original é exuberante. Mas sabemos que, à época, não éramos assim; as mulheres tinham de ser sub¬missas, sob pena de serem aniquiladas. O que eu achava graça nesta personagem era a inteligência dela; ela conseguia levar a água ao seu moinho, ser sempre a matriarca, mas sempre na forma da mulher submissa que es¬tá ao lado do marido. Tem uma cons-ciência do seu lugar que consegue ultrapassar sempre, porque ela quer ter o seu emprego e um negócio e is¬so é duro de adquirir.

Em relação à Márcia... Há todo um trabalho consciente de ver "sujidade" na personagem. Isso é para a tornar mais real ou é porque não é possível de outra forma?
É para a tomar mais real. É porque ela é assim. Às vezes via imagens dela e pensava: "porque é que eu estou tão feia?". Mas não consigo fazê-las de outra maneira; saem sempre horrendas. No "Conta-me..." não era sempre assim porque a Margarida fazia as suas próprias roupas e gostava de moda. Eu sempre quis construir pes¬soas, sempre. Quis sempre que as personagens fossem pessoas que pu-dessem fazer rir ou chorar, que tivessem um lado comovente, que é o que eu vejo nas pessoas de todos os dias, principalmente quando acontecem desastres e as pessoas ficam totalmen¬te baralhadas e "despidas". Eu quero que a realidade fique mais real.
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Tiago Bartolomeu e Vasco Câmara, Público, 30/10/11




Realização: João Canijo
imagem: Mário Castanheira
Som: Olivier Blanc, Ricardo Leal, Gerárd Rousseau, Elsa Ferreira
Interpretação: Rita Blanco, Anabela Moreira, Cleia Almeida, Rafael Morais, Marcello Urgeghe,
Nuno Lopes, Beatriz Batarda, Fernando Luís, Teresa Madruga, Teresa Tavares, Francisco Tavares, Wilma de Brito

Director Artístico: José Pedro Penha Lopes
Direcção de Produção: Ângela Cerveira
Montagem: João Braz
Origem: Portugal
Ano: 2011
Duração: 140’
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