4ªf, Sede, 21h30: «Deslumbrante como um fogo-de artifício. Um filme a descobrir e a admirar.»

UM dos filmes vividos por David Gilmour e o seu filho em Clube de Cinema (livro que foi apresentado por Graça Lobo).

Um dos mais marcantes filmes dos anos 90. De sempre.

Entrada livre.

Wong Kar-Wai precisou de descansar. Ashes of Time foi filmado no mesmo ano e o cineasta chinês estava de rastos pela construção desse épico de artes marciais e daí nasceu este Chungking Express, produzido em tempo recorde: 23 dias. E de facto, os prazos de validade dão o mote à história. Se o amor tem um prazo de validade, então que dure dez mil anos.

Wong Kar-Wai é o cineasta mais lírico e romântico de sempre. Tal como em suas outras obras, aqui o que vemos é poesia no seu estado puro, é a poesia fílmica, um sentido estético perfeito e sublime, mas que não subverte sequer a mensagem que tem para transmitir. É o poeta do amor focado nas relações interpessoais, um excelente contador de histórias, um perpetuador da história de amor de qualquer uma das suas personagens. O que ele quer é precisamente o que nós também queremos e sentimos: que a história seja nossa, que ali estejamos nós, que nos identifiquemos.

Mas curiosamente e não obstante obras belíssimas como In the Mood for Love ou 2046 que são autênticas odes ao amor, Chungking Express é precisamente o filme mais despretensioso, sintetizado e despojado e que revelou ao mundo aquilo que o cineasta é hoje em dia. Porém, nunca mais conseguiu trazer um romance tão fresco e simples como este. Isto porque se em obras posteriores, o sentido estético acabava por camuflar a história do filme, neste Chungking Express temos um balanço perfeito entre a estética e o argumento.

As personagens do filme não são o mais importante, todas elas contam uma história, mas são apenas metáforas da poesia filmada por Wong Kar-Wai. Mas são também elas bastante completas. Neste caso, temos duas histórias paralelas sobre o amor e a dor da separação. Um relacionamento com data de validade como as latas de ananás que a personagem insiste em ingerir, mas que ao mesmo tempo é uma história de um novo amor, uma paixão por uma personagem enigmática, qual Greta Garbo, numa clara referência ao cinema de Hollywood. Ou ainda a história de um amor gradual, feito de olhares despercebidos, ao som de California Dreaming.

Histórias distintas sobre o amor, filmadas não linearmente, como é usual no cinema de Wong Kar-Wai. A sua narrativa é fragmentada - tal como o poster que ilustra esta crítica - feita de pequenos momentos e gestos, quotidianos de vida. E depois temos um magnífico e electrizante retrato de Hong Kong: brilhante, frenético, globalizada, bares 24 hours open e multicultural. E o Amor confunde-se nessa cidade, também ele frenético, intenso e colorido.

Tecnicamente, não há ninguém igual a Wong Kar-Wai que se rodeou desde cedo de uma equipa de grande qualidade, mas que sem ele nunca se teriam tornado o que são hoje. Um dos casos mais flagrantes é o director de fotografia Christopher Doyle, cuja tarefa de colocar em cena a visão do cineasta chinês resulta num dos melhores trabalhos fotográficos de sempre e Chungking Express não é excepção. Ou ainda a frenética montagem de William Chang, Kit-Wai Kai e Chi-Leung Kwong.

Chungking Express é uma obra de culto eterna e uma das melhores de Wong Kar-Wai. É moderna, vanguardista, mas romântica e terna. É poesia, é amor, é pureza.
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Tiago Ramos, sliptscreen


ENTREVISTA AO REALIZADOR

Finalmente em Portugal Wong Kar-wai! O Expresso de 'Chungking", obra esfuziante, é o filme que tem espalhado o culto em redor deste cineasta de Hong Kong, de 38 anos. Policias solitárias e mal amados, uma "killer" de peruca loura e gabardine, uma contagiaste empregada de um balcão de ''fast food", cruzam-se à velocidade da luz na noite de Hong Kong. O resultado são reflexos, um rasto de ''néon'' e um dos filmes mais marcantes da década.

Os óculos escuros que Wong Kar-wai não tira nem mesmo dentro de uma sala de cinema – e o máximo que faz numa entrevista é olhar por cima deles – anunciam a reserva estudada do “wonder boy”. É este filme que tem espalhado o culto em redor da obra deste cineasta de Hong Kong – não serve de caução, mas foi o filme que Quentin Tarantino escolheu para lançar nos EUA a sua distribuidora, a Rolling Thunder.

Duas histórias na noite de Hong Kong, Dois polícias e duas mulheres, os segundos em que se cruzam e disso só fica um rasto de néon. A primeira: ele é o polícia 223, ela uma “killer” de gabardine, com peruca loira e óculos escuros, adolescentes em fatos de adultos, os dois a perderem-se no densamente habitado edifício Chungking, numa das zonas mais movimentadas e multiétnicas de Hong Kong. A segunda: ele é o número 663, e fala com ursos de peluche, ela é uma desbragada empregada de um balcão de “fast food”, o Midnught Express – uma terceira história ficou de fora mas foi recuperada e já é outro filme, "Fallen Angels". Não se falte então ao encontro com este grande cineasta e com este esfuziante filme, desde já um dos mais marcantes dos anos 90.

Em "O Expresso de Chungking", cada personagem, e cada história, parece existir como reflexo de outra - o jogo pode ir mais longe, considerando o filme que fez a seguir, "Fallen Angels", como uma projecção deste.
Em "O Expresso de Chungking", a personagem principal é Hong Kong. O filme conta duas histórias que se cruzam devido à cidade e, de facto, pode dizer-se que as personagens da primeira existem como projecções na segunda. E como "Fallen Angels" foi feito como contra ponto, a partir do que era originalmente a terceira história de "O Expresso de Chungking" -depois de a ter deixado de fora, achei que ainda valia a pena contá-la -, então "O Expresso..." é uma metade, "Fallen AngeIs" a outra e juntos podem ser vistos como um filme. Assim, as personagens de "O Expresso..." também estão em "Fallen Angels", embora estejam lá ao contrário, no género ou na profissão: polícias podem ser assassinos, etc.

Filmei nos mesmos lugares, são filmes sobre a cidade. Os lugares nunca mudam, as pessoas é que mudam.


As personagens dos seus filmes falam através de vozes interiores. Elas já existem durante a rodagem, ou são postas posteriormente?
A maioria das vezes escrevo essas vozes antes da rodagem. Mas acrescento sempre mais depois da montagem porque acredito que a parte da rodagem tem que ver com o subconsciente - "Gostaria de fazer isto ou aquilo, mas não tenho bem a certeza" -, enquanto a montagem tem que ver com o consciente, com o descrever uma acção: "Porquê."

Então há algo que escapa aos actores: não sabem o que vão dizer na versão final do filme.
Gosto desse tipo de perda porque, na vida, a maior parte das vezes também não sabemos o que vamos dizer ou fazer. Não há um "script" acabado nos meus filmes, gostaria que isso acontecesse, mas estou sempre a alterar coisas. Por isso há sempre algumas referências para os actores. Para a primeira parte de "O Expresso...", a referência era "Gloria" [de John Cassavetes] e para a segunda, os musicais de Jacques Demy. A parte da mulher ''killer'' era ainda [Jean-Pierre] Melville... "California dreamin'" é uma canção muito simples, que me lembra os anos 70. Faye Wang [a empregada do restaurante de "fast food"], que é uma grande cantora e muito popular na Ásia, sabia melhor do que ninguém o que eu queria fazer passar. Às vezes é melhor comunicar com os actores sem ser por palavras. Odeio a “representação”, prefiro tirar coisas da personalidade dos actores, mudo tudo de acordo com a performance deles. Faye Wong é muito boa com os movimentos, cortei muitos diálogos da parte dela e pedi-lhe que se mexesse. Gosto de a observar em movimento.

Mesmo quando tenho um "script", não o dou aos actores. Não quero que tenham o “design" das personagens. Ao fim de dez dias começam a tornar-se as personagens sem precisarem de as interpretar.

Muitas vezes existem no plano uma personagem e uma superfície reflectora. A câmara escolhe o reflexo. Porquê?
Tem que ver com o facto de os espaços onde filmámos serem muito pequenos. Com os espelhos tudo parece maior, é uma ilusão.

Precisamente a ideia de ilusão é muito forte: as personagens são reflexos.
Pode dizer-se isso. Todos temos de nós próprios uma imagem que é uma ilusão.

De onde vêm as figuras dos seus filmes: polícias, hospedeiras, mulheres de perucas e óculos escuros?
Para mim, as personagens são uniformes. Todos usam uniformes: os polícias, a mulher com a peruca e com a gabardine. É algo muito popular nas noites de Hong Kong: perucas e óculos escuros.

Falou de Jacques Demy. É esse o cinema que vê?
Fui para Hong Kong tinha cinco anos e vivia numa área com muitos cinemas. Passei muito tempo a ver filmes muito diferentes e não sei quais os meus favoritos, estão sempre a mudar. Sei que gosto mais de “filmes sobre pessoas” do que “filmes sobre produções”. Demy e Cassavetes falam de pessoas; não são filmes, são vidas.

O director de fotografia de Chungking Express, o australiano Chris Doyle, tem uma presença decisiva. Como é que trabalham?
Temos personalidades muito fortes, e ideias muito próprias sobre o nosso trabalho. Conheci-o na altura do meu segundo filme, “Days of Being Wild”, mas foi depois disso que nos tornámos próximos. Depois desse filme, passámos três meses no deserto da China para a rodagem de “Ashes of Time”


O filme que interrompeu para rodar Chungking Express...
Sim, Chris estava a filmar “Temptress Moon” com Chen Kaige, encontrei-o em Tóquio, e como tinha três semanas livres foi trabalhar comigo para a segunda parte de Chungking Express - a primeira rodei-a com o director de fotografia do meu primeiro filme, "As Tears Go By". Depois regressou a Chen Kaige, e para “Fallen Angels" andou entre a China e Hong Kong.

Ele deixa uma assinatura nos seus filmes?
É como se fossemos músicos de jazz. Fazemos “jam sessioons": não sabemos qual é o "tema", mas tocamos muito porque nos conhecemos bem. Eu sou o “band leader". Para "O Expresso e Chungking", disse-lhe que o filme deveria ser como "California dreamin"', a canção dos Mamas and Papas. Para "Fallen Angels" fi-lo ouvir os Massive Attack. Para Chris é assim que funciona: partir da música. E o som é importante na génese dos meus filmes. "Fallen Angels" foi criado de acordo com o programa radiofónico nocturno de Hong Kong. A rádio é para mim a assinatura de uma cidade e às vezes considero-me um DJ.

Manipula as imagens como os DJ manipulam os sons ou "samplers"?
Sim.

Neste, como nos seus outros filmes, está-se sempre à beira do fim: a validade das latas de ananás, as folhas de calendário. É o horizonte de Hong Kong, 1997 e as implicações para a sua carreira?
Não é tanto o horizonte de 1997, mas o facto de na minha profissão lidarmos sempre com prazos. Quando fazemos filmes, as datas significam muito dinheiro. Temos sempre a consciência do tempo.

A minha carreira na perspectiva de Hong Kong 1997... Hong Kong foi visto como tendo uma individualidade própria, durante 30 anos forneceu entretenimento à comunidade chinesa fora da China, transformando-se na maior indústria exportadora nessa área para esses países. Depois de 97, teremos que nos considerar parte da China e considerar a China como o nosso mercado mais imediato. O que significa que teremos de trabalhar com os estúdios e os técnicos chineses e enfrentar o público chinês. As histórias terão que se passar em Pequim ou em Xangai, e teremos que conhecer a vida desses lugares. Além de que os filmes terão de ser falados em mandarim, enquanto que neste momento a maior parte do cinema de Hong Kong é em cantonês. A língua vai implicar mudanças nas personagens, é toda a perspectiva que muda. Neste momento pensamos em Hong Kong; teremos que pensar em China.

Há uma preocupação em relação à censura. Mas, se virmos bem, sempre tivemos censura: em Hing Kong a censura é o valor comercial. A indústria é muito competitiva, fazemos mais de 200 filmes por ano, há muitos jovens realizadores. Se os filmes funcionam, sobrevivemos, se não, desaparecemos.
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Vasco Câmara, Público, 12/4/1996




Título original: Chungking Express
Realização: Wong Kar Wai
Argumento: Wong Kar-Wai
Fotografia: Christopher Doyle, Lau Wai-Keung
Décors: William Chang
Música: Frankie Chan, Roel A. Garcia, Michael Galasso
Montagem: William Chang, Kai Kit-Wai, Kwong Chi-Leung
Interpretação: Brigitte Lin, Takeshi Kaneshiro, Tony Leung Chiu Wai, Faye Wong, Valerie Chow
Origem: Hong-Kong
Ano de produção: 1994
Duração: 98’



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