
A COSTELA DE ADÃO, George Cukor, EUA, 1949, 101’
Houve um tempo de glória em Hollywood. Quando a grande arte da representação era servida por belos guiões e inteligentes diálogos. Quando o humor não precisava de ser imbecil, escatológico ou primário. Quando a 'guerra dos sexos' era ao nível das palavras e das atitudes, não ao nível dos slogans ou dos estereótipos.
Houve um tempo de glória em Hollywwod. Quando a cumplicidade entre actores, marido e mulher na vida real (numa das mais belas histórias de amor que a 7ª Arte presenciou), era servida pelo wit e pela mestria de um dos maiores entre os maiores, George Cukor.
Houve um tempo de glória em Hollywwod, protagonizado pela imortal Katahrine Hepburn, uma das maiores actrizes de cinema de todos os tempos, e o seu inseparável Spencer Tracy, outro de que se tem inevitáveis saudades.
Há um tempo de glória em Hollywood, nos jardins da nossa sede, em noites de Verão. Em Junho, às 5ªfeiras. As entradas são livres, os vizinhos estão convidados a espreitar os filmes das suas janelas ou, convosco, a descer até às nossas cadeiras de esplanada, recostarem-se com uma água ou uma cervejinha fresquinha na mão, e divertirem-se, divertirem-se, até mais não.
Anabela Moutinho

Certamente o melhor filme da dupla Spencer Tracy / Katharine Hepburn, Adam's Rib é, para além disso, uma das obras primas máximas da carreira do genial cineasta George Cukor, um momento de felicidade total ao nível de Holiday e The Philadelphia Story, ambos com Katharine Hepburn. Não se pretende com isso menosprezar os filmes com Crawford, Garbo e Marilyn, mas é facto que a actriz cukoriana por excelência é Katharine Hepburn e foi com ela que Cukor levou a sua sofisticadíssima, requintadíssima arte até ao seu zénite. E como a actriz cukoriana número dois é Judy Holliday, protagonista de Born Yesterday, The Marrying Kind e It Should Happen to You, é evidente que o filme que reúne as duas deverá ocupar um lugar muito especial nas devoções que os cukorianos fanáticos oferecem ao Mestre (devoções essas que consistem, como é óbvio, em rever, rever, rever...). E o que dizer da sequência magistral entre as duas actrizes fétiche do cinema de Cukor em Adam's Rib, que dura mais de sete minutos sem um único corte? Claro que a marca do teatro é muito forte, tanto em Cukor, como em Hepburn e Holliday; e todos três gostavam de takes gigantescos, que desafiassem ao máximo o seu virtuosismo (lembre-se o jogo de cartas entre Holliday e Broderick Crawford em Born Yesterday, representado à frente de uma câmara totalmente estática, durante o qual é impossível tirarmos os olhos de Judy Holliday). Para além da contribuição destas distintas senhoras (não esquecer a fabulosa Jean Hagen), temos, em Adam's Rib, o papel que muitos consideram o melhor de Spencer Tracy, pelo que - sob qualquer perspectiva - estamos na presença de um filme que, como poucos, reúne elegância estilística, sentido cómico, sátira social e virtuosismo cinemático (de todos quantos nele participam), de modo a chegar, o mais perto que é possível chegar, ao estado, puro e simples, de perfeição.

O problema dos direitos de este ou aquele sexo acaba por ceder a outro, muito mais profundo e globalizante, de que todos os seres humanos têm direito à sua individualidade, desde que a afirmação dessa individualidade não passe pela violação da individualidade de outra pessoa qualquer (no fundo, o erro em que Doris Attinger/Judy Holliday incorre ao querer dar um tiro no marido ou na amante do marido, e que Adam/Tracy encena - é esse o termo quando finge que vai disparar sobre Amanda/Hepburn e Kip/David Wayne).

Aquilo em que assenta a comi cidade de Adam's Rib é algo que não é fácil definir. Não é só a fórmula de antagonismo e atracção mútua entre o herói e a heroína que, como na screwball comedy (exemplo perfeito: Bringing Up Baby de Howard Hawks), está na base dos efeitos cómicos do filme. Em Adam's Rib a comicidade deriva muito mais dos problemas relativos à sexualidade das personagens do que de outra coisa qualquer: desde as aventuras adúlteras de Ewell e Jean Hagen à homossexualidade mal disfarçada de Kip ("não falta muito", diz Tracy quando o compositor afirma que se identifica tanto com os problemas das mulheres que "I might even become a woman myself', feminilidade essa que lembra a personagem de Clístenes, que é gozada várias vezes nas comédias de Aristófanes), esta comédia cukoriana acerca do significado de ser macho ou fêmea (ou uma mistura dos dois: o que é afinal a "costela de Adão"?) acaba por ser uma farsa do mais puro rococó sobre a actividade humana a que Hepburn e Tracy se entregam quando, no final do filme, cai o pano e aparece a legenda "the end".
.
Frederico Lourenço, George Cukor – As Folhas da Cinemateca
Título Original: Adam's Rib
Realização: George Cukor
Argumento: Ruth Gordon e Carson Kanin
Fotografia: George Folsey
Montagem: George Boemler
Música: Miklos Rozsa; canção "Farewell Amanda" de Cole Porter
Interpretação: Spencer Tracy (Adam Bonner), Katharine Hepburn (Amanda Bonner), Judy Holliday (Doris Attinger), Tom Ewell (Warren Attinger), Jean Hagen (Beryl Caighn), David Wayne (Kip Lurie), Hope Emerson (Olympia La Pere), Eve March (Grace), Clarence Kolb (Juiz Reiser), Emerson Treacy (lules Frikkie), Polly Moran (Mrs McGrath), Will Wright (Juiz Marcasson), Elizabeth Flournoy (Dr Margaret Brodeigh), Janna da Loos (Mary), Joe Bernard (pai de Adam), Madge Blake (mãe de Adam), Paula Raymond (Emerald)
Origem: EUA
Ano: 1949
Duração: 101’
Sem comentários:
Enviar um comentário