DIA 12 DE MARÇO, AMOR, Michael Haneke, Fra/2012
FICHA TÉCNICA
Título Original: Amour
Argumento e Realização - Michael Haneke
Actores:
Jean-Louis Trintignant - Georges
Emmanuelle Riva - Anne
Isabelle Huppert - Eva
Alexandre Tharaud - Alexandre
William Shimell - Geoff
Rita Blanco - Porteira
Ano de Produção: 2012
País: França
Director de Fotografia - Darius Khondji
Montagem - Nadine Muse, Monika Willi
Som - Jean-Pierre Laforce, Guillaume Sciama
Duração :125 minutos
SINOPSE: Georges e Anne são octogenários, pessoas cultas, professores de música reformados. A filha, igualmente música, vive no estrangeiro com a família. Um dia, Anne é vítima de um acidente. O amor que une este casal vai ser posto à prova…
TRAILER: http://vimeo.com/53501663
CRÍTICA:
"Haneke arromba um apartamento, mas negoceia a intromissão.
Não podia ser de outra maneira: os vivos não percebem nada dos mortos
Quando Georges/Jean-Louis Trintignant e Anne/Emmanuelle Riva entram no seu apartamento de Paris, depois de um concerto, e espantam o medo de serem assaltados (porque descobriram marcas de esforço na porta de casa ou porque sabem dos medos que assombram outros casais da sua entourage...), o que faz, já lá dentro do apartamento, uma câmara de cinema?
Quando Georges/Jean-Louis Trintignant e Anne/Emmanuelle Riva entram no seu apartamento de Paris, depois de um concerto, e espantam o medo de serem assaltados (porque descobriram marcas de esforço na porta de casa ou porque sabem dos medos que assombram outros casais da sua entourage...), o que faz, já lá dentro do apartamento, uma câmara de cinema?
Não é essa a primeira sequência de "Amor",
essa aconteceu minutos antes, aquele primeiro plano do filme com que se
arromba, literalmente, o ecrã. Que nos diz que o cinema é sempre intruso, viola
a intimidade.
Se juntarmos a esse, aquele plano fixo do concerto
(enquadramento algo “oliveiriano”, aliás), em que a câmara está no palco e
encara os espectadores, entre os quais Georges e Anne, como se as personagens
fossem o “espectáculo”, sente-se que "Amor" começa logo com
consciência do vampirismo que por aqui se transacciona.
É isto: o cinema não resiste à tentação de arrombar
portas. Essa lucidez é vital numa era em que, aqui e ali, paira um puritanismo
que nos diz o que se deve/como se deve ou não filmar, o que faz “bem” e o que
faz “mal” - recordem-se as reacções a Nana, de Valérie Massadian (por causa da
cena da matança do porco e da actriz-criança) ou a Michael, realizado por um
ex-assistente de Haneke, Markus Schleinzer (por causa do actor-criança e do
actor-pedófilo) que parecem querer reservar para o cinema o espaço para
experiências de Spa emocional mais ou menos redentoras. Sim, o cinema pode
fazer “mal”, sim; se não fôssemos suas vítimas não estaríamos aqui...
A câmara, em Amor, está dentro do apartamento de
Georges e Anne, à espera deles, sabendo que os pode assaltar. Mas sabendo-o,
vai aprendendo a não o fazer e a estar atenta aos ritmos de um velho casal (na
nossa cabeça há um diálogo virtual, por causa da clausura e dos ritmos, a ser
travado entre o apartamento de Haneke e o apartamento do Porto de A Nossa Forma
de Vida, de Pedro Filipe Marques, vencedor da competição nacional do Doclisboa
2011). Será por essa aprendizagem que Amor é um dos filmes maiores do
austríaco, juntamente com A Pianista, outra obra em que o melodrama é a
impressão digital: é que em vez de utilizar o espectador para a sua
experiência, em vez de se interessar apenas por confirmar um resultado,
submete-se, testa-se num processo. Vai aprendendo o que fazer com a
proximidade, com a intimidade. E com o amor. E com a morte.
Quando Isabelle Huppert, que interpreta a filha do
casal Trintignant/Riva, diz ao pai - já Riva pediu a Trintignant que a ajudasse
a acabar com o seu sofrimento - que se recorda de, em pequena, entrar em casa e
ouvir os sons dos adultos a fazerem amor, o que a sossegava porque garantia que
os pais iriam ficar juntos para sempre, isso é como uma memória que o filme
aprende a construir, como uma ética, enquanto tacteia com os enquadramentos a
intimidade e esbarra num amor inviolável. Trintignant e Riva começam por
existir em campo-contra-campo (sequência do pequeno almoço, quando se dá o
“acidente”). Depois são uma parede cúmplice face à curiosidade e ao interesse
dos outros (a visita do músico: os dois juntos no plano). Finalmente, é
Trintignant, quando Riva desaparece, que se assume como guardião desse mundo, o
dos mortos, para o qual foi atraído pelos sonhos - e sobre o qual, testemunhou
ele no funeral de um amigo, os vivos têm uma aflita ignorância. Há qualquer
coisa de entronização nesse desenho. E que seja Huppert a fazer de “visita”,
não será um acaso: Huppert (O Tempo do Lobo, A Pianista) “é” também o aparato
cinematográfico de Haneke. No final somos todos “visitas” de um templo de
memória.
O que é leal em Amor, filme que começa com o cinema a
arrombar as portas de uma intimidade, é a permanente negociação dessa intromissão.
Não podia ser de outra maneira: os vivos não percebem nada dos mortos."
Vasco Câmara, Ipsilon
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