DIA 5 DE MARÇO, HOLY MOTORS, Leos Carax, França/Alemanha, 2012, 115’, M/16
FICHA
TÉCNICA
Título Original: Holy
Motors
Realização e Argumento:
Leos Carax
Fotografia: Caroline
Champetier
Montagem: Nelly
Quettier
Interpretação: Denis
Lavant, Édith Scob, Eva Mendes, Kylie Minogue, Elise Lhomeau, Michel Piccoli, Jeanne
Disson
Origem: França/Alemanha
Ano: 2012
Duração: 115’
SINOPSE
Algumas horas na
existência do Senhor Oscar, um ser que viaja de vida em vida. Ora um abastado
homem de negócios ou um assassino, ora um pedinte ou um pai de família. Está
sozinho, acompanhado apenas por Céline, uma senhora loira e alta aos comandos
da imensa limousine que o transporta.
Persegue a beleza do
gesto, do motor da acção, das mulheres e dos fantasmas da sua vida. Mas onde
fica a sua casa? Onde está a sua família? Onde e quando descansa?
TRAILER:
CRÍTICAS:
De
onde vêm os motores do título? Certamente de um tempo em que fazer um filme era
uma quimera, equivalente à glória de outrora. O sr. Oscar (Denis Lavant) fala
desse tempo, num breve intermezzo a meio de “Holy Motors”, quando a sua
jornada de trabalho ainda vai a meio. É quando ele encontra na sua limusina um
misterioso homem com a cara desfigurada (breve aparição de Michel Piccoli),
recordando que “quando eu era novo, as câmaras eram mais pesadas do que nós.
Agora, são mais pequenas do que as nossas cabeças.” Muito mais tarde, e no mais
belo gag do filme, as limusinas, finalmente abandonadas pelos seus
condutores sem rosto (a Edith Scob de “Les Yeux Sans Visage”), acendem os
quatro piscas e conversam, sonhando por melhores dias. Resumem no fundo o
lamento que o sr. Oscar não conseguiu pronunciar quando se questionou se o seu métier,
feito assim, só pela “beleza do gesto” (expressão de Godard que Carax, seu
ilegítimo herdeiro, reutiliza), ainda serve para alguma coisa. Ë então que se
ouve a frase--chave: “os homens já não querem saber de máquinas visíveis.” Se
“Holy Motors” é um filme sobre o cinema, é provável que, no mundo virtual em
que o sr. Oscar agora se encontra, já não seja visível quem o observa, se é que
alguém o observa ainda.
Não é fácil descrever o que faz Denis Lavant em “HoIy Motors”. Não me recordo de outro desempenho assim, em que um ator é tão capaz de falar do que é ser ator, transformando-se ora em mimo, ora em atleta, ora em bailarino, ora em performer de artes marciais e artista de circo, de rendez-vous em rendez-vous. O sr. Oscar será um banqueiro poderoso na primeira das suas atuações. Mascarar-se-á de velha mendiga corcunda. Será cibercriatura numa erótica coreografia com artes marciais em motion capture. Andará nos esgotos de Paris até chegar ao cemitério do Père Lachaise, raptando uma modelo (Eva Mendes) que ele levará aos ombros para o subsolo (Carax tinha pensado numa versão de “La Belle et la Bête”, com Kate Moss). Mas o sr. Oscar será também pai de família preocupado com a filha teenager, gangster que mata e é morto pelo seu próprio duplo, velho milionário à beira do último suspiro num quarto de hotel e de novo pai de família, quando a jornada acaba, num bairro social periférico, antes das limusinas se dirigirem para a garagem que está nesta foto.
Não é fácil descrever o que faz Denis Lavant em “HoIy Motors”. Não me recordo de outro desempenho assim, em que um ator é tão capaz de falar do que é ser ator, transformando-se ora em mimo, ora em atleta, ora em bailarino, ora em performer de artes marciais e artista de circo, de rendez-vous em rendez-vous. O sr. Oscar será um banqueiro poderoso na primeira das suas atuações. Mascarar-se-á de velha mendiga corcunda. Será cibercriatura numa erótica coreografia com artes marciais em motion capture. Andará nos esgotos de Paris até chegar ao cemitério do Père Lachaise, raptando uma modelo (Eva Mendes) que ele levará aos ombros para o subsolo (Carax tinha pensado numa versão de “La Belle et la Bête”, com Kate Moss). Mas o sr. Oscar será também pai de família preocupado com a filha teenager, gangster que mata e é morto pelo seu próprio duplo, velho milionário à beira do último suspiro num quarto de hotel e de novo pai de família, quando a jornada acaba, num bairro social periférico, antes das limusinas se dirigirem para a garagem que está nesta foto.
E é
ainda mais, o sr. Oscar: nos seus desdobramentos, esconde-se a persona de
Leos Carax. Isto torna-se claro no momento em que o sr. Oscar, a meio do
seu périplo, se depara com um acidente de limusinas que não fazia parte da
agenda. O protagonista encontra então uma mulher que ele conheceu. Ela é uma
famosa atriz. Concede-lhe 20 minutos
para recuperar 20 anos e
não lhes sobreviverá. E é no telhado da Samaritaine, lendário armazém comercial
de Paris, hoje em ruína, que nós estamos, à frente da ponte de Denis Lavant e
Juliette Binoche em “Les Amants du Pont Neuf’, realizado há 20 anos. Se Carax visita o seu próprio
cinema e o cinema todo nestes aller-retours, é curioso notar que, no
lugar de Binoche (para quem o papel foi escrito) surge a cantora pop Kylie
Minogue, que cantará uma canção com “essa voz saída de um corpo de elfo que é a
infância da arte” (Carax dixit). É um momento fulgurante de emoção e
fusão da vida e dos filmes. Aqui se assinala a ideia preciosa de Carax de que
fazer um filme é também saber falar, sem se notar, de uma autobiografia.
Não me parece contudo que “Holy Motors” tenda um segundo que seja para a homenagem ao cinema. Trata-se antes de provocar o espectador, convidando-o a um sentimento de partilha afetiva que parte de fonte inesperada, a do protocinema do cronofotógrafo. Étienne-Jules Marey (1830-1904), que abre e encerra o filme. Vestido de pijama, no prólogo dos trabalhos do sr. Oscar, é o próprio Carax quem descobre uma porta escondida no seu quarto, levando-nos por ela a uma sala de cinema de outros tempos, cheia de espectadores-fantasmas. Podem eles recuperar desse estado latente, acreditando em Iimusinas falantes?
Como reagir ao luto de “Holy Motors”? À sua euforia? Ao seu tremor de terra? Carax afasta-se de um casulo chamado ‘história do cinema’ para reedificar o seu mito, encontrando pelo caminho a porta de regresso que o traz de volta ao contemporâneo. Tantos filmes nessa história (veja-se o caso de “Vertigo”, esta semana reposto em cópia nova) foram diminuídos quando estrearam por exigirem uma reação imediata ao seu brio. “Holy Motors” tem esse brio. É um filme que vai ficar. Talvez não seja a morte do cinema o que aqui está em causa, antes a crença de que o seu tempo, afinal, é imortal.
Não me parece contudo que “Holy Motors” tenda um segundo que seja para a homenagem ao cinema. Trata-se antes de provocar o espectador, convidando-o a um sentimento de partilha afetiva que parte de fonte inesperada, a do protocinema do cronofotógrafo. Étienne-Jules Marey (1830-1904), que abre e encerra o filme. Vestido de pijama, no prólogo dos trabalhos do sr. Oscar, é o próprio Carax quem descobre uma porta escondida no seu quarto, levando-nos por ela a uma sala de cinema de outros tempos, cheia de espectadores-fantasmas. Podem eles recuperar desse estado latente, acreditando em Iimusinas falantes?
Como reagir ao luto de “Holy Motors”? À sua euforia? Ao seu tremor de terra? Carax afasta-se de um casulo chamado ‘história do cinema’ para reedificar o seu mito, encontrando pelo caminho a porta de regresso que o traz de volta ao contemporâneo. Tantos filmes nessa história (veja-se o caso de “Vertigo”, esta semana reposto em cópia nova) foram diminuídos quando estrearam por exigirem uma reação imediata ao seu brio. “Holy Motors” tem esse brio. É um filme que vai ficar. Talvez não seja a morte do cinema o que aqui está em causa, antes a crença de que o seu tempo, afinal, é imortal.
Jorge Leitão
Ramos, Expresso, 22/12/12
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