ATÉ VER A LUZ| Basil da Cunha| 2013 | 03.12.13 | Auditório do IPDJ, 21:30

DIA 3 DE DEZEMBRO
FICHA TÉCNICA
Título Original: Até ver a luz
Realização e Argumento: Basil da Cunha
Interpretação: Ana Clara Baptista de Melo Soares Barros, Susana Maria Mendes da Costa, José Zeferino da Cruz, Pedro Ferreira, João Veiga, Nelson da Cruz, Duarte Rodrigues
Montagem: Renata Sancho, Basil da Cunha, Emilie Morier
Som: Filipe Tavares
Fotografia: Patrick Tresch
Decoração: Carlos Baessa De Brito
Origem: Portugal/Suiça
Ano: 2013
Duração: 95’
M/16


SINOPSE
Acabado de sair da prisão, Sombra volta à sua vida de dealer no bairro da Reboleira. Entre o dinheiro emprestado que não consegue recuperar e aquele que deve, uma iguana pouco comum, uma pequena vizinha sempre por perto e um chefe de gang que duvida da sua boa fé, Sombra começa a pensar que, de facto, mais valia ter ficado dentro…

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CRÍTICA
Retrato de um bairro da Reboleira, em percentagens indefinidas de “teatro” e de “vida”, sem ceder à tentação do “documento social”, trocado por algo de mais sonhador.
Até ver a Luz é a primeira longa-metragem do realizador suíço-português Basil da Cunha, depois de um punhado de filmes de formato curto que deixaram rasto em festivais importantes mas não chegaram ao circuito comercial nacional. É um filme “de bairro”, em todas as acepções da palavra. Foi rodado num bairro da Reboleira, nos arredores, nem por isso muito bem afamados, de Lisboa, de onde praticamente só sai no fim (e para “ver a luz”), com o concurso de actores amadores recrutados no local, num processo criativo que Basil da Cunha descreveu, em entrevistas, como sendo “colectivo” - ou maneira de ser também um filme “deles”, dos habitantes do bairro. Este ponto de partida e esta atitude (querer fazer com que o filme nasça “de dentro”) aproximam-se de uma tangente a muito do que Pedro Costa fez, de Ossos em diante, com o bairro e os habitantes das Fontaínhas, e nem é difícil encontrar outro ponto de contacto (com um filme como Ossos, justamente) no tratamento do som ambiente, feito de camadas que se sobrepõem (televisores ligados, conversas, ruídos domésticos) e assim traduzem a “porosidade” das casas e dos espaços do bairro, uma textura sonora que é um dos aspectos mais conseguidos de Até ver a Luz. Até porque é um som de um realismo falsamente “naturalista”, pelo contrário muito elaborado, muito fabricado - ninguém julgue que é mera coincidência o facto de às tantas se ouvirem, de um televisor, os diálogos de um filme de samurais de Akira Kurosawa (José Luís Guerin, no seu “filme de bairro”, En Construccion, utilizava um filme de Hawks, Na Terra dos Faraós, com um propósito semelhante). 


Não é mera coincidência porque Até ver a Luz, no fundo, é um filme de “samurais” (Basil da Cunha até o descreveu exactamente assim) mesclado com filme de gangsters, encenado e representado em jeito de teatro amador, na melhor acepção do termo. Dos samurais de Kurosawa e dos gangsters do cinema americano, das “vizinhanças” de Spike Lee (e dos seus “filmes de bairro” como Do the Right Thing) e das actualizações dessas tradições de samurais e gangsters que encontramos nalguns Takeshis Kitanos ou no Ghost Dog de Jim Jarmusch - que são estas duas, finalmente, as referências que mais nos cruzam o espírito durante o visionamento de Até Ver a Luz. Ainda assim, não é a pista completa: se as peripécias do protagonista Sombra, e as suas manobras para arranjar o dinheiro que deve ao “gang” quase burlesco que anda atrás dele, são importantes, tão importantes como elas são as “paragens”: as cenas de refeição, as discussões sobre coisa nenhuma, os intróitos com personagens que, estando ali, pouco ou nada têm a ver com o círculo duvidoso em que se movimenta Sombra e os seus amigos/inimigos (o encontro com a “tia”, ou a miudita que ficará depositária do lagarto de estimação de Sombra). É por aí que se fecha o círculo, se compõe o retrato do “lugar”, em percentagens indefinidas de “teatro” e de “vida”, sem nunca ceder à tentação do “documento social”, trocado por algo de muito mais sonhador: a luz do sol, mas também o céu, porque é pelos telhados da Reboleira que mais andam estes “gatos-samurais”, estes “cães-fantasma”, de Basil da Cunha.

ENTREVISTA COM BASIL DA CUNHA
Fale-nos do seu método e da sua forma de considerar uma filmagem.
Cada um dos meus filmes é fruto de um trabalho de artesão. Sempre foram fabricados em família, com e sobre as pessoas que me rodeiam, seja na Suiça ou em Portugal. Os actores, a maioria amigos ou vizinhos, acompanham-me há alguns anos.
Escrevi e filmei "Até Ver a Luz" em estreita colaboração com as pessoas que vivem no bairro da Reboleira. O filme está construído à volta de e com as pessoas e pretende  ser uma espécie de reinterpretação da sua vida. As pessoas transformam-se em personagens, a ficção permite sublimar o real, por mais duro ou absurdo que seja.

De que se alimenta o seu desejo de fazer cinema?
Uma coisa é certa, na origem da maioria dos meus filmes há uma vontade de devolver a sua dignidade àqueles a quem ela é frequentemente negada. É o que está na origem: devolver a sua beleza àqueles que amo. Os meus filmes nunca partem de uma ideia ou conceito. Não decido escrever a partir de um tema definido. O ponto de partida é o desejo de filmar aquela pessoa, de encenar uma situação, ou aproveitar aquele músico fantástico cuja música pode enriquecer todo o filme... Depois há, claro, todas as histórias que ouves e alimentam a tua imaginação. Pouco a pouco, desenha-se uma história que está ao serviço de todos esses elementos no centro do filme, nos quais acreditas.

"Até Ver a Luz" cria um universo visual original, que nos propõe uma mistura de géneros cinematográficos. Poderia falar-nos disso?
É um filme de género num universo realista. O filme oscila entre o policial e o documentário.
O espectador vai partilhar o quotidiano cheio de sarilhos de um dealer que acaba de sair da prisão, mas também o universo e a cultura de um bairro muito particular de Lisboa.  O universo narrativo do policial é utilizado para permitir a compreensão da evolução da personagem. Mas o género esbate-se por momentos para ceder o lugar a personagens surpreendentes: uma iguana, uma menina que parece estar sempre por perto, uma tia protectora, um amigo aluado mas um pouco profeta, um bruxo...
O meu desejo é ultrapassar um certo cinema social unidimensional e condescendente.  Quero misturar a realidade com a qual trabalho com uma linguagem cinematográfica que dê espaço a universos poéticos e relações de carinho autenticas entre as personagens. O tom do policial hiper-realista conjuga-se com momentos de branda loucura, com a absurdidade poética do quotidiano. Cria-se então um desfasamento poético.


Como trabalha com os actores?
Não me interessa recriar a realidade e não espero que os meus actores imitem a realidade. Tenho esperança que aconteçam coisas frente à câmara. A vida. Senão é uma seca. A rodagem é para mim uma altura de liberdade. É o momento da procura e do perigo porque, mesmo que tenhamos esperança de chegar a algum lado, nunca sabemos bem como.  E é isso que filmamos: o caminho. No fundo, a essência do meu trabalho é criar um espaço no qual se possa viver.
Os actores nunca ensaiam e não leem o guião. Só conhecem as intenções da cena, algumas deixas essenciais e o resto é como o jazz, uma espécie de improvisação orquestrada. Criam um género de reinterpretação da sua própria vida. Aí, o meu trabalho é surpreende-los a cada take, reinventar os instrumentos com os quais vão jogar para viver algo genuíno.
A regra nas minhas rodagens é que a relação de forças entre o cinema e a vida do bairro dê a vantagem à segunda, porque mesmo que a moldemos e a encenemos, vamos deixar-la existir.  Por isso é que trabalhamos com uma pequena equipa de quatro pessoas: o director de fotografia, o director de som, um amigo que faz um pouco de tudo e eu. O resto é feito pelos moradores do bairro que ajudam aqui e ali, quando podem, e que cumulam assim várias profissões do cinema. É importante que aconteçam mais coisas frente à câmara do que atrás.

Mas tinha um guião escrito?
Para "Até Ver a Luz", como para "Os Vivos Também Choram", ou até "À Coté", (e ao contrário de "Nuvem") havia um guião com diálogos que serviu sobretudo para esclarecer e resolver questões de narrativa. É muito útil já ter pensado nas elipses, nos fora de campo, antes de filmar. Mas não usamos esse guião com os actores antes da rodagem, e muito menos durante. Só tinha guardado uma folha com uma frase para cada cena.

No final de contas, o filme é parecido com o que tinha em mente quando escreveu o guião?
Felizmente isso nunca me aconteceu. Claro que a essência é a mesma. Mas aquilo que me dão é sempre melhor que aquilo que poderia ter escrito.


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