O DESCONHECIDO DO LAGO| Alain Guiraudie| 2013| 28/01/2014| Auditório do IPDJ, 21:30H

DIA 28 JANEIRO
O DESCONHECIDO DO LAGO, Alain Guiraudie,França, 2013, 97’, M/16

FICHA TÉCNICA
Título Original: l’Inconnu du Lac
Argumento e Realização: Alain Guiraudie
Fotografia: Claire Mathon
Som: Philippe Grivel, Nathalie Vidal
Montagem: Jean-Christophe Hym
Interpretação: Pierre Deladonchamps, Christophe Paou, Patrick D’Assumção, Jérôme Chappatte, Mathieu Vervisch
Ano: 2013
Origem: França
Duração: 97´
M/16

SINOPSE
Verão. Um lago é um local de engate de vários homens. Franck apaixona-se por Michel. Um homem bonito mas mortalmente perigoso. Franck sabe disso. Mas deseja viver essa paixão.


FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Cinema de Cannes – Melhor Realizador - Un Certain Regard
Festival de Cinema de Cannes – Queer Palm
Lisbon & Estoril Film Festival - Selecção Oficial - Fora de Competição



TRAILER

CRÍTICA
Perguntámos a Alain Guiraudie, no contexto da última edição do Lisbon & Estoril Film Festival, em conversa a decorrer logo após a projecção de L’inconnu du lac (O Desconhecido do Lago, 2013) , quem é o desconhecido do lago: se Henri (Patrick d’Assunçao) que se torna amigo de Frank (Pierre Deladonchamps), um corpo que se destaca dos restantes porque não se despe até ao pêlo, nem investe pelo bosque em volta do lago para engatar outros homens; se Michel (Christophe Paou), por quem Frank se irá apaixonar, e que recusa estar com ele uma noite inteira, com a desculpa que esse tipo de intimidade dará cabo da atracção que sentem um pelo outro, e sobre o qual a partir de dada altura recaem as suspeitas de que possa ter sido responsável pela morte de um banhista; se o desejo ou prazer que se afigura como motivação primeira para o exibicionismo dos corpos nus e para o sexo que vemos, frequentemente anónimo e voyeurista.
Guiraudie explicará que a pergunta encerrava já a única resposta possível, no que abre para uma quarta hipótese, a de ser o próprio espectador “o desconhecido do lago”. No sentido em que o filme se concentrando em exclusivo num espaço natural fora do resto do mundo (por extensão, o nosso), numa repetição de enquadramentos e acções que se encaminham para a conclusão nocturna, que nada tem de naturalista, por contraste com o tom geral usado por Guiraudie, que permanentemente acentua a presença da natureza, com os recortes da paisagem, o mar, a luz do sol, o som da brisa e do vento, como se o mistério de L’inconnu du lac escolhesse para sempre permanecer misterioso porque aberto a várias leituras, embora fechado a qualquer uma delas em exclusivo.
L’inconnu du lac é um filme de sensações, que joga com a nossa necessidade de compreender o que se passa, quando é tão mais decisivo entregarmo-nos ao seu lado sensorial, sermos mais um naquela “ilha de homens”, circunscrita pelo fora de campo, onde tudo o que de um gesto escorre para outro, da pele batida pelo calor solar aos corpos que se cruzam ou se oferecem com intensidade ou abandono, busca a libertação do espartilho racional. L’inconnu du lac é um objecto explicitamente gay que transcende a sexualidade. A concentração espacial, o minimalismo da planificação, cria uma tal harmonia entre os homens e a natureza, que o instinto puro que impele para os encontros sexuais configura mais uma ideia de paraíso, algo que está para além da culpa e do sórdido.
Triunfa a natureza. Triunfa a liberdade sobre o artifício (pelo menos até à sequência final, algo que está mais próximo de um filme de género). Triunfa o cinema.

ENTREVISTA A ALAIN GUIRAUDIE
No novo filme de Alain Guiraudie, que não hesito em considerar o seu melhor, homens marcam encontro num lago de evasão. Procuram o amor físico. Os dias e os rituais repetem-se. Um desconhecido, Michel, afoga o amante. Franck assiste ao crime. E sem lhe revelar o que viu, é por Michel que ele se apaixona, perdidamente, nas margens deste lago em que as leis do desejo dominam as da razão. Conversámos com este enorme cineasta francês durante o último Festival de Cannes.
O que lhe surgiu primeiro: o lago ou o argumento do filme?
O lago. O espaço de engate. Eu tinha escrito um esboço de romance a partir da ideia de um homem que é afogado por um desconhecido em circunstâncias misteriosas.  
É uma ideia que lhe veio de algum filme ou romance?
Não. O processo criativo foi espontâneo, muito pouco cerebral. Dei-me depois conta,  já “O Desconhecido do Lago” estava pronto, que outros filmes planam sobre o meu de forma inconsciente,
influências longínquas, “A Noite do Caçador”, por exemplo. O único momento do argumento em que acho que procuro um elemento que me é exterior, um momento de cinema de género, é na morte do inspetor da polícia. Faz-me pensar no “Shining”: quando o guarda-noturno aparece no hotel, julgamos que a Família está salva, mas depois o Jack Nicholson mata o guarda, ou seja, aumenta ainda mais o medo e a angústia.
Admite que se veja em “O Desconhecldo do Lago” uma dimensão onírica?
Ah, sim! Há uma dimensão onírica. O que mudou em relação aos meus filmes anteriores é que o onirismo, aqui, não é ‘produzido’ pela ficção: nasce organicamente Nasce da natureza. E chegamos a este aparente paradoxo sobre “O Desconhecido do Lago”: este é um filme naturalista que faz sonhar.
A representação da sexualidade passa por cenas de sexo explícito. Pela primeira vez, você entra em terrenos de hardcore. E é nu; com aqueles homens, que são os seus atores, que o vemos, na praia do lago, numa breve sequência no início do filme. Porque é que decidiu filmar-se também?
Afrontar a sexualidade desta maneira é uma novidade no meu cinema. Filmei-me porque tinha consciência das coisas que ia pedir ao atores nas cenas da floresta em que eles fazem amor. Sabia que ia ser difícil. Senti necessidade de me colocar do lado deles. E por outro motivo também: para evitar qualquer crítica de voyeurismo. Não sou voyeur. Nem acho que o meu filme seja.
Já conhecia os atores?
Não
Recusou muitos no casting?
Bom, todos foram prevenidos do que seria preciso fazer: tirar a roupa, beijar rapazes, etc. Todos sabiam que a temperatura ia aquecer. Muitos nem sequer se apresentaram por causa disso, mas ainda vieram bastantes. De seguida, e após uma primeira seleção, dei-lhes a ler o argumento. Fizemos alguns ensaios mais ousados. Alguns abandonaram o filme nesta fase. O Pierre Deladonchamps [Franck] e o Christophe Paou [Michel] ficaram, mas não foram os únicos. O processo foi, só podia ser, muito claro desde o primeiro minuto. Não queria que a meio da rodagem alguém me dissesse: “Agora está a pedir-me para ir longe demais...”

E em relação às cenas de sexo explícito?
Também já tinha previsto recorrer a duplos.
Com atores porno?
Não, não procurei a indústria porno, Não foi preciso. Os duplos são pessoas anónimas, alguns deles atores profissionais que nos deram os seus corpos e que se assemelham fisicamente aos protagonistas. Estas cenas não são fáceis, sobretudo quando os atores não estão habituados ao porno. Não é fácil ter uma ereção em frente a uma câmara e a uma equipa de cinema. Mesmo com Viagra não dá, nem sempre dá, não há ereções por encomenda: não é o Viagra que vai substituir a libido. Há outra coisa que me afastou também dos atores porno: acho-os estereotipados. E isso nota-se. Mesmo no baixo ventre nota-se. 
Noutro filme seu, “Ce Vieux Rêve Quil Bouge” (2001), havia também um triângulo amoroso masculino e não correspondido que, em “O Desconhecido do Lago”, se completa pela personagem de Henri. Celibatário, é ele quem observa... e vê mais do que todos os outros.
Henri é uma personagem muito importante. O amor triangular foi uma ideia basilar para o argumento. Será que Henri ama Franck? Talvez. Mas não conhecemos bem a natureza do seu desejo, nem aquilo que move a personagem. E é verdade, este filme amplifica o triângulo de “Ce Vieux Rêve Qui Bouge”. 

Henri convidará Franck a passar uma noite em sua casa. Mas Franck recusa-o.
Porque o amor não é correspondido, lá está. É a crueldade do desejo. Franck não está disponível.
Não está disponível porque ama Michel. Mas Michel é o homem que Franck viu (e que nós vimos) cometer um assassínio. Pergunto-lhe se a paixão se excita pelo crime.
Para mim, é importante que Franck deseje Michel já antes do crime. Não estou seguro que o crime, o segredo ou o medo o excitem. Não creio que o filme faça apelo ao macabro. Franck já se atirou de cabeça. Esta é uma ideia muito romântica. E o crime não é capaz de travar esse amor. Ele não se importa com o que lhe pode acontecer: a questão moral é contornada. Porque a questão afinal, é outra: não plana sempre uma ameaça sobre o amor? Não se perguntam todos os amores da Terra até quando pode durar? Aqui sim chegamos ao que me interessa, à angústia do sentimento amoroso.  Michel, o criminoso, não é menos angustiado.
Há uma linha de filme policial em “O Desconhecido do Lago” o medo chama o medo, e quanto
mais ele se teme mais se manifesta. Creio que a montagem gera este efeito O filme ganha velocidade, precipita-se em espiral: os planos vão-se tornando ligeiramente mais curtos. Começamos em placidez, caminhamos para o terror puro.
É verdade. Creio que isso vem do argumento, mais do que da montagem, mas sim, o filme acelera
com a entrada do inspetor da polícia O parque de estacionamento também é importante. Pelos carros, sabemos quem veio ao lago em tal dia. E o tipo que foi afogado continua ‘presente’ no filme nos dias seguintes porque sabemos que o seu carro ficou lá. É um sinal de ameaça. Uma evidência.
Qual é a importância da personagem do inspetor? Ele tem algo de cómico. Faz perguntas. E aqueles homens nunca se perguntam nada...
Ele é um intruso naquele meio. Eu estou a falar de um universo que me é familiar mas tenho a consciência de que, para a maioria dos espectadores que não conhecem estes locais de engate, o que se vê é quase ficção científica... O inspetor é o tipo que vai fazer a ponte entre o onirismo do filme e a perceção do espectador. É o tipo que, além disso, vai pôr em causa coisas que eu também tenho vontade de pôr em causa: porquê fazer sexo com alguém e recusar trocar o número de telefone?
“O Desconhecido do Lago” tem uma de desenvoltura dramática muito diferente dos seus filmes anteriores...
É o meu filme mais grave...
Mas não é politicamente menos comprometido.
 A paixão no meu filme não pede licença para passar.  Não se culpabiliza. Represento a homossexualidade e o ato sexual, uma felação, uma ejaculação, não como uma vinheta que chega de fora da relação amorosa, mas como algo que lhe pertence organicamente — e que assim sai do contexto da pornografia. Ousar propor uma representação da homossexualidade desta maneira é um gesto de provocação e de liberdade. E um duplo combate: não só me debato com as minhas dúvidas como procuro que a representação possa ser refletida pelo espectador como um gesto político. Em “O Desconhecido do Lago’ a tragédia e a angústia tomam conta do espaço. Mas o espaço que temos é a natureza no seu estado puro: um lago, os seus arredores, nada mais. Na montagem, descobrimos que podíamos devolver a este espaço em que nada é traficado uma dimensão hiperfantástica. Uma dimensão cósmica. Foi este o objetivo.
Francisco Ferreira, Expresso, 23/11/13 

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