CINEMABRASIL: TROPICÁLIA DE MARCELO MACHADO, 30 SETEMBRO, 21H30, IPDJ


30 DE SETEMBRO || 21H30 || IPDJ

TROPICÁLIA
Marcelo Machado, Brasil/EUA/Reino Unido, 2012, 87’, M/12

NOTA DO REALIZADOR
Mergulhei completamente nesse período, dando prioridade, sempre que possível, àqueles que realmente fotografaram, filmaram e gravaram em 1967, 1968 e 1969. Sempre tive a impressão que fazer documentários gera mais material do que aquele que é realmente usado. Por isso, fui à procura de entrevistas sobre o Tropicalismo feitas por outros realizadores, tentando encontrar material que nunca tivesse sido visto. Juntei o melhor desse material, de forma cronológica, e escolhi alguns excertos que mostrei para os próprios tropicalistas disponíveis para comentar. A seguir gravei o que tinham a dizer. No espírito do canibalismo cultural, comi isso tudo e estou a retribuir com esta colagem onde o interesse
principal é a música e as canções são o foco de atenção. É, também, um filme para cantar em coro.
Marcelo Machado

FICHA TÉCNICA
Realização: Marcelo Machado
Argumento: Vaughn Glover, Marcelo Machado, Di Moretti                     
Fotografia: Eduardo Piagge
Montagem: Oswaldo Santana
Supervisão Musical: Alexandre Kassin.
Com: Gilberto Gil, Rita Lee, Caetano Veloso, Tom Zé
Origem: Brasil/EUA/Reino Unido
Ano: 2012
Duração: 87’

FESTIVAIS
Doclisboa 2012 - Selecção Oficial


CRÍTICA
Um documentário inteligente, pouco convencional, sobre um movimento que se recusou a encaixar em gavetas.
Dificilmente um documentário “convencional”, de “cabeças falantes”, conseguiria fazer justiça ao movimento tropicalista que marcou indelevelmente a música popular brasileira - e, por extensão, a cultura popular brasileira [...] está, então, em trabalhar essa explosão criativa encimada por Caetano Veloso e Gilberto Gil na música ou Hélio Oiticica nas artes plásticas como se fosse um mosaico em constante desenvolvimento.
Machado registou depoimentos contemporâneos dos principais tropicalistas (Caetano, Gil, Tom Zé, Rita Lee, Rogério Duprat...) mas, durante a maior parte do filme, mantém-os apenas em voz off, sonorizando um trabalho extraordinário de pesquisa de imagens de arquivo e pós-produção visual, como um comentário “a posteriori” - o presente a olhar para o passado, a contar a história de um “sonho lindo que acabou” mas que, em vez de lamentar o seu fim, celebra o seu fervilhar. Verdadeiro happening visual onde até imagens de arquivo do Zip Zip (registadas aquando da passagem de Caetano e Gil por Lisboa em direcção ao exílio britânico) surgem, Tropicália traduz de modo notável a explosão de ideias, imagens e experiências numa “panela de pressão” que se pretendia retrato à la minuta das contradições e potencialidades de um país a encontrar ainda o seu caminho. Ao fazê-lo com esta inteligência formal, evita cair na tendência do “especial televisivo” mais ou menos esquemático; a textura das imagens deixa de ser um simples efeito visual ou uma afectação estilística para se tornar numa aproximação contemporânea a um movimento que se recusou a ficar encerrado em gavetas. 
[...] o que interessa é que este é o perfeito ponto de partida audiovisual para compreender o Tropicalismo.
Jorge Mourinha, www.publico.pt/




ENTREVISTA A MARCELO MACHADO
O maior cinema da capital, o São Jorge, estava quase lotado para a primeira sessão de Tropicália, de Marcelo Machado, no Doclisboa. Numa pequena escala, repete o sucesso que o filme vem alcançando no Brasil.
O filme revive, através de documentos visuais e entrevistas, um dos momentos mais marcantes da cultura brasileira contemporânea, com especial incidência na música e nos anos de 1967, 1968, 1969 – quando o recrudescimento da repressão e da ditadura pôs vários dos seus líderes na prisão e no exílio. Com o sucesso da iniciativa, surge no horizonte a ideia para uma biografia de Heitor Villa-Lobos, o maior nome da música clássica brasileira. Para o público português, além de trazer nomes conhecidos da música brasileira, traz uma verdadeira relíquia logo na sua abertura: um extrato do programa Zip Zip, que Raul Solnado e Carlos Cruz apresentavam em direto na RTP, em 1970.
O filme começa com um jornalista a perguntar ao Caetano o que havia sido a Tropicália… Acha que no final do filme se chegou a alguma definição?
Não. Não acho que explique alguma coisa com esse filme (risos). Eu acho que esclareço algumas coisas, dou elementos para as pessoas tentarem compreender, para eu mesmo tentar entender. Mas a ideia da Tropicália é um pouco confusa, muitas vezes mistificada. Nós temos no Brasil algumas ideias, como o conceito de antropofagia e de que a mistura étnica, racial, o sincretismo religioso, de que todas essas misturas nos beneficiam. O caldo da cultura do Brasil é essa mistura. O Jorge Mautner fala em “amálgama”, ele gosta de usar essa palavra – “alquímica”, no sentido de gerar um novo e precioso metal. 
 Existem vários momentos em que os brasileiros, pensando um pouco na forma como a sua sociedade foi construída, acabam valorizando a mistura como elemento formador. Ali na Tropicália há de novo a crença de que você tem que se abrir “para fora”, não só para dentro, tem que estar receptivo às influências internacionais, ao desenvolvimento tecnológico. 
O grupo de Caetano e Gil era muito aberto, eles estavam muito interessados no pop e no rock, na guitarra elétrica – como uma expressão da cultura jovem contemporânea, daquele tempo. Então, os músicos mais tradicionais, da esquerda ortodoxa brasileira, eram puritanos em relação ao violão – quando este instrumento também veio da península Ibérica, chegou para nós de fora algum dia. Parece até ingénuo falar isso hoje, mas naquele tempo fez-se até passeatas contra as guitarras elétricas! Como se elas fossem ferramentas do imperialismo americano. 
Sobre isso o Caetano tem uma forma de pensar que eu acho inteligente – que é sim, você deve lutar contra as formas de imperialismo. Mas assumir um antiamericanismo radical, querer generalizar, dizer que estes Estados Unidos que invadiram o Iraque são uma coisa só e que não têm uma influência positiva em muitos aspetos da sociedade e no mundo contemporâneo, é uma forma muito limitada e maniqueísta de entender a realidade. 
E principalmente que o Brasil não era tão assim “o certo e o errado”. É um país que apresentava e continua a apresentar muitas contradições. Por isso a leitura que se faz da realidade é algo complexo, não é simples. Então acho que eles tinham essa complexidade. Era muito interessante essa posição dos artistas.
A nível de produção, teve muitas dificuldades? Em relação aos artistas entrevistados, por exemplo…

Tudo isso aconteceu há mais de 40 anos atrás… Essa história já foi muito contada – por jornais e revistas, nas universidades, com muitas teses académicas, e nos programas de televisão. O que eu percebi que não existia era um filme, principalmente algo que pudesse recuperar tudo o que fosse possível a nível de material filmado e gravado naquele momento. 
 Mas quando eu comecei os artistas estavam muito cansados de falar desse assunto. Eles não tiveram boa vontade para falar comigo no início. O Caetano Veloso foi o único que desde o início se abriu até para uma conversa de nível pessoal, para entender o projeto, ver o que eu queria fazer. Ele disse: Olha, veja bem, você não vai encontrar muito material deste período. Muita coisa foi apagada, mal guardada ou não foi documentada. É uma deficiência que nós temos no Brasil em relação à toda a nossa memória, em todos os ramos artísticos. Cuidamos muito mal da nossa memória. O filme é um esforço neste sentido. 
Aquilo do Glauber Rocha é uma relíquia…
Sim, o Glauber, o Oiticica (artista plástico, também muito influente no movimento tropicalista)… Então, quando eu comecei eles não queriam falar do assunto. Mas isso foi bom para mim porque me obrigou a usar a pesquisa de arquivos, a escolher o trabalho com os acervos como a principal ferramenta. Porque se eu quisesse basear a minha estratégia como documentarista em entrevistas eu teria desistido logo no começo. Realmente não receberam muito bem a ideia. Eu me dediquei muito à pesquisa de arquivo e isso foi muito bom, porque me deu conhecimento sobre o material. Aliás, foi com aquilo que eu recolhi que consegui atrair os artistas para dar depoimentos, pois acabei encontrando material que eles não conheciam. 
O material do Zip Zip, por exemplo. Você tem que imaginar que eles estavam indo para Londres, exilados. Então passaram aqui por Lisboa e foram para a televisão, que era em direto. Como é óbvio, se estavam ali não estavam em casa assistindo o programa. Então eles nunca o tinham visto. Quando fui lhes mostrar disse quero mostrar para vocês material que vocês nunca viram. Isso foi o sucesso da minha estratégia, porque todos então se interessaram. Assim colhi meus depoimentos. 
Mas também foram apenas uma ou duas horas que eu fiquei com eles. Não fiquei horas e horas, a não ser o Caetano que eu visitei três vezes. Ele é muito generoso, gosta de conversar. Falamos longamente. 
Os outros foram sempre encontros pequenos, com a mostra do material. Mas eram momentos de grande valor, pois envolvia muita surpresa, muita emoção. Foi em torno disto que eu fiz o filme. 
Também o fiz utilizando entrevistas de outros documentaristas e filmes do período. As preciosas entrevistas com Glauber e Oiticica foram feitas por outro documentarista, Silvio Darin, que tinha filmado esse material em 1978. 
O meu filme é um painel da realização de muitas pessoas. O montador, o Osvaldo Santana, é quase um coautor do filme, porque foi uma obra feita muito na sala de montagem. O diretor de arte, Ricardo Fernandes, teve uma contribuição na narrativa, com o uso das intervenções gráficas, mas como narrativa, não gratuitamente. Acabou dando a estética do filme. Também tive dois pesquisadores de alto nível que me ajudaram a encontrar o material. 
Não menos importante foi a assessoria jurídica. Quando vemos o making of desses grandes filmes americanos, eles mostram como fizeram o ‘efeito para o homem-aranha voar’. O making of do meu filme é um advogado sentado junto de uma mesa com telefone (risos). Liberando direitos de imagem. Isso foi feito desde que nós iniciamos o projeto, tive uma estrutura muito sólida. Eu vi outras pessoas fazerem filmes sobre um período da música brasileira que não conseguiram distribuir por causa dos direitos. 
Os direitos de autor no caso das músicas são bastante caros.
Além de ser caro conseguir a liberação de músicas, existem muitas distorções nas negociações pelos direitos. Existem muitos herdeiros cobrando absurdos. Eu respeito o seu direito, mas quando começam a pedir fortunas por imagens que muitas vezes são um património da coletividade… Você acaba por ficar limitado.
Tiveram que cortar algum trecho de filme ou música por causa de direitos?
 Sim, mas foram poucos. O nosso sucesso nas negociações foi alto. Usamos um critério de jurisprudência que consistia na fixação de um valor que era sempre o mesmo pelo tempo de imagem de música. Então não entramos em nenhum leilão. Desde o início dizíamos quanto pagávamos. Demorava mais, mas quase sempre tivemos sucesso. Eu lembro-me de algumas negociações mais difíceis onde eu fui chamado a entrar para tentar explicar o projeto e conseguir a liberação. 
Mas houve uma, por exemplo, que não conseguimos. Existe uma personagem importante, que é o José Agripino de Paula, um escritor do período, autor de “Pan América”. É um livro que influenciou muito o Caetano Veloso e ele aparece num filme do Rogério Sganzerla chamado A Mulher de Todos (1969). Eu liguei ao produtor, expliquei o que era o projeto, que queríamos usar uma sequência do filme, com o José Agripino a fazer de guerrilheiro, muito adequado ao que eu pretendia. E ele me respondeu: Olha, é o seguinte. Quando eu fiz esse filme, não tinha patrocínio cultural. Cada centavo eu tirei do meu bolso. Eu não tinha apoio nem leis de incentivo, nada. Então, ou você paga o que eu peço ou não usa o meu filme! Eu acabei por não usar, pois eu não tinha como pagar aquilo que ele pedia. 

Porque decidiu utilizar uma versão integral de Asa Branca (música muito popular do “cancioneiro” do sertão do Nordeste brasileiro, sem conexão aparente com a Tropicália) perto do final do filme?
O filme é organizado em três atos, correspondentes a três anos: 1967, 1968, 1969 – ou seja, introdução, desenvolvimento e uma espécie de conclusão. Esta se dá num dos momentos mais dramáticos que são a prisão e o exílio. Aí entram as imagens dos artistas dando os depoimentos, até então estiveram em off. Você só os vê com a idade que têm na parte final, que tem menos narração e mais música. 
O terceiro ato é quase inteiramente musical, as músicas vão ficando mais integrais. Asa Branca era a música que melhor representava o estado de espírito da época do exílio. Por um lado, eles eram artistas que falavam muito de influências internacionais, que acabam por morar fora do Brasil, em Londres, onde está tudo acontecendo, os festivais, tudo aquilo que queriam ver. 
Por outro lado, é neste momento em que ele é mais brasileiro, vai buscar no fundo do sertão da Bahia uma questão de retirante, de imigrante. O sentido que aquilo tem eu não conseguiria expressar em palavras, acho que está ali, numa canção maravilhosa do Luís Gonzaga, cantada de um jeito magistral, sem guitarra elétrica, sem nada. É ele com um violão. Ali a música fala muito mais alto do que qualquer explicação que eu quisesse dar. No arco dramático do filme, na sua construção, tem funcionado muito bem nas salas, tem sido um momento de grande emoção, com pessoas chorando e tudo.
Também faz questão de insistir que a sua abordagem histórica não é voltada para o passado, mas para o presente e para o futuro.
A história serve para um entendimento de como chegamos aqui. O que tem acontecido muitas vezes com o tropicalismo é ser lembrado com uma espécie de saudosismo, um sentimento de ‘ah, como já fomos melhores, como era melhor antes’. Isso vem tanto de pessoas novas quanto daquelas que viveram no período. Em relação a estes, temos que ter um certo respeito: viveram um momento de grande força, de energia, de luta, de muita criação, de invenção. Mais que tudo, o tropicalismo foi um exemplo de tremenda criatividade. 
Para os jovens essa ideia de que ‘já foi melhor’ é muito conformista, derrotista. Você tem que olhar para trás, para os momentos onde foram feitos uma síntese, quando houve um entendimento do que era cultura brasileira, das suas dificuldades e contradições, para andar para a frente. Não consigo entender a história como um mecanismo só de olhar para o passado. O entendimento do passado existe para que se possa caminhar para a frente, para o futuro. Não gostaria que o filme fosse visto como um culto ao passado.
No fundo o que continua a ser fascinante é a própria mitologia dos anos 60, aquela coisa libertária, revolucionária… E um pouco por todo o lado em simultâneo!
Sim, houve o Swinging London, a primavera de Praga, o maio de 68 em Paris, a luta contra a guerra do Vietname e a contracultura muito forte dos Estados Unidos. Se você pensar bem, até a revolução cultural na China também teve o seu auge nesses anos, com uma parcela muito grande da juventude tentando rever os velhos valores. As guardas vermelhas do Mao Tse Tung investigavam se todos os valores burgueses e os hábitos antigos não estariam contaminando ainda a mentalidade da China vermelha. Isso foi levado às últimas consequências e chegou a grandes absurdos. 
Tudo isso para dizer que o momento era de turbulência, de contestação, de busca de uma outra forma de estar no mundo. Questionava-se a própria civilização; não só os comportamentos. Era forte na contestação da política e dos comportamentos, mas também do que chamamos de civilização. O tropicalismo é um dos movimentos deste período. 
Mas insisto que esse questionamento é atual, o que estamos vendo de novo na crise que a Europa enfrenta neste momento é o próprio modelo de civilização que está a ser posto em causa. E aí é interessante olhar para esse período para buscar dele a energia, a forçar de lutar, a alegria. 
Os estilos de vida e os modos de viver, com todo o universo de bens materiais, a própria tecnologia e o que isso implica no uso de recursos naturais, estão fadados a destruir o planeta. O modelo de riqueza que se tem é muito concentrado, você vê que quem está usufruindo e se beneficiando dele são grupos muito pequenos e que manipulam a política internacional em função de seus interesses. O que foram essas invasões pelos Estados Unidos dos países do Oriente nestas últimas décadas? Temos de novo essa história… 
Nós temos que buscar outras formas de viver e de estar no mundo. Neste sentido os anos 60 são inspiradores. Embora também tragam a lembrança de como às vezes podemos ser ingénuos…

Quantos anos você tinha na altura?
Eu tinha 10. Eu cresci no pós-tropicalismo, olhando para tudo isso como algo que já tinha acontecido. Era recente e eu ainda pegava o eco dessa coisa toda. Todos os músicos que eu vi na minha adolescência vinham desta época. Será que todos eles vinham do mesmo território comum? A minha principal motivação para fazer o filme foi de tentar entender esse território, essa região, esse momento. 
Roni Nunes, www.c7nema.net/




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