MARIPHASA | 6 NOV | 21H30 | IPDJ

MARIPHASA
Sandro Aguilar
Portugal, 2017, 86’, M/14


FICHA TÉCNICA
Realização, Argumento e Montagem: Sandro Aguilar
Fotografia:  Rui Xavier
Som: Miguel Moraes Cabral
Interpretação: António Júlio Duarte, Albano Jerónimo, Isabel Abreu, João Pedro Bénard, Cláudia Éfe, Luísa Cruz, Gonçalo Waddington
Origem: Portugal
Ano: 2017
Duração: 86’



FESTIVAIS
Berlinale Forum [DE 2018]
Hong Kong International Film Festival [HK 2018]
Indielisboa [PT 2018]
Adana Film Festival [TR 2018]


TRAILER



NOTA DE INTENÇÕES
Veremos facas, espingardas, presas e caçadores, monstros e pesadelos, numa alternância pendular, do movimento à estagnação. Lugares aos quais impiedosamente se regressa, depósitos espontâneos da memória afectiva dos seus ocupantes e sintomas da sua desagregação. Sobretudo madrugadas e noites, urgentes e amnésicas como num filme de lobisomens, em diferido. Do sangue ao corpo - invólucro e contentor. Retenho particularmente do terror, do fantástico, ou do western, a sua capacidade de suspender a descrença do espectador, inaugurando uma comovente disponibilidade para aceitar as naturais propriedades do cinema para propor as suas realidades; para tactear o mundo a partir de um território que não é o nosso.



ENTREVISTA A SANDRO AGUILAR
Para começar, se quisesses falar sobre a forma como Mariphasa surgiu.
É um projeto que teve a sua primeira versão já há alguns, penso que seis, sete anos, pelo menos. Já não ei o que na altura iniciou tudo. Mas era um projeto que vinha na continuidade de coisas que eu tentei fazer o princípio das minhas curtas-metragens, no Corpo e Meio, por exemplo.
Tentar explorar uma lógica vagamente narrativa, e que tivesses aquele aspeto pendular que tinha o Corpo  Meio. Ter uma espécie de linearidade de um personagem que vai de um espaço a outro e depois regressa  o que pode trazer de transformador nesse regresso. Começou por ser um projeto que tinha a ver com a realidade de um espaço, foi pensado e escrito a pensar nos decors que eu tinha encontrado no Corpo e Meio. Não sei porque razão, quando passei para a segunda longa-metragem apeteceu-me voltar ao um filme inicial. É a minha quarta curta-metragem e apetecia-me ter essa espécie de linearidade, de limpeza, pelo menos na premissa inicial. É claro que depois o projeto sofre muitas alterações durante o processo criativo, se somarmos àquilo que é o meu processo normal de trabalho, seis anos de intervalo entre uma primeira ideia e a execução, sendo que eu não continuei a trabalhar sobre aquela ideia. Aquilo que me desperta criativamente tem a ver com a natureza concreta daquilo que ando à procura nos decors, dos atores, de pequenas coisas que vou tropeçando e, portanto, não valia muito a pena estar a trabalhar, começo efetivamente a trabalhar e a enriquecer um projeto na fase em que estou perto do arranque da rodagem. E por isso o projeto ficou em pousio. Foi escrito mais ou menos há seis anos e depois foi repegado dois ou três meses antes da rodagem, em que comecei a ter as primeiras conversas com atores, comecei a visitar decors e as coisas foram-se alterando e o projeto foi ganhando um carácter menos concreto e mais onírico. No projeto original, uma das primeiras ideias, tinha a ver com fazer um remake estranho do Dr. Jekyll and Mr. Hyde: a ideia de haver, num mesmo personagem uma linha de divisão entre um carácter mais domesticado ou civilizado e um carácter mais selvagem e isso poder coabitar no interior de uma personagem. E depois no processo ao estar a escrever comecei a espalhar essa duplicidade por dois espaços, por várias personagens e a coisa começou a espalhar e a mudar um bocadinho o carácter. Dessa ideia inicial resiste a ideia do andar de cima e do andar de baixo, dos dois vizinhos, de um personagem que se olha ao espelho e um personagem diferente que também se olha ao espelho quase vinte minutos mais tarde. Há coisas que vêm dessa primeira abordagem, mas é tudo tão alterado que é difícil perceber de onde é que aquilo tudo vem, porque vai sendo tudo criado à medida que o processo vai avançando.
Curioso falares do Corpo e Meio, porque Mariphasa parece assentar sobre uma ideia perda, parece que falta alguma coisa: começa com um acidente e com uma morte e vemos o que acontece depois.
Durante o tempo que estava a escrever, eu tenho uma espécie de esquemas, quase geométricos da minha relação com as personagens e das relações entre as personagens. A haver um tema “humano” relacionado com este filme tem a ver com qualquer coisa de displacement, de estar fora do seu lugar. Cada personagem aparece a preencher o lugar de outro omisso, digamos assim. Cada um dos personagens do filme tem alguém que falta. E alguém está a preencher o lugar dessa entidade que falta. E, portanto, tal como em Corpo e Meio a ideia de omissão, de alguém que desapareceu e que já não está lá, e de uma coisa, de uma presença ou de outro personagem que equivocamente está a ocupar esse lugar é aquilo que faz avançar tudo. E por isso o filme tem aquela lógica da porta fechada. Havia até explicitamente no argumento original uma alusão à fábula do lobo e dos três porquinhos, do soprar a casa e levar tudo. Lá está, a questão do selvagem e do domesticado, de haver ali uma linha de fronteira física entre qualquer coisa que se passa num interior, que parece estar resguardado, mas que já foi devassado e está em processo de transformação, qualquer coisa do humano para o monstro, que está na origem de tudo isto e que tem a ver com esta coisa, que de forma muito simplista de pode reduzir na premissa do Dr. Jekyll and Mr. Hyde, dessa duplicidade, mas que no fundo não é apenas narrativa, mas é qualquer coisa que existe em cada um de nós, esta tensão entre a energia domesticadora e um instinto qualquer mais selvagem. Essa alusão aos três porquinhos e ao lobo e por isso é que a casa aparece toda revolta como se tivesse sido soprada essas fronteiras, como se esse lado selvagem estivesse pronto a habitar o interior daquelas casas e daquelas personagens. É a ocupação do lugar vazio que faz avançar o filme todo, seja físico ou seja um lugar afetivo que não consegue preencher fisicamente nem qualquer espécie de substituição. Foi difícil escrever este filme porque tal como em muitos outros projetos meus, eu sou anti-narrativo no sentido de que aquilo que me interessa nos personagens é quase um convite à inatividade. É o momento em que eles estão indecisos sobre o que podem fazer para mudar, para se transformarem e uma das regras narrativas mais comuns tem a ver com o contrário disso: a personagem tem que lançar uma linha para um futuro qualquer em que alguma coisa se vai transformar, tem que estabelecer um objetivo e na superação desse objetivo haver qualquer coisa de transformação.

E aqui, mesmo o título do filme, Mariphasa, que é o nome de uma flor, ficcional, flor que serve, justamente, de antídoto a essa transformação. Existe um convite à inatividade ou um convite a uma atividade que se passa internamente a cada uma das personagens e que só temos acesso a alguns momentos da vida deles. Podemos imaginar, ou antecipar ou especular sobre o que é que cada um deles quer, mas nada nos é dito de forma muito clara, não é que eu tenha muita vontade de esconder, mas também porque para cada um daqueles personagens não é muito claro qual seria o pequeno passo ou o grande passo que os poderia fazer sair do processo em questão.  E como existe qualquer coisa de pesadelo, qualquer coisa de post-mortem. De certa maneira há pouco mundo à volta daqueles personagens e há pouca realidade à volta daquilo tudo. É como se houvesse um trabalho de isolamento quase laboratorial, ou seja, é preciso isolar cada um dos componentes que pomos em jogo, partículas ou moléculas, para poder perceber qual é a verdadeira ação que os elementos estão a ter sobre elas. Mas existe assim esse efeito de inatividade. De convite a uma certa estagnação que é aquilo que mais me interessa nos personagens e eu acabo por chegar a essa conclusão não à priori, que foi uma coisa que constatei no processo deste filme, em que eu comecei quase por um arquétipo narrativo muito sedutor, muito normal, muito standard e depois o meu trabalho acaba por ser de apagar esse efeito de reconhecimento da realidade e um aspeto qualquer de transfiguração da realidade e que me vai aproximando destas características de personagens, que por alguma razão é recorrente no meu cinema.
A cena da mãe e do filho e a lógica do pesadelo.
O que eu quis foi dar ao filme esse caráter de pesadelo e a própria lógica do filme fosse de pesadelo, ou seja, os conflitos não são claros, há uma tensão que não sabemos de onde é que vem. Tal como num pesadelo, às vezes um pequeno gesto seria o suficiente para sair da condição em que se está. Por alguma razão, nós não conseguimos fazer esse gesto faz parte da natureza mental do pesadelo para nos manter naquela situação e isso eu acho um desafio muito interessante de trabalhar num filme assim, ou seja, ter as portas, o labirinto através de dois apartamentos, numa lógica labiríntica de habitação do espaço e tem a ver com essa lógica de pesadelo. Essa minha relação com o pesadelo ou o sonho, eu não gosto muito de trabalhar personagens loucas, parece-me um desafio menor, quase um livre trânsito para tudo, nem ter uma dimensão onírica que perca alguma concretude. E por isso, se isto é um pesadelo, é um daqueles pesadelos que nos parecem, que tem características da nossa realidade, isolam características específicas da nossa realidade, mas que não se parecem com ela. Esse equilíbrio é também o que mais me agrada no filme: é ter o aspeto de pesadelo, mas não nada que sinalize o que é que é real e o que não é real. Ou seja, mesmo quando o miúdo acorda do pesadelo, descreve o pesadelo, aquele pesadelo é a coisa mais concreta do filme todo, se calhar é a coisa mais real do filme todo. O que parece mais realista no filme todo é um miúdo a acordar de um pesadelo. E tudo o resto parece fazer parte desse pesadelo ou de outros pesadelos. Essas linhas de comunicação entre essas duas coisas, eu queria que fossem completamente esbatidas.
A questão da paisagem. Os espaços de ruínas, destruídas. Quase entramos num ambiente pós-apocalíptico. A caracterização dos espaços.
Os espaços deste filme são prolongamentos das personagens, prolongamentos de características que eles têm ou quase subtemas do próprio filme. Especificamente sobre os espaços, gosto que aqueles sejam espaços realistas. Aquele apartamento devassado após um assalto é um apartamento devassado após um assalto, tal como eu já vi, tudo fora do sítio. O que não é muito normal é a reação das personagens a isso, ou seja, o facto daquilo ficar assim, de estagnar naquela situação.
Uma fábrica para onde ele vai trabalhar, é aquilo mesmo, nós não manipulamos de forma nenhuma. São restos de toda uma atividade que aconteceu ali e que agora já não existe. Ainda restam ali vestígios, ruínas, ácido, pedra corroída. Isso está lá neste momento. O apartamento do vizinho é um apartamento que tem qualquer coisa de apartamento que já foi acolhedor nos anos 70, e, embora o personagem habite o apartamento, parece estar tal qual foi deixado pelos pais e onde viveu quando era criança, pouco mexeu naquilo, é uma espécie de portal para o passado daquele personagem. O percurso que a personagem principal, o Paulo, faz ao longo do filme faz com que ele, quase que atravesse coisas que tenham a ver com o seu passado ou com o seu crescimento e dentro desta lógica do arquétipo do Dr. Jekyll and Mr. Hyde foi depois espalhar características do personagem por vários outros, ou seja, em vez de trabalhar com uma duplicidade, comecei a espalhar por outros tempos e por outros personagens e há qualquer coisa de miragem, por exemplo, na relação dele com a personagem que faz o João Pedro Bénard, mais velho, qualquer coisa de ponto de chegada e qualquer coisa também de ponto iniciático no miúdo, por exemplo, são os dois extremos. Há também qualquer coisa de substituição da esposa dele que desapareceu ou da filha, há aqui muitos aspetos de substituição dos personagens por outros. O que eu queria é que os espaços pudessem aludir a isto, ou seja, haver qualquer coisa de que eles exprimissem esta dicotomia, mas de uma forma muito linear. Algo que rapidamente fiz quando comecei a escrever: foi que houvesse uma certa promiscuidade nos elementos selvagem ou doméstico/civilizado, esta tensão que eu falava no início, entre qualquer coisa selvagem e qualquer coisa civilizada, que houvesse contaminação de umas coisas para as outras. A fábrica é um não-espaço, não é muito claro o que aquilo é. Alguns indícios de uma fábrica antiga, é um sítio que já parece ter tido atividade, mas está abandonado há muito tempo e tem qualquer coisa de cru, de pedra, de fogo, da água, esses são os elementos primordiais que tem a ver com o sítio para onde ele vai para a obra. Mas depois queria que houvesse uma contaminação, que não fosse muito linear esta dicotomia, porque também não gosto muito dessa limpeza. Os espaços, neste filme, são quase personagens.

O trabalho dos atores. Como foi o teu trabalho com os atores.
É uma mistura de reencontros, com atores com quem já trabalhei noutros filmes, alguns dos quais com alguma progressão no tipo de personagem que, por exemplo, a Isabel vai fazendo ao longo dos meus filmes. Há uma espécie de linha de progressão nos vários personagens que ela vai interpretando. E também com o Albano, com quem também já trabalhei no Voodoo e no Mercúrio. Tem um sabor de um reencontro. No caso do António Júlio Duarte tinha trabalhado com ele no Bunker. Para personagem principal, tal como na Zona, a minha primeira longa queria ter um ator, ou uma presença, que fosse capaz de carregar, em si próprio, pela sua presença haver um carácter definidor do que aquela personagem é, que é uma personagem que sobretudo olha e enfrenta, está a presenciar coisas que acontecem à sua frente e que queria que ele trouxesse o inferno no resto e eu acho que o António Júlio já me oferecia isto. Acho que antes de trabalhar com ele no Bunker já tinha pensado nele para este filme. Depois tenho o Eduardo, que é meu filho, e portanto conheço muito bem; e o João Pedro Bénard que surgiu mais tarde como ideia para este personagem, era mais novo no início, mas depois, das poucas coisas que fiz ao reescrever, foi dar-lhe uma idade diferente, de facto ele estar no outro extremo, oposto ao do miúdo, em termos de possibilidade, em termos de caminho e é um personagem que aparece a queimar fotografias, que parece estar numa últim a noite de despedida de qualquer coisa e de ser assim uma espécie de presença fantasmática, de um futuro possível para o personagem principal. Eu não faço muito essa distinção entre os atores e os não-atores. Eu sei que com alguns deles, como a Isabel ou Albano, não só têm a capacidade técnica e o hábito de trabalharem comigo para não me darem coisas que eu não gosto nas personagens. O trabalho com os atores é uma coisa muito intuitiva, vamos trabalhando de uma determinada forma. Com não-atores, existem outras estratégias para chegar ao mesmo lugar.
O som do filme cria uma tensão durante o filme. A música e a apoteose de Seger, híper romântica, mas que é até usada contra.
Eu não uso muito música nos filmes e neste caso quis, foi uma ideia que surgiu durante o processo. A música do Bob Seger faz uma comunicação entre as duas personagens: o personagem do vizinho e o personagem da rapariga. No início, narrativamente, queria que aquela música, posta muito alta a tocar, fosse uma maneira de azucrinar o homem que vive com a personagem da Isabel e de fazer um convite à personagem da Isabel. A letra muito explicitamente alude a isso “We have got tonight / Who needs tomorrow”, a letra é uma espécie de livre trânsito para o engate: naquela noite, tudo pode acontecer; e depois amanhã logo se vê. Só que, coincidentemente, os personagens não têm muito mais aqui neste filme do que uma noite e portanto parece que eles só têm efetivamente esta noite para, o filme só tem esta noite para acontecer o que quer que seja que tenha que para acontecer. Portanto, acabada esta noite, eles parece que vão se dissolver, vão-se desfazer e vão desaparecer, enquanto personagens e enquanto filme. Nós estamos a apanhar a ação e estes personagens, em meia dúzia de horas que se vão passando, com grandes elisões – o filme quase não tem dia – queria que houvesse este efeito de filme em diferido. Os grandes acontecimentos do filme acontecem fora do filme. Nós temos acesso a uma coisa muito em diferido – seja a morte da filha, seja pequenas coisas narrativas que existem lá – e queria que de uma forma muito explícita, o filme ao não ter dias, ser um momento qualquer em que algumas coisas acontecem para algumas personagens e um momento de inconsciência para outras personagens. Por exemplo, no momento em que o personagem principal está a dormir. E enquanto ele está a dormir não dia. É uma última noite. Há quase que um apelo a um suicídio qualquer coletivo, de que a existência deles é completamente efémera.
Segunda longa; temas repetidos; da Zona até Mariphasa, o que transformou?
Há um aspeto que é bastante diferente na maior parte dos meus filmes. Durante os meus filmes todos, raramente fiz um campo/contracampo e em muitos filmes, quase não existem personagens, eu quase não os filmo. E neste filme, são poucos os planos do filme em que eu não tenho personagem e em que eu não tenho alguém a olhar para alguma coisa. No limite, nos últimos 20 minutos do filme, são campos/contracampos, sem que os personagens se consigam ver uns aos outros. Estender uma coisa que eu nunca fiz para durante 20 minutos parece-me relativamente novo. Filmei estes campos/contracampos com barreiras físicas, que os personagens não se consigam ver. Alguns destes são falsos campos/contracampos. Mesmo que eu filme os personagens, isso não significa que eles não sejam misteriosos, nem para espectador, nem para mim. Eu filmo os personagens, mas não os preencho com elementos narrativos ou com dinâmicas de ação.
Daniel Ribas


CRÍTICA
A segunda longa de Sandro Aguilar é menos uma narrativa, mais um pesadelo emocional paredes-meias com o fantástico, uma história de gente sem saída contada de modo puramente sensorial. Assombroso, inesgotável filme.

Gente perdida, sem saber para onde vai, sem saber o que quer ou o que os espera. O que podem eles fazer contra o destino? Há um acidente. Um funeral. Um homem que já não é bem-vindo. O seu caminho cruza uma mulher e o seu filho, ambos com medo; um outro homem (marido, ex-marido?), caçador, alguém que cria medo. Andam à volta uns dos outros, como animais enjaulados num zoológico. (E às tantas a mulher é veterinária.) Há algo de malsão a trabalhar em Mariphasa, algo de maligno, de mais assustador do que qualquer filme de terror. Mas há também um conforto estranho: o de sabermos que esta gente é como nós. Talvez sejamos nós — gente perdida, transtornada, que já não sabe mais para onde se virar, gente perdida, assustada, à beira de explodir, à beira de libertar algo. O quê? Não sabemos, Sandro Aguilar não no-lo diz. Prefere deixar-nos ali a boiar neste plasma líquido, neste fluido amniótico de vidas com medo, de pesadelos nocturnos, sempre de noite, sempre às escuras, sob o signo do sangue.
Mariphasa é apenas a segunda longa de Aguilar numa carreira feita quase inteiramente, e por deliberação, no formato curto. À imagem da primeira, A Zona, de 2008, e da grande maioria das suas curtas, é um jogo de “unir os pontos” para descobrir a imagem, sob o signo de uma planta que não existe (a “mariphasa” do título, “um antídoto para uma transformação que, a ocorrer, terá consequências terríveis”, nas palavras do seu autor) e que abre o filme às portas do cinema fantástico. O que interessa, contudo, é que tudo o que parece opaco no papel encaixa e faz sentido no ecrã, mesmo que seja um sentido que não se explica (e que o filme não tenta sequer explicar) mas que se sente aqui dentro. Mariphasa não é um filme, é um estado de alma, negro, envolvente contudo inexplicável, abstracto e contudo sempre a intrigar-nos para o tentarmos resolver — assombroso no modo como a sua narrativa não se constrói mas na prática floresce exclusivamente a partir de fragmentos com ligações aparentemente ténues, extraordinário no modo como tudo é sugerido mais do que explicado, deixado ao espectador fazer as ligações que bem entender. Vimos Mariphasa três vezes, em todas elas a sua flor malsã abriu de formas diferentes, em todas elas vimos outro filme vendo o mesmo filme. Mariphasa não se esgota, nunca. São raros os filmes assim.
, Público

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