Roma, Cidade Aberta - uma obra-prima. Inaugurou o Neo-Realismo. Nunca mais o cinema foi o mesmo. 4ªf, dia 3, pelas 21h30. No Pátio de Letras.

Em Roma, Cidade Aberta, é possível observar claramente os elementos característicos do neo-realismo italiano: gravações em amplos exteriores, planos sequência, participação de actores não-profissionais, a temática da resistência, da coragem, da miséria, da solidão, do sofrimento. Das vidas pequenas que por isso são as maiores. Despertar consciências. Cinema como arma. Cinema como manifesto - artístico, político e ideológico, tudo junto numa mesma atitude perante a vida: o realismo em primeiro lugar, jogando com os dois planos, o ficcional e o documental, que toda a vida deve estar na ficção pois toda a ficção deve manifestar a realidade.

Elementos que vieram influenciar cineastas do mundo inteiro em diferentes épocas.

Movimento precioso a ser preservado para muito além do século XXI.

Depois da leitura provocatória desta corrente cinematográfica, com os anteriores ciclos 'O Neo-Realismo nunca existiu - Visconti e Fellini' (acontecidos no Teatro das Figuras em Outubro e Dezembro passados), é altura de repôr a verdade histórica com 'O Neo-Realismo existiu sim!', com estes ciclos de Roberto Rossellini (este mês, dias 3, 10 e 17) e Vittorio De Sica (em Abril).



Em 1943, Rossellini ingressou na Resistência, passando a viver na clandestinidade. Dois meses após a liberação da Itália, em 1945, deu início às filmagens de Roma, Cidade Aberta, obra que, incompreendida e recusada pela crítica italiana, foi, um ano depois, aclamada pela crítica francesa e se tornou um dos marcos fundamentais do neo-realismo italiano (juntamente com Ossessione, de Luchino Visconti, Ladrões de Bicicleta, de Vittorio de Sica e Paisà, do próprio Rossellini). Contudo, Roma, Cidade Aberta e Paisà (1946) extrapolaram o contexto do cinema italiano, influenciando decisivamente o moderno cinema do pós-guerra.

Moralismo, misticismo, incoerência política, traição aos pressupostos estéticos do neo-realismo: inúmeras foram as acusações imputadas, tanto por católicos quanto por comunistas, ao conjunto da obra rosselliniana. Mas se filmes como Roma Cidade Aberta, Stromboli, Alemanha Ano Zero, Viagem à Itália e Francisco, Arauto de Deus mantêm entre si evidentes diferenças no tratamento e na escolha temática, Rossellini não foi, em nenhum deles, menos fiel a si próprio. Há, em cada um desses títulos, a busca por uma representação anti-espetacular do homem em confronto com a realidade; uma realidade que, por sua vez, não quer significar nada, mas simplesmente existe. Ou seja, não importa que estejamos diante de um vulcão em erupção, como em Stromboli, ou até mesmo de um milagre, como em Francisco, Arauto de Deus: o que vem a primeiro plano é sempre o homem diante do mistério.

É por este motivo que Roma, Cidade Aberta, quase sessenta anos após sua realização, continua a ser um dos momentos mais fortes da história do cinema. O impacto estético conseguido por Rossellini, nasce, por um lado, de uma violenta absorção da realidade, e, por outro, de uma construção dramática que foge inteiramente às regras de um cinema narrativo então hegemônico.

As condições de produção que possibilitaram Rossellini filmar Roma, Cidade Aberta foram, segundo seus próprios relatos, as mais impraticáveis. Impulsionadas por cheques sem fundo, emitidos por "mecenas" improvisados em produtores (e que escondiam a própria falência), as filmagens se arrastaram por meses, tendo como "quartel general" um picadeiro desativado sob um bordel, nas proximidades de uma redação de um jornal do exército americano. Filmando numa cidade em ruínas e assumindo dívidas cada vez maiores, Rossellini trabalhou com atores em sua maior parte desconhecidos, com exceção de Anna Magnani, àquela época uma atriz de relativo sucesso no teatro. A falta de recursos incluía até mesmo película virgem. Rossellini a conseguia comprando no mercado negro, em pequenos rolos de 20, 30 ou 50 metros, o que o forçava a rodar planos curtos e a redimensionar constantemente o roteiro. A filmagem em exteriores, por outro lado, não era apenas uma saída para a inexistência dos estúdios: correspondia à natureza fílmica da obra, quase um documentário da paisagem semi-destruída do pós-guerra. Com todas estas pré-condições e obstáculos, Roma, Cidade Aberta resultou no que mais tarde se convencionou chamar de "modelo neo-realista", muito embora, em Rossellini, o neo-realismo fosse antes uma tomada de posição moral do que um "estilo".

Dois grandes temas atravessam Roma, Cidade Aberta: a resistência, entendida não apenas como a luta travada nos domínios da guerra, mas como o próprio sentimento de luta contra toda e qualquer opressão, e o desespero, entendido aqui como toda a forma de desistência da fé no homem, e também como a sua maior perversão: o ódio e a intolerância do nazi-fascismo. Todos os personagens que se movem neste drama representam, ou melhor, pertencem à categoria dos que resistem ou dos que se entregam ao desespero. Mas, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, não se trata de um esquema maniqueísta de entendimento histórico. Roma, Cidade Aberta é um discurso político que toma o partido dos que resistem, mas que também confere substância ao drama do desespero, e o repõe em termos humanísticos.

Não é à tôa que o roteiro impede que o espectador atribua de imediato a este ou aquele personagem o estatuto de "personagem principal". Não há maior ou menor heroísmo entre Manfredi (Marcello Pagliero) e Don Pietro (Aldo Fabrizi). O que os une é um princípio, se quisermos, de coragem humana, que independe das convicções ideológicas (Manfredi é um militante comunista e Don Pietro um padre). Se há um "herói" em "Roma..." ele é simplesmente o próprio ato de resistência.

No lado oposto estão o oficial nazista Bergmann (Harry Feist) e sua assistente Ingrid (Giovanna Galletti). O curioso na caracterização destes personagens é que eles reúnem tudo aquilo que a Rossellini pareceria sintetizar as fraquezas e os vícios do homem: as drogas, a covardia, a homossexualidade etc. Ambos são capazes de atrocidades como a tortura, mas recuam diante da indignação de Don Pietro. São ao mesmo tempo monstros e criaturas frágeis: um sopro poderia derrubá-los, assim como uma única frase racional pode pulverizar qualquer teoria da superioridade das raças. Bergmann e sua assistente representam a fragilidade do fascismo, que justamente por ser frágil precisa apoiar-se no massacre e nas armas, e necessita da fraqueza espiritual e do irracionalismo dos que o admitem. Caso da personagem interpretada por Maria Michi, a cantora Marina, que adere ao nazismo em troca de casacos de pele e de drogas.

Há, por fim, a personagem de Pina, vivida por Anna Magnani, que, a despeito do pouco tempo que toma nas telas, assume uma dimensão bem maior do que se poderia prever. É com Anna Magnani uma das cenas mais impactantes de Roma, Cidade Aberta, justamente a que introduz um outro tema talvez tão importante quanto a resistência e o desespero: a morte. E ela chega de forma brutal, embora não propriamente como tragédia e sim como um fato, numa chave de abordagem que terá reflexos posteriores em um filme como Viver a Vida (Vivre Sa Vie - 1962), de Jean-Luc Godard.

Assim como a morte não constitui material melodramático, Rossellini evita envolver o espectador nas "razões" psicológicas de cada personagem, deixando que eles se movam (surjam e desapareçam) sem que nós tenhamos o domínio de suas individualidades. Há um distanciamento crítico em torno das ações, de forma a deixar em relevo o "lugar" (social, histórico, ideológico) de onde cada personagem fala. Esta busca por um olhar "horizontal" na relação entre os personagens e destes com o espectador é coerente com a própria estrutura narrativa; o filme abre e fecha com planos similares (tomadas gerais da cidade de Roma), criando uma circularidade apenas aparente: se no início são as botas militares dos soldados alemães que marcham sobre a cidade ocupada, no plano final as crianças caminham para um futuro - o ano zero da reconstrução.

Luís Alberto Rocha Melo



Título original: Roma, Cità Aperta
Realização: Roberto Rossellini
Argumento: Sérgio Amidei e Federico Fellini
Interpretação: Anna Magnani, Aldo Fabrizi, Marcello Pagliero, Vito Annichiarico, Nando Bruno
Direcção de Fotografia: Ubaldo Arata
Música: Renzo Rossellini
Montagem: Eraldo da Roma
Origem: Itália
Ano de estreia: 1945

Duração: 97'


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2 comentários:

josé neves disse...

Lindo,
Aqui o "Roma Cidade Aberta" é no Pátio das Letras e no programa de Fevereiro/2010 diz que é no pequeno Auditório do Teatro das Figuras: uma perfeita confusão.
Mas não acaba aqui o troca-tintas informativo do Cineclube. Chegados ao Teatro das Figuras deparamos com um A4 colado na porta a informar que o Ciclo "O Neo-Realismo Existiu Sim" afinal não existe mesmo.
Com este meio fácil, barato e à velocidade da luz aqui à mão, por que carga de água não é utilizado para informar os sócios sobre alterações de última hora?

anabela moutinho disse...

Caro José Neves,

o troca-tintas informativo do Cineclube não o foi tanto assim:

1. no folheto diz - tal como no programa do Teatro o dizia - que seria no Teatro das Figuras que o Ciclo aconteceria. Verdade. Só depois de ele ser enviado (5ªf passada), soubemos que ele teria de ser cancelado naquele local.

Por isso,
2. No fim-de-semana colocámos aqui - por ser um meio fácil, barato e à velocidade da luz -, na barra lateral, a nossa programação de fevereiro que, como pode ver, indica o Pátio de Letras como espaço acolhedor do Ciclo de Neo-Realismo.

3. Enviámos para todos os sócios e não-sócios a newsletter de fevereiro, no dia 1 (mail repetido nesse dia, pois enviámos em 2 formatos), que, ao conter todo o Programa, incluía a rectificação quanto ao local;

4. Avisámos os presentes na sessão de Tetro;

5. Publicámos este post no dia 2, post esse também publicado/reenviado para a conta de Facebook.

Lamento os inconvenientes que esta mudança de local lhe causou, e assumo que deveria ter estado um de nós no Teatro para avisar possíveis espectadore que lá se dirigissem. Sinceramente o faço.

Mas faço-lhe o pedido que reiteradamente temos feito, incluindo com destaque na nossa correspondência postal (pedido feito nas costas do envelope que terá recebido na 6ªf ou 2ªf com o folheto) - por favor indiquem-nos o vosso email, é a forma mais garantida e segura de receberem as nossas informações, ainda mais as de última hora, como foi o caso.

Mais uma vez lamento o incómodo.