Os limites do controlo
A estreia da realização do argumentista de "O Despertar da Mente" e "Queres Ser John Malkovich" é um filme desequilibrado mas perturbante sobre o terror do quotidiano.
A história do cinema está cheia de argumentistas que se decidiram a passar à realização, com resultados bastante variáveis. Charlie Kaufman, um dos mais inventivos e originais argumentistas americanos contemporâneos, não é excepção a essa regra, embora no seu caso a coisa tenha sido um pouco mais acidental: "Sinédoque, Nova Iorque" começou vida como um projecto de filme de terror para a Columbia que deveria ser realizado por Spike Jonze, o realizador-alma gémea que filmara "Queres Ser John Malkovich?" e "Inadaptado." Mas o que era suposto ser um filme de género transformou-se durante a escrita noutra coisa, muito mais "kaufmaniana" mas também muito mais inclassificável. E Jonze, retido na produção conturbada de "O Sítio das Coisas Selvagens", sugeriu ao amigo que fosse ele próprio a realizar o que, sem ser um filme de terror, é um filme sobre o terror - sobre o terror de morrer, sobre o terror de passar pela vida sem deixar marca, sobre o terror da irrelevância e do fracasso e da sensação de termos desperdiçado o nosso tempo neste mundo.
A história do cinema está cheia de argumentistas que se decidiram a passar à realização, com resultados bastante variáveis. Charlie Kaufman, um dos mais inventivos e originais argumentistas americanos contemporâneos, não é excepção a essa regra, embora no seu caso a coisa tenha sido um pouco mais acidental: "Sinédoque, Nova Iorque" começou vida como um projecto de filme de terror para a Columbia que deveria ser realizado por Spike Jonze, o realizador-alma gémea que filmara "Queres Ser John Malkovich?" e "Inadaptado." Mas o que era suposto ser um filme de género transformou-se durante a escrita noutra coisa, muito mais "kaufmaniana" mas também muito mais inclassificável. E Jonze, retido na produção conturbada de "O Sítio das Coisas Selvagens", sugeriu ao amigo que fosse ele próprio a realizar o que, sem ser um filme de terror, é um filme sobre o terror - sobre o terror de morrer, sobre o terror de passar pela vida sem deixar marca, sobre o terror da irrelevância e do fracasso e da sensação de termos desperdiçado o nosso tempo neste mundo.
É esse terror que persegue quotidianamente o encenador teatral Caden Cotard (papel à medida do enorme Philip Seymour Hoffman), neurótico, inseguro, hipocondríaco, aprisionado num corpo em lenta decomposição mas também num casamento que se desintegra em lume brando, que recebe do nada uma bolsa de mecenato cultural e decide investi-la na criação da peça teatral para acabar com todas as peças teatrais. Um simulacro que se desenrole em tempo real, tal como a vida, num enorme armazém abandonado que se transforma numa cidade dentro da cidade à medida que a obra monumental de Caden vai ganhando corpo e estrutura - mas que, ao fim de 17 anos, continua em ensaios e ainda não foi mostrada ao público, e que se transforma progressivamente num espelho da própria vida amargurada do encenador que tanto quis ser alguém que se resumiu progressivamente ao anonimato.
Desde a compactação de 25 anos de narrativa numa espécie de único longo dia onde Caden vai envelhecendo e rejuvenescendo consoante as necessidades da história até ao vertiginoso e infindável jogo de espelhos entre a vida e a arte, passando pela casa que está permanentemente em fogo ou pela capacidade de tornar o surreal estranhamente credível, percebe-se rapidamente que nenhum outro autor contemporâneo poderia ter escrito "Sinédoque, Nova Iorque". Mas ser um argumentista de excepção não implica ser um grande realizador, e o que sobra em talento de escrita a Kaufman falta-lhe em capacidade de visualização. Kaufman não tem o talento de Spike Jonze e Michel Gondry para construir um universo visual em imagens e limita-se a ilustrar aplicada e fielmente as palavras que escreveu, deixando "Sinédoque, Nova Iorque" tombar numa espiral claustrofóbica que nenhum rasgo visual vem aligeirar. Esse lado de "teatro filmado" não deixa de ser adequado a um filme que vai muito lentamente contaminando uma realidade reconhecível com uma série de "non-sequiturs" tão absurdos quanto arrepiantes, mas não impede de sentirmos que faz aqui falta uma espécie de válvula de escape - como se Kaufman tivesse, ele próprio, deixado contagiar-se pela espiral neurótica de Caden e se mostrasse incapaz de lhe escapar, como se a sua necessidade de controlar cada um dos elementos desta meta-narrativa desdobrada esbarrasse na sua impossibilidade de o fazer constantemente. Querer ser demiurgo tem destas coisas.
O mundo é um palco
Para o espectador ou cinéfilo distraído ou quem não esteja na disposição de ir consultar um dicionário, um esclarecimento: sinédoque é uma figura de estilo literária em que se toma a parte pelo todo, ou vice-versa, o género pela espécie, etc. Com esta informação poderão compreender e decifrar aquele que, à partida, aparece como o mais estranho e bizarro filme do ano e que marca a estreia na realização de Charlie Kaufman, um dos argumentistas mais originais que surgiu em Hollywood na última década. Aliás, quem conhece os filmes que ele escreveu para outros realizadores ("Queres Ser John Malkovich?" e "Inadaptado", de Spike Jonze, "Confissões de Uma Mente Perigosa", de George Clooney, e "O Despertar da Mente", de Michel Gondry) tem meio caminho andado para entrar no singular e complexo mundo mental de Caden Cotard (Philip Seymour Hoffman), personagem central de "Sinédoque, Nova Iorque". Em todos estes filmes estamos face a uma mente que vai construindo um mundo muito próprio, que reproduz (ou quer reproduzir) o real a uma escala pessoal. De certo modo, todos eles representam desafios ao espectador, forçado, também ele, a fazer a sua própria construção mental com os elementos que o autor lhe dá. E o 'autor', neste caso, é tanto Kaufman como Cotard, que, no fim de contas, poderão ser uma e a mesma pessoa (jogo em que os seus argumentos são férteis), dado que "Sinédoque, Nova Iorque" parece ser o mais autobiográfico dos textos de Kaufman.
O processo de Kaufman neste filme não deixa de evocar o de Lars Von Trier em "Dogville", pelo menos na ideia da redução do real a uma abstracção: a cidade de Dogville reduzida a uma série de linhas desenhadas no soalho de um gigantesco palco, a cidade de Nova Iorque 'reproduzida' no interior de um armazém (e que se 'transforma' segundo a vontade de Cotard, como quando manda levantar a parede que oculta os apartamentos de um edifício). Mas enquanto o jogo cénico era evidente no filme de Trier, no de Kaufman o autor procura uma caução realista. Não é por acaso que o filme começa com Cotard dirigindo a encenação de "Morte de Um Caixeiro-Viajante", a peça de Arthur Miller, que surge como uma espécie de modelo para o projecto a que Cotard pretende dedicar-se a seguir: ser ele próprio uma espécie de Loman (a personagem central da peça de Miller) na recriação do seu próprio mundo e vida, com a vantagem de a poder acompanhar à distância, fazendo-se representar por outro (a representação deste acaba por se tornar mais real que a realidade, o que traz uma nova perturbação ao mundo mental de Cotard), e 'acompanhando-se' nos seus dramas passados (o abandono da mulher) e presentes (a doença). O problema, para o espectador, é que o tempo é outra componente do argumento manobrada pelo autor de forma aleatória, com passado e presente confundindo-se, assim como o real (?) e o imaginário.
Toda esta riqueza de significantes não será, evidentemente, benéfica para a carreira comercial do filme, num tempo em que a maioria das películas são de uma indigência intelectual confrangedora. Mas vale a pena aceitar o desafio que ele representa, com a profusão de pistas que oferece.
Manuel Cintra Ferreira, Expresso
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2 comentários:
Boa noite a todos.
Sou sócio assíduo das sessões do cineclube e embora seja a primeira vez que aqui deixo um comentário, passo por aqui frequentemente...
Venho só dizer que achei o argumento do filme genial e fora do comum (as semelhanças com a receita e tipo de "esquemas" usados no filme Queres ser J. Malkovich são de facto mto evidentes...). E Philip Seymour H. carrega o filme com enorme talento...
Gosto das introduções fundamentadas e apaixonadas que antecedem as sessões do cineclube...
Porém não posso deixar de observar que achei de mto mal gosto e completamente contra producente para o visionamento imparcial do filme o que aconteceu esta 2ªf.
Colocar alguém que não gostou do filme (e nitidamente a fazer um frete) a cumprir calendário deixando 2 ou 3 frases cinzentas introdutórias não é positivo. Ficou um clima estranho depois...
Nestes casos em que as únicas pessoas que viram o filme não têm uma opinião positiva do mesmo (pergunto-me então pq o exibem?) considero mais simpático não existirem introduções de circunstancia ou então que estas acrescentem alguma coisa ao espectador (alguma particularidade sobre o filme, historial do realizador, actores, etc...)
Enfim, fica aqui o meu desabafo...
Bons filmes!
Abraços cinéfilos
Caríssimo (se não fosse 'assíduo', era só caro ;-) sócio,
deixe-me contar-lhe uma história:
a bem dizer, não lha vou contar ainda - vou fazer post com ela!!
:D
obrigada pelo seu comentário, e volte sempre!
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