Cento e catorze actrizes iranianas e uma actriz francesa: espectadoras mudas da representação teatral Khosrow e Shirin, um poema persa do século XII, encenado por Kiarostami. O desenvolvimento do texto – que sempre apaixonou os espectadores na Pérsia e no Médio Oriente – permanece invisível para o espectador do filme. Toda a história é contada pelos rostos intensos e belos das mulheres que assistem ao espectáculo. Um mapa de ricas e pungentes emoções. É um trabalho “fora de campo” levado ao limite.
Homenagem absoluta ao rosto feminino: um fascinante exercício do cineasta iraniano.
O que interessa Kiarostami são unicamente as mulheres. Elas constituem um retrato composto de Shirin. Mas são ao mesmo tempo um manifesto político. Uma tal acumulação de rostos femininos tem qualquer coisa de subversivo num país tão patriarcal como o Irão. Mas o que mais nos interessa é o mistério destes olhares, que acabam por nos criar uma vertigem. Este filme tem algo de profundamente perturbador: estas mulheres não são apenas o retrato colectivo de uma história de amor, e por isso da mulher iraniana em todo o seu esplendor heróico, e erótico, mas o retrato também do espectador de cinema em geral. O espectador é o realizador último do filme, são os seus olhos que o fazem existir. Sublime demonstração do cineasta iraniano.
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Vincent Ostria, Les Inrockuptibles
É este o convite de "Shirin": espectadores de cinema, venham ver outros espectadores de cinema. Que é feito de nós, espectadores de cinema? E lembramo-nos do que dizia Serge Daney, que vamos ao cinema para que o filme nos veja? Em primeiro lugar, "Shirin" é isto: um olhar - apetece dizer: "elegíaco" - sobre essa espécie que todos os relatórios dão como estando em vias de extinção, o espectador de cinema; e um filme que se põe no lugar do filme, como um plano subjectivo do próprio ecrã, no momento em que olha para os seus espectadores. Por outras palavras, é este o convite de "Shirin": espectadores de cinema, venham ver outros espectadores de cinema. É um resumo muito simples do filme? É. Mas é importante preservar essa simplicidade, porque também é dela que Kiarostami está à procura.
Olhos nos olhos, ou quase; questão de ângulos, a câmara deambula perante a plateia, em movimentos laterais, mas é raro que apanhe alguém a olhar directamente para ela, antes um pouco mais para o lado ou um pouco mais para cima, para o lugar do suposto écrã, onde está ser exibido um suposto filme baseado numa velha lenda persa sobre um amor de perdição (é a heroína dessa lenda, Shirin, que dá nome ao filme). O efeito especular não é, em rigor, total, mas a sua sugestão é fortíssima - e é por isso que a sua dinâmica conceptual pede que o filme seja visto em sala de cinema, em situação "clássica", pesem embora todas as vezes em que já lemos essa mesma dinâmica conceptual de "Shirin" ser comparada a uma "instalação", assim menorizando o sentido que o filme faz em condições tradicionais de recepção (sentido que, parece-nos, só nestas condições é pleno).
Isto é o geral, passemos aos pormenores, sobretudo a este, fundamental: a plateia é composta essencialmente por mulheres, cento e tal actrizes iranianas de todas as idades, no meio das quais Kiarostami sentou ainda a bem conhecida Juliette Binoche - e o efeito de reconhecimento de cada vez que ela aparece em campo é estranho, quase uma interrupção da "suspension of disbelief" ou coisa parecida, mas nada nos garante que Kiarostami não a convidou justamente em busca desse efeito. No seu segmento para o "A Cada um o seu Cinema" (o filme de conjunto promovido pelo Festival de Cannes) Kiarostami já ensaiara o caminho de "Shirin", e há uma sequência parecida com este dispositivo (usando, no caso, uma representação de teatro Nô) no "Pont des Arts" do tão vilipendiado Eugène Green. Não é, evidentemente, a "originalidade" que é importante, mas a sua transformação numa experiência contemplativa de fundo, que progressivamente converte a sua simplicidade poética numa crescente ambiguidade - "Shirin" é um filme sobre o rosto feminino, feito numa sociedade islâmica teocrática - e num novelo artificioso que no fundo é o mesmo de todos os filmes de Kiarostami. Contrariamente às evidências, as mulheres não estão a ver filme nenhum, nem é seguro que estejam a ouvir o que nós ouvimos (o som e os diálogos do suposto filme): olhamos para elas sem saber o que é "reacção" e o que é "representação", o que é "espontâneo" e o que é "encenação". Razão para suspeitar, ou mais do que isso, para afirmar, que "Shirin" é a mais sofisticada "mise-en-scène" do olhar que alguma vez alguém fez. Seguramente, a mais bela.
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Luís Miguel Oliveira, Público
Nunca se poderia imaginar que um só rosto de mulher, mudo, parado,simplesmente a olhar, pudesse conter em si tanta acção. Nunca se poderia imaginar que uma lágrima a extravasar de um olho e a percorrer uma face fosse todo um ensaio sobre a nostalgia feminina. Nunca se poderia imaginar que Abbas Kiarostami, o genial realizador iraniano, fizesse do seu filme Shirin este ensaio de homenagem às mulheres, colocando seus rostos na mais imaculada das visibilidades, num país em que muitas vezes andam vendados de censura e prepotência. E que as colocasse em primeiro plano, quando as conjunturas patriarcais e cruéis da religião as arredam lá para trás. Na humilhação das retaguardas.
É um filme de "fora de campo". Algo que já foi feito por Bergman, quando filmou as caras de quem assistia à ópera mas não a ópera em si. Ou mesmo por João César Monteiro quando colocou o célebre casaco em cima da câmara, em Branca de Neve - mas no caso de Kiarostami sem um pingo de provocação ou de intenção experimentalista. Uma actriz francesa (Julliette Binoche)e 114 actrizes iranianas, com belos olhos oblíquos (Machado de Assis chamar-lhes-ia "olhos de ressaca", com os de Capitu), magnificamente debruados por sobrancelhas que traçam aquele arco perfeito (como só têm as mulheres orientais), assistem na obscuridade da sala de cinema a um filme. Que é uma história de amor, de Shirin, uma princesa arménia enamorada pelo rei da Pérsia- poema persa do século XII, uma história tão famosa e matricial no Médio Oriente como o Romeu e Julieta para a cultura ocidental. Nós ouvimos a acção do filme a decorrer, os diálogos, as batalhas, tilintares, risos, prantos, cascos de cavalo, relinchares, arfares, música, restolhares de água, ondas, pingos ou as espadas a cravarem-se nas carnes. Mas todas as emoções são-nos dadas através das expressões (sobretudo dos olhos) destas mulheres que assistem. É uma espécie de transferência, como se fossemos atacados por um género de cegueira especial e nos estivessem a fazer uma tradução em simultâneo das paixões da alma através de uma linguagem não verbal. Que é esta dos olhos e das suas nuances e metamorfoses, e das suas águas que se esgueiram devagar e escorrem pela face, dos pequenos esgares, dos mínimos movimentos destas sobrancelhas perfeitas, dos sobressaltos, dos sorrisos nunca abertos, nunca desbragados, nunca sonoros e daquele subtil ajeitar do lenço, gesto lesto e tão típico das mulheres islâmicas. As mãos também fazem parte dos rostos, quando repousam no queiXo ou deslizam pela zona da testa. Também há homens nesta plateia, mas Kiarostami retira-os do enquadramento, corta-lhes a cabeça, só para mostrar a irrelevância da sua presença.
Alguns rostos são maravilhosos. A iluminação é extraordinária, às vezes parece que as actrizes têm aqueles véus de gaze que se usava na objectiva para dar um ar mais etéreo às estrelas e esconder as imperfeições e outras injúrias nos close ups, nos tempos do cinema mudo. O é importante é invisível aos olhos, diz uma frase famosa. Mas o que é importante pode ser visível no fundo destes rostos, canais directos para alma e o coração. E o fora de campo torna-se dentro outra vez através destes olhos que em vez de pupila preta têm o lampejo de brilho projectado pela tela. Através da banda sonora formam-se as imagens, criam-se em cada um de nós os protagonistas que dizem frases como "o amor aquece os homens as mulheres queimam-se". E neste efeito espelho, neste voieurismo sobre o voieurismo há um abismo sem margens, só com precipícios.
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Ana Margarida de Carvalho, Visão
sobre Abbas Kiarostami
“Numa sala de espectáculos, a arte sai dos espectadores” Henri Langlois
Era uma vez uma princesa. Tão bela, tão livre, tão disposta a seguir o seu desejo. Foi amada por um rei, Khosrow, e um trabalhador, Farhad. Amou um e outro. Foi infeliz e sincera, livre e destroçada. Chamava-se Shirin, a sua história é inspirada em personagens reais – o rei Khosrow II Parwiz (590-628) e a rainha da Arménia que deu nome a uma cidade hoje entre o Irão e o Iraque, Qasr-eChirin. Os amores de Shirin foram cantados pelo grade poema épico persa O Livro dos Reis, e depois, no século XII, o poeta Nezâmi dedicou à história sensual e trágica a sua obra Khosrow e Shirin, tornando-a tão célebre no Irão como na Europa o são Romeu e Julieta e Tristão e Isolda.
Era uma vez um artista de cinema. Explorou até aos confins a sua arte. E, no início da sua carreira, Abbas Kiarostami definia-se como artista e pedagogo e por isso descobriu muito cedo que a arte do cinema podia ajudar a compreender melhor o mundo e a fazê-lo compreender melhor. Realizou curtas-metragens que mostram práticas do quotidiano (Duas Soluções para um problema, Com ou sem ordem), e foi, enquanto cineasta, testemunha precisa da Revolução iraniana, como nenhuma outra revolução terá cronista, foi testemunha e analista (Caso 1, Caso 2), estudou, sempre graças à realização, os sistemas de ensino (Trabalhos de Casa) e de justiça (Close-Up) ou os comportamentos cívicos (O Concidadão). Havia nestes trabalhos de pesquisa mais beleza e graça que em tantos filmes auto-proclamados obras de arte, e sobretudo esta beleza e esta elegância afiguravam-se como os meios necessários para cumprir a
tarefa. Desde o início (O Pão e a Rua, a primeira curta-metragem, Traje de Casamento, a primeira média, à primeira longa-metragem, O Viajante), os filmes de ficção têm também esta marca desta forma de ver o mundo, sabendo filmá-lo com elegância.
Kiarostami afirma há muito tempo que nenhuma obra digna desse nome é dada terminada ao público, que assim seria reduzido ao estatuto único de consumidor, mas sim que só teria sentido se permanecesse aberta, para ser terminada por cada um. É no olhar e no coração dos espectadores que a obra fica terminada e que a sua tarefa é abrir apenas o mais possível o espaço em que cada um pode entrar. Não foi o primeiro a dizê-lo e a colocá-lo nas suas obras, mas são raros os que o tenham feito com tanta consistência e talento. Mas é o primeiro a empurrar esta lógica de inteligência na arte ao limite, filmando os espectadores para mostrar como os rostos e os corpos manifestam o que experimenta o espírito e os corações devante uma proposta artística. A primeira tradução concreta desta inversão foi o espectáculo Tazieh, em que Kiarostami filma em grande plano e mostra em grandes ecrãs os rostos (separados) de homens e mulheres que assistem, comovidos, a uma representação de uma peça religiosa que comemora todos os anos no Irão o massacre de Kerbala.
Belo como a paixão de Joana d’Arc de Dreyer, e constitui-se sobre o mesmo princípio, toda a emoção se joga nos rostos.
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Jean-Michel Frodon
Homenagem absoluta ao rosto feminino: um fascinante exercício do cineasta iraniano.
O que interessa Kiarostami são unicamente as mulheres. Elas constituem um retrato composto de Shirin. Mas são ao mesmo tempo um manifesto político. Uma tal acumulação de rostos femininos tem qualquer coisa de subversivo num país tão patriarcal como o Irão. Mas o que mais nos interessa é o mistério destes olhares, que acabam por nos criar uma vertigem. Este filme tem algo de profundamente perturbador: estas mulheres não são apenas o retrato colectivo de uma história de amor, e por isso da mulher iraniana em todo o seu esplendor heróico, e erótico, mas o retrato também do espectador de cinema em geral. O espectador é o realizador último do filme, são os seus olhos que o fazem existir. Sublime demonstração do cineasta iraniano.
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Vincent Ostria, Les Inrockuptibles
É este o convite de "Shirin": espectadores de cinema, venham ver outros espectadores de cinema. Que é feito de nós, espectadores de cinema? E lembramo-nos do que dizia Serge Daney, que vamos ao cinema para que o filme nos veja? Em primeiro lugar, "Shirin" é isto: um olhar - apetece dizer: "elegíaco" - sobre essa espécie que todos os relatórios dão como estando em vias de extinção, o espectador de cinema; e um filme que se põe no lugar do filme, como um plano subjectivo do próprio ecrã, no momento em que olha para os seus espectadores. Por outras palavras, é este o convite de "Shirin": espectadores de cinema, venham ver outros espectadores de cinema. É um resumo muito simples do filme? É. Mas é importante preservar essa simplicidade, porque também é dela que Kiarostami está à procura.
Olhos nos olhos, ou quase; questão de ângulos, a câmara deambula perante a plateia, em movimentos laterais, mas é raro que apanhe alguém a olhar directamente para ela, antes um pouco mais para o lado ou um pouco mais para cima, para o lugar do suposto écrã, onde está ser exibido um suposto filme baseado numa velha lenda persa sobre um amor de perdição (é a heroína dessa lenda, Shirin, que dá nome ao filme). O efeito especular não é, em rigor, total, mas a sua sugestão é fortíssima - e é por isso que a sua dinâmica conceptual pede que o filme seja visto em sala de cinema, em situação "clássica", pesem embora todas as vezes em que já lemos essa mesma dinâmica conceptual de "Shirin" ser comparada a uma "instalação", assim menorizando o sentido que o filme faz em condições tradicionais de recepção (sentido que, parece-nos, só nestas condições é pleno).
Isto é o geral, passemos aos pormenores, sobretudo a este, fundamental: a plateia é composta essencialmente por mulheres, cento e tal actrizes iranianas de todas as idades, no meio das quais Kiarostami sentou ainda a bem conhecida Juliette Binoche - e o efeito de reconhecimento de cada vez que ela aparece em campo é estranho, quase uma interrupção da "suspension of disbelief" ou coisa parecida, mas nada nos garante que Kiarostami não a convidou justamente em busca desse efeito. No seu segmento para o "A Cada um o seu Cinema" (o filme de conjunto promovido pelo Festival de Cannes) Kiarostami já ensaiara o caminho de "Shirin", e há uma sequência parecida com este dispositivo (usando, no caso, uma representação de teatro Nô) no "Pont des Arts" do tão vilipendiado Eugène Green. Não é, evidentemente, a "originalidade" que é importante, mas a sua transformação numa experiência contemplativa de fundo, que progressivamente converte a sua simplicidade poética numa crescente ambiguidade - "Shirin" é um filme sobre o rosto feminino, feito numa sociedade islâmica teocrática - e num novelo artificioso que no fundo é o mesmo de todos os filmes de Kiarostami. Contrariamente às evidências, as mulheres não estão a ver filme nenhum, nem é seguro que estejam a ouvir o que nós ouvimos (o som e os diálogos do suposto filme): olhamos para elas sem saber o que é "reacção" e o que é "representação", o que é "espontâneo" e o que é "encenação". Razão para suspeitar, ou mais do que isso, para afirmar, que "Shirin" é a mais sofisticada "mise-en-scène" do olhar que alguma vez alguém fez. Seguramente, a mais bela.
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Luís Miguel Oliveira, Público
Nunca se poderia imaginar que um só rosto de mulher, mudo, parado,simplesmente a olhar, pudesse conter em si tanta acção. Nunca se poderia imaginar que uma lágrima a extravasar de um olho e a percorrer uma face fosse todo um ensaio sobre a nostalgia feminina. Nunca se poderia imaginar que Abbas Kiarostami, o genial realizador iraniano, fizesse do seu filme Shirin este ensaio de homenagem às mulheres, colocando seus rostos na mais imaculada das visibilidades, num país em que muitas vezes andam vendados de censura e prepotência. E que as colocasse em primeiro plano, quando as conjunturas patriarcais e cruéis da religião as arredam lá para trás. Na humilhação das retaguardas.
É um filme de "fora de campo". Algo que já foi feito por Bergman, quando filmou as caras de quem assistia à ópera mas não a ópera em si. Ou mesmo por João César Monteiro quando colocou o célebre casaco em cima da câmara, em Branca de Neve - mas no caso de Kiarostami sem um pingo de provocação ou de intenção experimentalista. Uma actriz francesa (Julliette Binoche)e 114 actrizes iranianas, com belos olhos oblíquos (Machado de Assis chamar-lhes-ia "olhos de ressaca", com os de Capitu), magnificamente debruados por sobrancelhas que traçam aquele arco perfeito (como só têm as mulheres orientais), assistem na obscuridade da sala de cinema a um filme. Que é uma história de amor, de Shirin, uma princesa arménia enamorada pelo rei da Pérsia- poema persa do século XII, uma história tão famosa e matricial no Médio Oriente como o Romeu e Julieta para a cultura ocidental. Nós ouvimos a acção do filme a decorrer, os diálogos, as batalhas, tilintares, risos, prantos, cascos de cavalo, relinchares, arfares, música, restolhares de água, ondas, pingos ou as espadas a cravarem-se nas carnes. Mas todas as emoções são-nos dadas através das expressões (sobretudo dos olhos) destas mulheres que assistem. É uma espécie de transferência, como se fossemos atacados por um género de cegueira especial e nos estivessem a fazer uma tradução em simultâneo das paixões da alma através de uma linguagem não verbal. Que é esta dos olhos e das suas nuances e metamorfoses, e das suas águas que se esgueiram devagar e escorrem pela face, dos pequenos esgares, dos mínimos movimentos destas sobrancelhas perfeitas, dos sobressaltos, dos sorrisos nunca abertos, nunca desbragados, nunca sonoros e daquele subtil ajeitar do lenço, gesto lesto e tão típico das mulheres islâmicas. As mãos também fazem parte dos rostos, quando repousam no queiXo ou deslizam pela zona da testa. Também há homens nesta plateia, mas Kiarostami retira-os do enquadramento, corta-lhes a cabeça, só para mostrar a irrelevância da sua presença.
Alguns rostos são maravilhosos. A iluminação é extraordinária, às vezes parece que as actrizes têm aqueles véus de gaze que se usava na objectiva para dar um ar mais etéreo às estrelas e esconder as imperfeições e outras injúrias nos close ups, nos tempos do cinema mudo. O é importante é invisível aos olhos, diz uma frase famosa. Mas o que é importante pode ser visível no fundo destes rostos, canais directos para alma e o coração. E o fora de campo torna-se dentro outra vez através destes olhos que em vez de pupila preta têm o lampejo de brilho projectado pela tela. Através da banda sonora formam-se as imagens, criam-se em cada um de nós os protagonistas que dizem frases como "o amor aquece os homens as mulheres queimam-se". E neste efeito espelho, neste voieurismo sobre o voieurismo há um abismo sem margens, só com precipícios.
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Ana Margarida de Carvalho, Visão
sobre Abbas Kiarostami
“Numa sala de espectáculos, a arte sai dos espectadores” Henri Langlois
Era uma vez uma princesa. Tão bela, tão livre, tão disposta a seguir o seu desejo. Foi amada por um rei, Khosrow, e um trabalhador, Farhad. Amou um e outro. Foi infeliz e sincera, livre e destroçada. Chamava-se Shirin, a sua história é inspirada em personagens reais – o rei Khosrow II Parwiz (590-628) e a rainha da Arménia que deu nome a uma cidade hoje entre o Irão e o Iraque, Qasr-eChirin. Os amores de Shirin foram cantados pelo grade poema épico persa O Livro dos Reis, e depois, no século XII, o poeta Nezâmi dedicou à história sensual e trágica a sua obra Khosrow e Shirin, tornando-a tão célebre no Irão como na Europa o são Romeu e Julieta e Tristão e Isolda.
Era uma vez um artista de cinema. Explorou até aos confins a sua arte. E, no início da sua carreira, Abbas Kiarostami definia-se como artista e pedagogo e por isso descobriu muito cedo que a arte do cinema podia ajudar a compreender melhor o mundo e a fazê-lo compreender melhor. Realizou curtas-metragens que mostram práticas do quotidiano (Duas Soluções para um problema, Com ou sem ordem), e foi, enquanto cineasta, testemunha precisa da Revolução iraniana, como nenhuma outra revolução terá cronista, foi testemunha e analista (Caso 1, Caso 2), estudou, sempre graças à realização, os sistemas de ensino (Trabalhos de Casa) e de justiça (Close-Up) ou os comportamentos cívicos (O Concidadão). Havia nestes trabalhos de pesquisa mais beleza e graça que em tantos filmes auto-proclamados obras de arte, e sobretudo esta beleza e esta elegância afiguravam-se como os meios necessários para cumprir a
tarefa. Desde o início (O Pão e a Rua, a primeira curta-metragem, Traje de Casamento, a primeira média, à primeira longa-metragem, O Viajante), os filmes de ficção têm também esta marca desta forma de ver o mundo, sabendo filmá-lo com elegância.
Kiarostami afirma há muito tempo que nenhuma obra digna desse nome é dada terminada ao público, que assim seria reduzido ao estatuto único de consumidor, mas sim que só teria sentido se permanecesse aberta, para ser terminada por cada um. É no olhar e no coração dos espectadores que a obra fica terminada e que a sua tarefa é abrir apenas o mais possível o espaço em que cada um pode entrar. Não foi o primeiro a dizê-lo e a colocá-lo nas suas obras, mas são raros os que o tenham feito com tanta consistência e talento. Mas é o primeiro a empurrar esta lógica de inteligência na arte ao limite, filmando os espectadores para mostrar como os rostos e os corpos manifestam o que experimenta o espírito e os corações devante uma proposta artística. A primeira tradução concreta desta inversão foi o espectáculo Tazieh, em que Kiarostami filma em grande plano e mostra em grandes ecrãs os rostos (separados) de homens e mulheres que assistem, comovidos, a uma representação de uma peça religiosa que comemora todos os anos no Irão o massacre de Kerbala.
Belo como a paixão de Joana d’Arc de Dreyer, e constitui-se sobre o mesmo princípio, toda a emoção se joga nos rostos.
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Jean-Michel Frodon
Título original: Shirin
Realização: Abbas Kiarostami
Direcção de Fotografia: Mahmoud Kalari
Montagem: Abbas Kiarostami, Arash Sadeghi
Interpretação: Mahnaz Afshar, Pegah Ahangarani, Taraneh Alidoosti, Juliette Binoche...
Origem: Irão
Ano: 2008
Duração: 92’
Classificação: M/12
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