dos respeitos mútuos, 2ªf, 17, 21h30, IPJ - lola + a history of mutual respect



Em complemento, exibe-se também A History of Mutual Respect, filme que valeu a Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt o Leopardo de Ouro no recente Festival de Cinema de Locarno. São 23 minutos visualmente muito atraentes, servidos com um argumento risível e uma representação patética das aventuras de dois rapazes em busca do amor verdadeiro na selva sul-americana.

Um big bang chamado Brillante Mendoza

Este filme é uma catedral em céu aberto do cinema de um cineasta chamado Brillante Mendoza.

Com a retrospectiva, em Janeiro, que a Zero em Comportamento dedicou à obra do filipino Brillante Mendoza - do primeiro filme, "Massagista", 2005, aos dois últimos, de 2009, "Kinatay" e "Lola" -, testemunhámos um "big bang": vimos um universo em expansão, o de alguém que começou em territórios próximos do "exploitation", do erótico (há um filme, "Pantasya", de 2007, que ele não considera na sua filmografia oficial, que assinou como Dante Mendoza) ou até da saga telenovelesca e "glossy" ("Kaleido", 2006), e que se decide a inverter a direcção: da óbvia dança do ventre a um certo tipo de cinema e de espectadores para aquilo que o próprio realizador, em entrevista que publicamos neste suplemento, chama de percurso de auto-descoberta. Tudo terá começado com a visão, tardia, do neo-realismo italiano... e como ele transcedeu isso e se transcendeu.

Veja-se aonde ele chegou: já estando disponível em DVD em Portugal "Serbis"/ "Serviços" (2008) - a verdade é que, valendo o que vale a comparação entre universos distintos, este filme é aquilo que "Goodbye Dragon Inn", de Tsai Ming-liang, não conseguiu ser -, passa agora a estar acessível em DVD "Kinatay" (um "tour de force" infernal em que todos, a personagem principal e nós, espectadores, perdem a inocência) e, em sala e DVD, "Lola", melodrama em que o realizador se despoja daquilo que pode restar de provocador, até mesmo de confronto algo ingénuo, em algumas sequências dos seus filmes, para uma súmula de (neo-?)realismo e melodrama, de documental e artifício.

Filmando a odisseia de uma avó que procura o corpo do neto assassinado, as suas dificuldades para organizar o funeral, a sua incapacidade de fazer notar a sua existência pela Justiça, e o drama de uma outra avó cujo neto é o suspeito daquele assassínio, Mendoza juntou em "Lola" ("Avó") o que eram duas histórias verídicas separadas. É um atitude e um gesto de contornos algo "pulp fiction", porque podia ter resultados grosseiros, óbvios - reparo que alguns continuam a fazer ao cinema de Mendoza. Mas o que nos é devolvido é de uma subtileza imensa e intensa, tão frágil e tão lírico, mas tão destemido, como uma folha de papel ameaçada pelo vento. E que faz uma síntese e, simultaneamente, uma renovação dos procedimentos do filipino: mistura não profissionais com actores (para quem não duvida que as duas "avós" são mulheres que o realizador encontrou na chamada "vida real" para caucionar a "verdade" do seu filme, saiba que elas são Anita Lindo e Rustica Carpio, vedetas do "star system" filipino), continua a fazer-nos descobrir, através do périplo com as personagens pelas cidades, uma geografia física e humana implacáveis - como que querendo manter-se o mais próximo do documento de uma sociedade que, é esse o ponto de Brillante, é uma ratoeira -, mas cresce na forma como progressivamente integra o artifício.

Isto é grande cinema, e grande cinema político, como também o é a obra de Rainer W. Fassbinder e Douglas Sirk (estes com um acréscimo de masoquismo e de tortura na relação entre as personagens, aspecto que não se destaca no cinema de Mendoza). Isto é grande melodrama, transfigurando as ruas como se elas fossem um cenário de estúdio, mas sendo as as ruas de Manila e não a sua reprodução - os bairros inundados, a sequência do funeral, as noites de chuva, a vegetação como uma estufa, a chuva e o vento, naturais e criadas pela máquina de cinema. Isto é uma catedral em céu aberto do cinema de um cineasta chamado Brillante Mendoza. A Rainha "Lola", de Brillante Mendonza.
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Vasco Câmara, Público



"Lola" é um filme belíssimo com a noção perfeita das forças desencadeadas pela emoção, desde as tempestades exteriores que varrem o espaço urbano, assolado por ventos ciclónicos e chuvas torrenciais, até aos conflitos interiores em duas velhas senhoras dignas, confrontadas com crimes e sentimentos contraditórios de sobrevivência familiar. Todas as condições do grande melodrama se conjugam para fazer explodir o que, de certo modo, parece apenas iminente: as reuniões familiares, a perda do controlo, o excesso de pobreza, uma criminalidade reinante que se abate sobre o domínio do individual. Apenas existe um limite fundamental, que impede que o filme arranque para o delírio absoluto, próprio das obras-primas melodramáticas, uma excessiva atenção à mensagem social, uma espécie de necessidade de explicar o excesso pelas condições circundantes, um "realismo" quase próximo do "film-vérité". Dito isto, trata-se, apesar de tudo de um filme a não perder por nada deste mundo, confirmando um grande cineasta de uma interessante cinematografia filipina, pouco conhecida e valorizada: Brillante Mendoza. Não esqueçam o nome.
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Mário Jorge Torres, Público



Brillante Mendoza passou pela Culturgest em Janeiro. Nome consagrado em festivais de cinema - conquistou prémios em Cannes, Las Palmas e Miami - o último filme do realizador é também o primeiro dele a chegar aos cinemas nacionais: Lola ("avó", nas Filipinas).

Uma velhota está a tentar acender uma vela no meio de uma tempestade. Tem uma criança ao seu lado e quando acender a vela vai colocá-la no local onde o seu neto foi esfaqueado.

Estamos em Manila, nas Filipinas, onde não é coisa estranha alguém perder a vida por causa de um telemóvel. A tempestade – o barulho intimidante do vento – vai continuar enquanto ela se desloca para a esquadra, onde descobre que já há um suspeito para o homicídio. Neste momento não se vão cruzar, mas há outra velhota que está ali para dar comida ao seu neto – preso por esfaquear um homem. Por causa de um telemóvel.

A premissa é avassaladora. O neto de uma matou o neto da outra. Uma procura dinheiro para o funeral. A outra procura uma segunda oportunidade para o neto. E em todo este percurso testemunhamos uma realidade bruta, numa cidade cujas ruas inundadas lembram uma Veneza triste e miserável.

Brillante Mendoza sabe dar-nos subtileza sem nunca nos poupar à realidade. Temos planos próximos em que as rugas não são camufladas, temos cenas que se prolongam com calma – como a de uma das avós à procura de uma casa de banho no tribunal –, desafiando-nos a não desviar o olhar. Há problemas sociais e económicos e há pobreza sujeita a burocracias tolas. E tudo isso está aqui, sem que Lola se assuma como manifesto político, sem se deixar corroer por excesso de moralismo. Pelo contrário: nunca deixamos de sentir que o importante está naquelas duas mulheres, envelhecidas e aparentemente frágeis, mas incapazes de desistir.

Lola é assim: um trabalho extremamente seguro, num ritmo pausado mas implacável a cada cena.

É também um exercício difícil para os seus espectadores. Algo ingrato, até, para quem pensa poder encontrar aqui uma sensação de closure, de lição moral e definitiva. Mas tudo se esbate quando percebemos que é possível negociar coisas tão absolutas como a morte e a vida, apenas porque é necessário prosseguir caminho. Às vezes o cinema não tem nada de divertido; muito menos de escapista. É um soco no estômago que dói que se farta. E vale a pena por isso mesmo.
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Pedro Filipe Pina, vousair.com




INCLUI DECLARAÇÕES DO REALIZADOR
No espaço de quatro meses, no ano de 2009, Brillante Mendoza passou de besta a bestial.

Maio, Festival de Cannes, "Kinatay", gente a abandonar a sala, irada, violentada, a precisar de cortar com uma experiência tão negra e a necessitar de espantar fantasmas - e aquela declaração (apressada) de um crítico americano de que talvez não houvesse 10 espectadores no mundo que dessem por bem empregue o dinheiro no filme (o que, apostamos, ele já engoliu).

Setembro de 2009, Festival de Veneza, e aqueles que tinham feito o manguito meses antes ao prémio de realização dado em Cannes, pelo júri presidido pelo actriz Isabelle Huppert, a descobrirem que o sádico filipino que não resistia a ir sempre até ao fim das coisas afinal era capaz "disto" - e isto é "Lola".

É natural que tenha sido assim, porque o próprio Brillante também precisou de oscilar.

"'Kinatay” foi muito difícil de filmar, técnica e emocionalmente, tive de estar a 100 por cento. Depois de Cannes o filme continuava comigo, tinha tirado tudo de mim, obrigou a uma exposição profunda do meu ser na forma como vivi alguns dos momentos do filme. Precisei de fazer outro logo a seguir, de colocar a minha energia artística ao serviço de outra obra.

'Lola' era um projecto com três anos, era a estação das chuvas nas Filipinas, que inunda tudo, o que me convinha, e não esperei. Precisava deste filme emotivo, como uma pausa para respiração. Queria provar a mim próprio que podia ser uma pessoa emotiva. Que não sou apenas soturno", diz-nos, ao telefone, de Manila.

Mas numa coisa e noutra, Brillante Mendoza fez "bingo". Bem vistas as coisas, é o mesmo negrume nos dois filmes, que não são diferentes como o dia da noite, embora haja mais escuridão em "Kinatay" e mais luz - e sobretudo mais água em "Lola".
Mantém-se, por exemplo, essa forma de colocar as personagens em movimento, sempre a andar, sempre a andar, sempre a andar, para mostrar no final (Brillante não recusa que esse dispositivo pode ser lido como "statement”, esses finais de filmes em que há uma falsa e amarga resolução) que não chegam a lado nenhum na sociedade fllipina - não precisa de ser um périplo por uma cidade, pode ser o interior de um cinema delapidado tornado hora de ponta para os corpos, como em "Serbis" /"Serviços" , de 2008 .

São como os hámsters na roda da gaiola, sempre em movimento e sempre no mesmo sítio, de onde nunca se sai, porque qualquer hipótese de saída tem um preço emocional e moral que obriga a que se desça mais um degrau na escala da integridade humana. "É uma forma de mostrar que nas Filipinas as pessoas estão enjauladas".

"Kinatay", então: um aspirante a polícia, acabado de casar, com filho já nascido, e com direito à vida nor¬mal, vê-se metido numa carrinha na noite de Manila - e o espectador vai com ele, não tem outro remédio se vê o filme ... - em direcção à violação e desmembramento, porque o trabalho é completo, de uma prostituta que não pagou as dívidas. O espectador é "voyeur" e passivo como esse jovem normal, e deve ser isso o que (nos) leva a perguntar: "Mas aonde é que este Brillante nos quer levar, o que é que ele quer provar?". E tal como o jovem, normal como nós, acaba como se nada tivesse acontecido à sua vida, que pode continuar, também o espectador sai, aparentemente, sem ponta de sangue no vestuário - mas não fica incólume, e assim se explica que se vire contra o realizador. As reacções de Cannes estão explicadas.

"Lola": duas avós com percursos cruzados numa Manila inundada pela estação das chuvas que transforma bairros da capital filipina na Veneza da Ásia, mas esta Veneza é proletária e endurecida, já se acostumou aos caprichos naturais e anda de barco onde antes andava a pé.

Uma avó vai reconhecer o cadáver do neto morto na véspera num assalto - compra o caixão e trata do ritual funerário, mas quer ver o rosto do assassino, e Brillante, ao ir atrás dela, tanto desenha a geografia de uma cidade como descreve o mundo relacional da personagem, e assim o nosso mundo de espectadores também se expande.

A outra vai visitar o neto que está preso, acusado de ter assassinado um rapaz num assalto.

As duas, interpretadas por velhas divas do cinema filipino, Anita Lindo e Rustica Carpio, chegam a um compromisso, porque não há dinheiro para advogados e para levar o caso em frente. A lei, a moral e a ética não são a mesma coisa, é verdade, mas as três ficam na mesma situação - para trás - e o último plano é significativo sobre a vida e o esforço dos hámsters.



O que se assinala em "Lola" - diferença assinalável em relação a "Kinatay" - é que, com este filme, o homem, Brillante Mendoza, ascende ao modo cruel do melodrama de que Douglas Sirk e, inspirado por ele, Rainer W. Fassbinder foram cultores: um afago às personagens na ratoeira. Colocando de fora a tortura sadomasoquista em que o realizador alemão de "O Medo Come a Alma" se esmerou com as suas personagens e com os seus actores - o cinema de Mendoza prescinde disto -, também aqui o melodrama é arma política. Não que Brillante não tivesse já estado nesse território - "Foster Child" (2007), sobre os meandros do mercado da adopção nas Filipinas e sobre as dependências emocionais e económicas que isso engendra, já era um magnífico e comovente melodrama. Mas desta vez a fusão entre o documental e o artificioso é mais imbricada e estarrecedora - continuando fiel à forma de trabalhar do realizador, que se baseia em históricas verídicas, mistura actores profissionais com não-actores, não os dirigindo, integrando os "acidentes". A chuva, por exemplo, em "Lola". E aquela sequência, uma avó ("lola", em filipino), o neto, um guarda-chuva e uma vela que o vento não deixa acender, que é tão lírica - e tão coreografada - como uma sequência de um mudo filmado em estúdio, e não é excessivo delírio ver em Anita Lindo a fragilidade de papel ao vento de Lilian Gish num filme de Sjostrom ou de Griffith. Há momentos em que os cenários naturais, os exteriores, parecem tão naturais como uma estufa.

"Os planos com cenas de chuva e de vento misturam artificio e realidade, sim" , confirma o realizador. "Não estou a perder o que desenvolvi antes, ou seja, esse sentimento de verdade do cinema. Estou a trazer algo de novo ao meu cinema. E alguns efeitos existem para tornar as coisas mais eficazes. Mas, tal como nos outros meus filmes, também aqui não ensaiei com os actores, a não ser questões técnicas. Digo-lhes para fazer o que têm a fazer e filmo-os. Essa sequência, concretamente, filmei-a às 7h30 da manhã. Queria apanhar aquela luz quando ainda é um bocado escuro. Tínhamos uma máquina de vento. E aconteceu uma coisa: acabámos de filmar, e alguém que vivia naquele bairro aproximou-se de mim e disse: 'Ainda bem que filmou hoje, porque ontem um ladrão foi morto exactamente no sítio onde você colocou a vela.' Eu não queria acreditar: era essa a história do filme, aquilo que estávamos a filmar, uma avó a colocar uma vela no lugar onde o neto foi morto. Nem disse nada aos meus actores, mas isso para mim, no primeiro dia de rodagem, foi como uma premonição: que o filme ia conduzir-os." Apanhemos então este melodrama, está escrito no vento.

"Já era realizador quando vi os filmes do neo-realismo italiano. Como espectador, antes de ser cineasta, não eram estes os filmes a que eu dava valor. Foi quando comecei a fazer filmes percebi o que é que ali estava. E isso é algo que cresce connosco. Aquilo que é hoje o meu cinema é uma descoberta minha. Eu adorava ver os 'blockbusters' de Hollywood. Mas depois tive a sorte de ser verdadeiro em relação a mim próprio, de seguir os meus instintos, e assim desenvolvi a minha estética. Afastei-me do que gostava antes. É uma descoberta. De mim próprio".

E uma forma de construir para si um lugar, no novo cinema filipino, de uma certa solidão. Que convive com a aclamação internacional. Como reconhece, o público filipino "em geral" não vai ver os seus filmes. "Por isso, quando estreio, adopto um 'low profile' , duas ou três salas, sessões especiais. Os meus filmes não são para o público 'mainstream' filipino. Mesmo que tenhamos muitos prémios, não haverá muita gente a ver os meus filmes" - estamos a falar de Manila e das Filipinas, só que sabemos que isto se passa em outros países e outras cidades. "Talvez numa outra vida. É preciso estar desperto para apoiar este cinema".

Depois do prémio de Cannes, a "Kinatay" - e logo a um filme tão implacável como "Kinatay" -, o Governo filipino e a então Presidente do país, Gloria Arroyo, foram obrigados a não-estranheza pelo silêncio governamental e presidencial e Arroyo teve de dar os parabéns. "É irónico, porque a pessoa que traz as honras ao país é a pessoa que critica a sociedade desse país. Mas eles não tinham hipóteses de não me cumprimentarem." Até Tarantino, que em 2009 competia, com o seu "Sacanas sem Lei", contra "Kinatay" para a Palma de Ouro mandou uma mensagem ao realizador, felicitando-o pelo que tinha conseguido fazer.
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Vasco Câmara, Público

Título original:
Realização: Brillante Mendonza
Argumento: Linda Casimiro
Interpretação: Anita Libna, Rustica Carpio, Tanya Gomez, Jhong Hilario,
Ketchup Eusebio, Benjie Filomeno, Bobby Jerome Go, Geraldine Villamil, Nico Nullan, Hope Matriano, Tim Yap
Fotografia: Odyssey Flores
Montagem: Kats Serraon
Música: Teresa Barrozo
Origem: França/ Filipinas
Ano de Estreia: 2009
Duração: 110’


A HISTORY OF MUTUAL RESPECT, de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt
Curta-metragem rodada no Brasil, Argentina e Portugal, produzida com um orçamento muito reduzido por uma equipa de três elementos: Gabriel Abrantes, Daniel Schmidt e Natxo Checa. O elenco de actores tem como principais intérpretes os dois realizadores e uma série de actores não profissionais provenientes dos locais de filmagem. O filme narra a história de dois jovens rapazes americanos confrontados com a desilusão da experiência na cidade utópica e modernista de Brasília. Partem então em busca do "amor puro", que irão encontrar numa jovem indígena da floresta virgem.


Título original: A History of Mutual Respect
Realização: Daniel Schmidt, Gabriel Abrantes
Argumento: Gabriel Abrantes
Interpretação: Gabriel Abrantes, Daniel Schmidt, Alcina Abrantes, Joana nascimento
Fotografia: Natxo Checa
Montagem: Gabriel Abrantes, Daniel Schmidt
Origem:
Ano de Estreia: 2010
Duração: 23’

Entrevista aos realizadores



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