Dia 14
A JANELA, 2001, 104’
NOTA DE INTENÇÕES
(O phylm ele mesmo, propriamente dito)
Primeira obra do Senhor Ego em dimensão standard «A Janela (Maryalva Mix)» é uma pelycula de longa metragem de 104 minutos sonora e muda, colorida e a preto e branco, rodada em filme super-8, 16mm, 35mm (sobretudo) e em vídeo mini-dv, com cópia final em 35mm Dolby® estéreo.
Trata-se também de um jogo, o jogo do Kem é o antónyo?™, um drama montado sobre uma narrativa não-linear e não-elementar - montagem arbitrária mas não-aleatória - desenhado na forma de um eskyzo-fado que aborda o destino de um arcaico pseudo-eskyzo-fadista da Bica.
Trata-se de uma obra que pretende 'recuperar' uma tradição burlesca e excentricionista(!): os actores falantes improvisaram monólogos, os actores mudos desenvolveram arquétipos de personagens antoninos - incluindo algumas tiradas sobre peixes.
A dimensão referencial, multi-cultural e 'kosmopolítico', pretende sublinhar o carácter popular de um certo lisboeta português de uma época para quem, apesar de tudo isso, "a Bica é um mundo!" e o Tejo a sua fronteira (ou vice versa).
O tipo de uso e a distorção da iconografia, gráfica, visual e sonora, é usada como 'imagens do pensamento/realidade', sendo a ideia de frequência/interferência rádio (e neuro-bioquímica) - a sua sintonização e dessintonização - uma cine-gramática toska e romba usada como orientação karytativa.
Trata-se de um filme-artefakto que resulta de uma intervenção plástica "ao vivo", isto é: é um filme sem "pós-produção" - todos os "efeitos" do filme (a divisão do écran em quadros-bd) foram realizados durante a rodagem (filmando e refilmando por diferentes vezes o mesmo pedaço de película) ou então executados sobre a própria película ( no caso dos riscos e côres).
O rekurso a yntertítulos eskritos em português sohniko, uma synteze proto-kryoula & retroh-futurista da lyngua portugueza, dezenvolvida e reafinada ao retardador ao longo da últyma dékada do sékulo.
Edgar Pêra
O TRABALHO
O trabalho do Sr. Ego
Da ideia ao filme
Quando saí da Escola de Cinema tive um início desastroso: era um inadaptado e encerrei logo a actividade. Voltei à carga e descobri que gostava mais de «répérages» que de filmes. O que me interessava existia na realidade, não em histórias da carochinha. Não procuro uma equipa para filmar mas para atacar o terreno de rodagem. O filme é sempre encarado como um território de investigação. Sem investigação não há ficção. Numa ficção convencional recriam-se acontecimentos. Eu tento criá-los. As centenas de páginas do guião ficam na gaveta no momento de filmar: é o exame final, sem cábulas, não tenho um papel na mão e jogo de cabeça, ainda por cima com outros cromos da bola. E a investigação é isto: estar do lado da amiba, dizer não ao microscópio. Tento ir para o meio dos protozoários! O que mais me lixa é o National Geographic com aqueles tipos escondidos nos arbustos, à espera que o crocodilo mergulhe no lago.
Montagem
É o lado mais frankensteiniano do cinema, o que lhe dá vida. Organizo o caos sem uma «decoupage» pré-programada. Se ela existe, é a de um directo sobre uma manifestação que não sabe para onde vai. A planificação é feita a quente, passo a passo: estou à câmara e readapto-me ao que está a acontecer, sem desfasamento. Não há uma fórmula mágica nisto. O que tento levar para a montagem é o ritmo da rodagem. A minha montagem está entre a escrita normal e a surrealista: ando sempre a controlar o cadáver esquisito dos meus filmes.
Choque imagem-som
O computador é um elemento da redenção que me permitiu trabalhar. Gosto da agilidade e do pulsar do rato, de criar conflitos entre a imagem e o som, pôr o princípio no fim e o fim no meio, para ver o que dá, nem que seja só para testar a chapa. Quero descobrir se uma determinada imagem pode levar uma porrada com um som qualquer e resistir-lhe. Uso muito pouco som directo, e estas coisas só se podem digladiar na montagem. Se coloco um determinado som num segundo qualquer, posso acabar por retirar a imagem desse segundo. Mas isto tem de ser organizado, não pode ser uma coisa fundamentalista, não se pode cair num enorme barroquismo, senão é o «twin terror», o patinanço completo.»
Edgar Pêra
O Homem da Máquina de Filmar
Dá pelo título de "A Janela (Marialva Myx)" e é assim a modos de um "ovni" de cinema português que esta semana aterrou. O seu "autor" é Edgar Pêra que, apesar de um outro filme anteriormente estreado, "Manual de Evasão Lx94" , tem sido há mais de 10 anos uma espécie de presença fantasma no cinema português: de quando em quando, lá aparecia, em manifestações mais ou menos paralelas, um daqueles inclassificáveis produtos audiovisuais com as marcas distintivas da sua linha de montagem.
"Presença fantasma" como? A resposta está subentendida num pequeno deslize no enunciado acima, entre um artigo indefinido e um outro definido: "de cinema português" e "no cinema português". Diferentemente de um modo de produção dominante, cuja referência tem sido o apoio financeiro do Estado via Instituto Português de Cinema, Pêra foi mais ou menos continuadamente filmando, com a mobilidade permitida pelos novos meios técnicos. O seu cinema estava algures, certamente "português" nas suas inscrições sociais e culturais, mas reivindicando uma exterioridade, e mesmo emancipação.
Em parte por isso, ou melhor, talvez com isso, Pêra foi construindo uma "persona", com as marcas de assinatura dos "k", em vez dos "c", e dos "y", em vez do "i" escarrapachados nos genéricos, e dando por nomes como "homem-kâmara" ou "senhor ego". É assim a modos que o seu "folklore", mais ou menos confundindo-se com uma mitologia de marginalidade. A presente estreia de "A Janela", numa "operação Edgar Pêra" que também inclui dois programas com outros filmes seus, permite esclarecer várias coisas.
Dificilmente a aura de "marginalidade" se pode aplicar a um cineasta que foi nomeadamente continuando a sua actividade com sucessivos trabalhos de encomenda: "Manual de Evasão" (para Lisboa-94),"A Cidade de Cassiano" (em torno do arquitecto Cassiano Branco), "SWK4" (Almada Negreiros), "O Trabalho Liberta?" (para a cadeia de televisão Arte),"Lisboa-boa 345 dt" (Festival dos Oceanos), "25 de Abril Aventura Demokrátika" (Centro de Documentação 25 de Abril) - e Pêra ultima duas outras, um telefilme para a SIC e "O Homem-Teatro" (sobre António Pedro).
Esta sucessão, que no crivo da tal "marginalidade" o pode desqualificar, é no entanto indício do que é efectivamente importante: a reiterada disponibilidade para filmar e a construção de um modo de produção própria, numa atitude inédita no cinema português.
Se por acaso numa rua de Lisboa o leitor se cruzar com um transeunte com uma máquina de filmar, atenção que pode não ser um turista mas sim Edgar Pêra. É um tipo de labor representativo de um dos fenómenos mais importantes do cinema contemporâneo. Sobretudo com as câmaras de vídeo, há verdadeiros novos centauros, observadores e intervenientes numa realidade imediata, o corpo confundindo-se com uma câmara, radicalmente inscrevendo de modo novo o sujeito no próprio processo filmico .
O que no caso de Pêra se torna particularmente interessante é que esta postura não se compraz numa imanência do real. Pelo contrário, o seu modo distintivo é a sucessão de manipulações que opera num manancial de materiais heteróclitos ("A Janela", por exemplo, foi filmado em 35mm, super 8mm, video), designadamente por operações de montagem e de incrustação de "parasitas" na imagem.
A janela , sabe-se, é uma clássica metáfora do cinema, "janela aberta para o mundo". No caso, em "A Janela", Pêra filma efectivamente uma, aberta para o mundo que tem como microcosmos o lisboeta bairro da Bica - mundo portanto numa escala reduzida, tal como o modo de produção. Mas o olhar cinematográfico que rege este peculiar "mundo" é altamente formalista.
Pêra pode reivindicar para si o título do famoso filme de Dziga Vertov, e um dos grandes exemplos do formalismo russo-soviético, "O Homem da Câmara de Filmar" - ou "máquina de filmar", a noção da prótese maquinista do corpo humano sendo de rara pertinência. De resto, os modos como vai assinando os seus filmes, por exemplo como "filmado, dirigido e montado", Pêra assinala como o trabalho de "direcção" (de realização, de autoria), se baliza entre os actos de "filmar" (é ele próprio o seu "cameraman") e "montar" (idem).
É então interessante notar que estas dicotomias filmar/montar ou real/manipulado, se sucedem ao longo da obra noutras, como documentário/ficção ou local/global, como se pode constatar nesta "operação": note-se, por exemplo, a perseguição no topo do cinema Éden, o desejo de ficção que emerge no documentário sobre Cassiano, ou um persistente "topos" lisboeta em que irrompe um outro desejo, utópico, como em "Lisboa boa-boa 345dt".
"A Janela" atesta os limites do modo de produção que Pêra foi forjando - longa-metragem de ficção passando pelo subsídio público, só foi acabada com a intervenção de um produtor institucional (Paulo Branco). Também não deixa de patentear uma difícil gestão do tempo (embora felizmente não comparável ao exasperante "Manual de Evasão"). Mas sobre o desopilante folclore "kitsch" de António, marialva da Bica, e das suas muitas amantes, há um singular olhar de cineasta - ou será mais correcto dizer "homem-câmara"?»
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Augusto M. Seabra, Público
ENTREVISTA AO REALIZADOR
'Antónyo, o turbo-tyger'
Edgar Pêra em entrevista, a propósito da estreia do seu novo filme, «A Janela (Maryalva Mix)»
Encontrámos o Sr. Ego, nome de guerra de Edgar Pêra, no momento em que os primeiros Tomahawks aliados atingiam Kabul. TV ligada, som cortado, é a guerra em directo que coloniza o mundo. No momento da estreia de A Janela (Maryalva Mix), melodrama «lusoh-galaktiko» de cortar à faca no Elevador da Bica, damos a palavra a este lisboeta que em Abril de 74, durante a adolescência, foi «mordido por uma revolução radioaktiva». Depois, estudos de Psicologia, Escola de Cinema, os primeiros filmes no fim dessa década.
Mais tarde, a reivindicação do português sónico como direito à diferença, as «encomendas» que foram A Cidade de Cassiano, SWK4, com textos de Almada Negreiros, Manual de Evasão, para a Lisboa 94, e mais recentemente 25 de Abril Aventura Demokratika. Para recapitular, há mais de 10 anos de trabalho de um realizador único no cinema português. Por isso, a Atalanta Filmes organizou uma «Operação Edgar Pêra», escolhida pelo próprio e dividida em dois programas, que serão exibidos no King, sempre à meia-noite, durante o fim-de-semana. Mas a «janela» está no centro: história dos amores entre Antónyo, alfacinha de gema, e as suas seis amantes, com a ameaça de um crime para completar o ramalhete. Para cada amante há um Antónyo novo: o xoramyngas (Nuno Melo), o anymal (Miguel Borges), o tanguysta (José Wallenstein), o sekretysta (Nuno Bizarro), o levezyto (João Didelet) e o santynho (Manuel João Vieira). As seis amantes são interpretadas por Lúcia Sigalho que acompanhou Edgar Pêra desde a origem deste projecto, em 1997. Na forja está também um trabalho sobre António Pedro e um telefilme da SIC. Kum Kacêt!
Quem é que está à janela? O Sr. Ego?
Sim e não. Também lá está o Antónyo. O filme flutua narrativamente entre o ponto de vista dele e o do olheiro. Primeira dúvida: aquele olho gigante é da personagem ou do autor? Até que ponto estará o Antónyo a fazer o filme? Os «textículos» que fazem pontos de passagem (escritos por Manuel Rodrigues) não querem dizer rigorosamente nada, são ideias para lançar a confusão. Acabas sempre por ser um grande tanguysta. Metes-te numa alhada e tens de te safar. Quando criámos a Akademya Lusoh-Galaktyca, um centro de investigação que já acabou, fomos para a Bica e apaixonámo-nos por aquela janela. Eu andava a escrever um projecto na desbunda: apanhava bocados de conversas e escrevia-os no computador. Depois comecei a criar personagens com a Lúcia, mas nem eu nem ela pensávamos fazer dali alguma coisa: era um terreno com imensos clichés. O argumento apareceu com essas experiências.
Há um porquê para a tua inadaptação à «coisa cinema»?
O que é um filme? Qualquer coisa projectada numa sala de cinema, não há outra definição. Um jogo da NBA numa sala de cinema é um filme. O cinema é um trabalho sobre o tempo que é projectado numa sala e tem uma certa duração. E quanto mais afunilas a definição menos hipóteses há para a surpresa. O que me interessa é a surpresa de quando o cinema surgiu. A partir do momento em que as pessoas deixaram de confundir o comboio do Lumière com o filme o cinema morreu. Detesto cinefilias, eu vou ao cinema quatro ou cinco vezes por ano. Há tantas coisas para fazer.
Análise romântica?
Claro, mas é uma análise, antes de tudo. Eu tomo outro partido quando dou a palavra ao Agostinho da Silva (O Trabalho Liberta?) ou ao McKenna (Manual de Evasão). Quando escolhes um termo, ou o deixas entre aspas e não o discutes ou vais atrás dele até perceberes que ele te destrói o sentido da frase. No meu trabalho, para descobrir que a verdade não está num sítio só, é preciso muito tempo de observação. Muitos testes ao material, como o Skip — vamos lá contar as lavagens. Mas eu só vejo os defeitos, estou sempre à espera que me contradigam.
Por aqueles que dizem que os teus filmes não vão para lado nenhum?
Isso é uma crítica pertinente que me agrada. Quando entrei no cinema arranjei logo problemas, a selva existe. Quanto a isso, o que não mata engorda. Não me venham com tretas: para onde vai a ficção? Para algum lado? Vai para o fim da história, e é tudo porreiro se quiseres passar ali um bom bocado, tens esse direito. Mas o que faz isso à tua vida? Eu não faço nenhum filme que ache que não tem influência sobre a vida das pessoas, mesmo que falhe redondamente. Não me ponho do lado do Bush nem do do Bin Laden, até porque acho que estão os dois no mesmo lado. Mesmo a desacreditar, a fazer de cada assunto uma espiral sem fim e sem conclusão, o facto de as ideias estarem nos meus filmes em poeira cósmica, a orbitar, pode fazer qualquer coisa explodir.
O trabalho no caos tem uma ordem. Como é que te organizas?
A ordem é militarizada, é uma questão de disciplina. A minha estratégia é esta: vamos para a guerra, um por todos e todos por um, tem de estar tudo a trabalhar para o mesmo. O contrário do que acontece numa produção normal. Se há uma pequena peça no grupo que falha, o trabalho fica todo em causa. Duvidar é para a altura do debate de ideias. Mas quando estás ali com a metralhadora não dá, é tudo muito rápido, não se pode falhar. E às vezes arranjo problemas com o gajo que não me disparou o gatilho. Se alguém pergunta porquê, acabou, já perdemos o comboio!
E é o que o Sr. Ego diz: dispara agora!
Ora bem: dispara e foge do homem-câmara!
Porque é que o teu filme é uma «missão antidogma 2000»?
É uma palhaçada em relação aos outros palhaços, que estão ao nível do cientista de Auschwitz. Mas prefiro que os dogmáticos escolham a arte em vez da política. Acho muito bem que os nazis só façam filmes e fiquem por aí. O «Big Brother» também deu uma imagem disso, as pessoas meteram-se lá dentro sem pensar no que estavam a fazer.
Vês o «Big Brother»?
Vi o primeiro.
E então?
Gramei! Houve ali verdadeiros momentos de estudo animal. Prefiro isso ao Lars von Trier. Quer dizer: acho que ele é um grande artista.
E a transmissão na TV da queda das Twin Towers? É um filme?
E que filmaço! É o «Big Brother» dos terroristas. Costumo dizer que A Janela é uma utopia maryalva muçulmana. Só de pensar nas virgens do paraíso que vêm para aí depois daqueles kamikazes todos... Se pensares bem, cada um daqueles tipos era um potencial Antónyo que encontrou o paraíso.
O Antónyo é muçulmano?
É, mas o Sr. Ego é americano. É um detective.
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Francisco Ferreira, Expresso, 13/10/2001
DECLARAÇÕES DE LÚCIA SIGALHO
'Uma Xerazade pós-feminista'
Em 1996, anos antes de José Álvaro Morais e Teresa Villaverde descobrirem Lúcia Sigalho para o cinema (em Peixe-Lua e Água e Sal), Edgar Pêra convidava a actriz-encenadora a participar num projecto de documentário sobre o bairro lisboeta da Bica, com personagens de ficção. "A realidade real" entrava na sua zona criativa, ficou "com os sininhos todos a tocar". Deu ao cineasta a ideia das seis mulheres dum homem, que resultaria no filme A Janela (Maryalva Mix). Interessada "na questão da mudança compulsiva de personalidades", partiu para improvisações. "Toda a rodagem assentou nelas, as minhas e as dos outros actores", recorda.
Das suas nasceram as "seis mulheres e uma sereia" do Antónyo da Byka - bykudíssimo exemplar de polígamo multifacetado -, "mais a Marya de Fátyma, fadista castiça, mãe dele ou talvez não", adianta Lúcia Sigalho. Nesse desdobramento enquanto actriz, só vista! Contando, ninguém acredita... Ainda assim, acredite ou não, reproduzimos excertos duma entrevista onde, não só a génese da criação foi sendo contada, mas também era apresentada aquela galeria feminina, no estilo inimitável da directora-fundadora da companhia Sensurround.
Lúcia Sigalho atendeu-nos em plena azáfama de ensaios do seu próximo espectáculo no Armazém do Ferro: Viagem à Grécia, a partir da Antígona, de Sófocles, e de poemas de Sophia de Melo Breyner Andreson. Em veloz mudança de registo, como se imaginará, apresentou as suas personagens n'A Janela, "todas elas inspiradas em figuras lisboetas um bocadinho chapadas, cada uma com as suas coisas amalucadas, umas casadas com o Antónyo, outras não, mas todas a flasharem com ele de algum modo, a vigiarem-se e a comentarem-se". Por ordem de entrada no ecrã, ei-las, identificadas e por Lúcia imitadas en passant, com muita risota pelo meio.
Júlia, peixeira. "É uma mistura de tipos: tem imensas opiniões, do tipo bulldozer, sobre modernização do bairro; trabalha dia e noite, "pois o Antónyo, coitadinho, é artista, não pode trabalhar, ele não é capaz e então eu, pois, é claro, vou pagando aquilo que é preciso pagar, ele agora vai fazer um disco..."; vende na Ribeira, "mas agora o peixe já não é como antigamente e as freguesas já não são como dantes e vêm regatear o carapau, ora o carapau já não pode custar o que custava dantes, agora é uma coisa muito mais politicamente correcta, não é?""
Sara, artista conceptual. "É uma pós-ninfomaníaca, está à procura do corpo, essa coisa muito fin de siècle, de que os artistas conceptuais, os performativos e os audiovisuais andavam todos à procura. "O Antónyo tem um corpo, coisa que não é muito comum em Portugal!" Então, ela está nos ateliers de São Paulo, a pensar na arte e no raio que a parta, o Antónyo é assim mais "um objecto na mente", embora dessem umas voltas. Entre Nova Iorque, Tóquio e Xabregas, lá trata dos affaires."
Marya, espanhola. "É chalada. "Mi marido es cantante de fado, no trabaja, se canta el fado todas las noches hasta las seis de la mañana y yo tengo seis hijos, drogadictos. Y tengo dos amantes, claro. Quando me indispueso con Antónyo, hube una fiesta muy rica aqui en Bica y bailámos sevillanas todo el dia..."
Mirita, para-médica. "Muito feia, com bigode, muito infeliz e neurótica, é puritana mas o Antónyo deu-lhe umas voltas. Mãe solteira dum filho do Antónyo, que lhe dá maus tratos, com que sofre imenso. Mas é "porque ele não sabe tratar da vida dele, tem muitos problemas psico-somáticos. Há uma grande taxa de esquizofrénicos em Portugal e o Antónyo não sabe, mas o que ele tem é uma esquizofrenia latente..."
Jacqueline, africana. "Uma das mais divertidas, embora das que tiveram menor desenvolvimento. É "a zona libèrtada dà humànidadi e dà sexuàlidadi. Não tem problema, gosta do Antónyo, é àmiga deli, só àmiga: compreende-o, ele tem aqueles problemas culturais dos bráncos, as bráncas são muito possessivas, a Jacqueline não tá aí nem para compreender os problemas delas e o Antónyo, coitado, às vezes, precisa di descontraír...""
Marya de Fátyma, fadista. "É a chave da tragédia, não se percebe se mãe ou madrinha do Antónyo. Tem ciúmes mortais das outras todas, desanca nelas, acha que não prestam para nada. No resto do tempo, vai dizendo "mas eu sou fadista, canto o fado"."
Patrícia, antropóloga. "Anda a fazer um estudo, articulado com uma equipa em São Francisco e outra em Amsterdão, sobre as populações que vivem no meio: passam o tempo a ver passar comboios ou assim, zim-zim, zim-zim. Na Bica, é o elevador: anda abaixo e acima sem ir a lado nenhum. "Uma metáfora da portugalidade", para ela, que tira medidas às pessoas, dia e noite mede o Antónyo, exemplar sui generis."
Sereia. "Dá ao Tejo e aparece na Bica, a pedido do Manuel João Vieira. Não resisti e achei que fazia sentido aparecer como sereia, a fazer oink! oink!"»
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Elisabete França, Diário de Notícias, 12/10/2001
A JANELA, 2001, 104’
NOTA DE INTENÇÕES
(O phylm ele mesmo, propriamente dito)
Primeira obra do Senhor Ego em dimensão standard «A Janela (Maryalva Mix)» é uma pelycula de longa metragem de 104 minutos sonora e muda, colorida e a preto e branco, rodada em filme super-8, 16mm, 35mm (sobretudo) e em vídeo mini-dv, com cópia final em 35mm Dolby® estéreo.
Trata-se também de um jogo, o jogo do Kem é o antónyo?™, um drama montado sobre uma narrativa não-linear e não-elementar - montagem arbitrária mas não-aleatória - desenhado na forma de um eskyzo-fado que aborda o destino de um arcaico pseudo-eskyzo-fadista da Bica.
Trata-se de uma obra que pretende 'recuperar' uma tradição burlesca e excentricionista(!): os actores falantes improvisaram monólogos, os actores mudos desenvolveram arquétipos de personagens antoninos - incluindo algumas tiradas sobre peixes.
A dimensão referencial, multi-cultural e 'kosmopolítico', pretende sublinhar o carácter popular de um certo lisboeta português de uma época para quem, apesar de tudo isso, "a Bica é um mundo!" e o Tejo a sua fronteira (ou vice versa).
O tipo de uso e a distorção da iconografia, gráfica, visual e sonora, é usada como 'imagens do pensamento/realidade', sendo a ideia de frequência/interferência rádio (e neuro-bioquímica) - a sua sintonização e dessintonização - uma cine-gramática toska e romba usada como orientação karytativa.
Trata-se de um filme-artefakto que resulta de uma intervenção plástica "ao vivo", isto é: é um filme sem "pós-produção" - todos os "efeitos" do filme (a divisão do écran em quadros-bd) foram realizados durante a rodagem (filmando e refilmando por diferentes vezes o mesmo pedaço de película) ou então executados sobre a própria película ( no caso dos riscos e côres).
O rekurso a yntertítulos eskritos em português sohniko, uma synteze proto-kryoula & retroh-futurista da lyngua portugueza, dezenvolvida e reafinada ao retardador ao longo da últyma dékada do sékulo.
Edgar Pêra
O TRABALHO
O trabalho do Sr. Ego
Da ideia ao filme
Quando saí da Escola de Cinema tive um início desastroso: era um inadaptado e encerrei logo a actividade. Voltei à carga e descobri que gostava mais de «répérages» que de filmes. O que me interessava existia na realidade, não em histórias da carochinha. Não procuro uma equipa para filmar mas para atacar o terreno de rodagem. O filme é sempre encarado como um território de investigação. Sem investigação não há ficção. Numa ficção convencional recriam-se acontecimentos. Eu tento criá-los. As centenas de páginas do guião ficam na gaveta no momento de filmar: é o exame final, sem cábulas, não tenho um papel na mão e jogo de cabeça, ainda por cima com outros cromos da bola. E a investigação é isto: estar do lado da amiba, dizer não ao microscópio. Tento ir para o meio dos protozoários! O que mais me lixa é o National Geographic com aqueles tipos escondidos nos arbustos, à espera que o crocodilo mergulhe no lago.
Montagem
É o lado mais frankensteiniano do cinema, o que lhe dá vida. Organizo o caos sem uma «decoupage» pré-programada. Se ela existe, é a de um directo sobre uma manifestação que não sabe para onde vai. A planificação é feita a quente, passo a passo: estou à câmara e readapto-me ao que está a acontecer, sem desfasamento. Não há uma fórmula mágica nisto. O que tento levar para a montagem é o ritmo da rodagem. A minha montagem está entre a escrita normal e a surrealista: ando sempre a controlar o cadáver esquisito dos meus filmes.
Choque imagem-som
O computador é um elemento da redenção que me permitiu trabalhar. Gosto da agilidade e do pulsar do rato, de criar conflitos entre a imagem e o som, pôr o princípio no fim e o fim no meio, para ver o que dá, nem que seja só para testar a chapa. Quero descobrir se uma determinada imagem pode levar uma porrada com um som qualquer e resistir-lhe. Uso muito pouco som directo, e estas coisas só se podem digladiar na montagem. Se coloco um determinado som num segundo qualquer, posso acabar por retirar a imagem desse segundo. Mas isto tem de ser organizado, não pode ser uma coisa fundamentalista, não se pode cair num enorme barroquismo, senão é o «twin terror», o patinanço completo.»
Edgar Pêra
O Homem da Máquina de Filmar
Dá pelo título de "A Janela (Marialva Myx)" e é assim a modos de um "ovni" de cinema português que esta semana aterrou. O seu "autor" é Edgar Pêra que, apesar de um outro filme anteriormente estreado, "Manual de Evasão Lx94" , tem sido há mais de 10 anos uma espécie de presença fantasma no cinema português: de quando em quando, lá aparecia, em manifestações mais ou menos paralelas, um daqueles inclassificáveis produtos audiovisuais com as marcas distintivas da sua linha de montagem.
"Presença fantasma" como? A resposta está subentendida num pequeno deslize no enunciado acima, entre um artigo indefinido e um outro definido: "de cinema português" e "no cinema português". Diferentemente de um modo de produção dominante, cuja referência tem sido o apoio financeiro do Estado via Instituto Português de Cinema, Pêra foi mais ou menos continuadamente filmando, com a mobilidade permitida pelos novos meios técnicos. O seu cinema estava algures, certamente "português" nas suas inscrições sociais e culturais, mas reivindicando uma exterioridade, e mesmo emancipação.
Em parte por isso, ou melhor, talvez com isso, Pêra foi construindo uma "persona", com as marcas de assinatura dos "k", em vez dos "c", e dos "y", em vez do "i" escarrapachados nos genéricos, e dando por nomes como "homem-kâmara" ou "senhor ego". É assim a modos que o seu "folklore", mais ou menos confundindo-se com uma mitologia de marginalidade. A presente estreia de "A Janela", numa "operação Edgar Pêra" que também inclui dois programas com outros filmes seus, permite esclarecer várias coisas.
Dificilmente a aura de "marginalidade" se pode aplicar a um cineasta que foi nomeadamente continuando a sua actividade com sucessivos trabalhos de encomenda: "Manual de Evasão" (para Lisboa-94),"A Cidade de Cassiano" (em torno do arquitecto Cassiano Branco), "SWK4" (Almada Negreiros), "O Trabalho Liberta?" (para a cadeia de televisão Arte),"Lisboa-boa 345 dt" (Festival dos Oceanos), "25 de Abril Aventura Demokrátika" (Centro de Documentação 25 de Abril) - e Pêra ultima duas outras, um telefilme para a SIC e "O Homem-Teatro" (sobre António Pedro).
Esta sucessão, que no crivo da tal "marginalidade" o pode desqualificar, é no entanto indício do que é efectivamente importante: a reiterada disponibilidade para filmar e a construção de um modo de produção própria, numa atitude inédita no cinema português.
Se por acaso numa rua de Lisboa o leitor se cruzar com um transeunte com uma máquina de filmar, atenção que pode não ser um turista mas sim Edgar Pêra. É um tipo de labor representativo de um dos fenómenos mais importantes do cinema contemporâneo. Sobretudo com as câmaras de vídeo, há verdadeiros novos centauros, observadores e intervenientes numa realidade imediata, o corpo confundindo-se com uma câmara, radicalmente inscrevendo de modo novo o sujeito no próprio processo filmico .
O que no caso de Pêra se torna particularmente interessante é que esta postura não se compraz numa imanência do real. Pelo contrário, o seu modo distintivo é a sucessão de manipulações que opera num manancial de materiais heteróclitos ("A Janela", por exemplo, foi filmado em 35mm, super 8mm, video), designadamente por operações de montagem e de incrustação de "parasitas" na imagem.
A janela , sabe-se, é uma clássica metáfora do cinema, "janela aberta para o mundo". No caso, em "A Janela", Pêra filma efectivamente uma, aberta para o mundo que tem como microcosmos o lisboeta bairro da Bica - mundo portanto numa escala reduzida, tal como o modo de produção. Mas o olhar cinematográfico que rege este peculiar "mundo" é altamente formalista.
Pêra pode reivindicar para si o título do famoso filme de Dziga Vertov, e um dos grandes exemplos do formalismo russo-soviético, "O Homem da Câmara de Filmar" - ou "máquina de filmar", a noção da prótese maquinista do corpo humano sendo de rara pertinência. De resto, os modos como vai assinando os seus filmes, por exemplo como "filmado, dirigido e montado", Pêra assinala como o trabalho de "direcção" (de realização, de autoria), se baliza entre os actos de "filmar" (é ele próprio o seu "cameraman") e "montar" (idem).
É então interessante notar que estas dicotomias filmar/montar ou real/manipulado, se sucedem ao longo da obra noutras, como documentário/ficção ou local/global, como se pode constatar nesta "operação": note-se, por exemplo, a perseguição no topo do cinema Éden, o desejo de ficção que emerge no documentário sobre Cassiano, ou um persistente "topos" lisboeta em que irrompe um outro desejo, utópico, como em "Lisboa boa-boa 345dt".
"A Janela" atesta os limites do modo de produção que Pêra foi forjando - longa-metragem de ficção passando pelo subsídio público, só foi acabada com a intervenção de um produtor institucional (Paulo Branco). Também não deixa de patentear uma difícil gestão do tempo (embora felizmente não comparável ao exasperante "Manual de Evasão"). Mas sobre o desopilante folclore "kitsch" de António, marialva da Bica, e das suas muitas amantes, há um singular olhar de cineasta - ou será mais correcto dizer "homem-câmara"?»
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Augusto M. Seabra, Público
ENTREVISTA AO REALIZADOR
'Antónyo, o turbo-tyger'
Edgar Pêra em entrevista, a propósito da estreia do seu novo filme, «A Janela (Maryalva Mix)»
Encontrámos o Sr. Ego, nome de guerra de Edgar Pêra, no momento em que os primeiros Tomahawks aliados atingiam Kabul. TV ligada, som cortado, é a guerra em directo que coloniza o mundo. No momento da estreia de A Janela (Maryalva Mix), melodrama «lusoh-galaktiko» de cortar à faca no Elevador da Bica, damos a palavra a este lisboeta que em Abril de 74, durante a adolescência, foi «mordido por uma revolução radioaktiva». Depois, estudos de Psicologia, Escola de Cinema, os primeiros filmes no fim dessa década.
Mais tarde, a reivindicação do português sónico como direito à diferença, as «encomendas» que foram A Cidade de Cassiano, SWK4, com textos de Almada Negreiros, Manual de Evasão, para a Lisboa 94, e mais recentemente 25 de Abril Aventura Demokratika. Para recapitular, há mais de 10 anos de trabalho de um realizador único no cinema português. Por isso, a Atalanta Filmes organizou uma «Operação Edgar Pêra», escolhida pelo próprio e dividida em dois programas, que serão exibidos no King, sempre à meia-noite, durante o fim-de-semana. Mas a «janela» está no centro: história dos amores entre Antónyo, alfacinha de gema, e as suas seis amantes, com a ameaça de um crime para completar o ramalhete. Para cada amante há um Antónyo novo: o xoramyngas (Nuno Melo), o anymal (Miguel Borges), o tanguysta (José Wallenstein), o sekretysta (Nuno Bizarro), o levezyto (João Didelet) e o santynho (Manuel João Vieira). As seis amantes são interpretadas por Lúcia Sigalho que acompanhou Edgar Pêra desde a origem deste projecto, em 1997. Na forja está também um trabalho sobre António Pedro e um telefilme da SIC. Kum Kacêt!
Quem é que está à janela? O Sr. Ego?
Sim e não. Também lá está o Antónyo. O filme flutua narrativamente entre o ponto de vista dele e o do olheiro. Primeira dúvida: aquele olho gigante é da personagem ou do autor? Até que ponto estará o Antónyo a fazer o filme? Os «textículos» que fazem pontos de passagem (escritos por Manuel Rodrigues) não querem dizer rigorosamente nada, são ideias para lançar a confusão. Acabas sempre por ser um grande tanguysta. Metes-te numa alhada e tens de te safar. Quando criámos a Akademya Lusoh-Galaktyca, um centro de investigação que já acabou, fomos para a Bica e apaixonámo-nos por aquela janela. Eu andava a escrever um projecto na desbunda: apanhava bocados de conversas e escrevia-os no computador. Depois comecei a criar personagens com a Lúcia, mas nem eu nem ela pensávamos fazer dali alguma coisa: era um terreno com imensos clichés. O argumento apareceu com essas experiências.
Há um porquê para a tua inadaptação à «coisa cinema»?
O que é um filme? Qualquer coisa projectada numa sala de cinema, não há outra definição. Um jogo da NBA numa sala de cinema é um filme. O cinema é um trabalho sobre o tempo que é projectado numa sala e tem uma certa duração. E quanto mais afunilas a definição menos hipóteses há para a surpresa. O que me interessa é a surpresa de quando o cinema surgiu. A partir do momento em que as pessoas deixaram de confundir o comboio do Lumière com o filme o cinema morreu. Detesto cinefilias, eu vou ao cinema quatro ou cinco vezes por ano. Há tantas coisas para fazer.
Análise romântica?
Claro, mas é uma análise, antes de tudo. Eu tomo outro partido quando dou a palavra ao Agostinho da Silva (O Trabalho Liberta?) ou ao McKenna (Manual de Evasão). Quando escolhes um termo, ou o deixas entre aspas e não o discutes ou vais atrás dele até perceberes que ele te destrói o sentido da frase. No meu trabalho, para descobrir que a verdade não está num sítio só, é preciso muito tempo de observação. Muitos testes ao material, como o Skip — vamos lá contar as lavagens. Mas eu só vejo os defeitos, estou sempre à espera que me contradigam.
Por aqueles que dizem que os teus filmes não vão para lado nenhum?
Isso é uma crítica pertinente que me agrada. Quando entrei no cinema arranjei logo problemas, a selva existe. Quanto a isso, o que não mata engorda. Não me venham com tretas: para onde vai a ficção? Para algum lado? Vai para o fim da história, e é tudo porreiro se quiseres passar ali um bom bocado, tens esse direito. Mas o que faz isso à tua vida? Eu não faço nenhum filme que ache que não tem influência sobre a vida das pessoas, mesmo que falhe redondamente. Não me ponho do lado do Bush nem do do Bin Laden, até porque acho que estão os dois no mesmo lado. Mesmo a desacreditar, a fazer de cada assunto uma espiral sem fim e sem conclusão, o facto de as ideias estarem nos meus filmes em poeira cósmica, a orbitar, pode fazer qualquer coisa explodir.
O trabalho no caos tem uma ordem. Como é que te organizas?
A ordem é militarizada, é uma questão de disciplina. A minha estratégia é esta: vamos para a guerra, um por todos e todos por um, tem de estar tudo a trabalhar para o mesmo. O contrário do que acontece numa produção normal. Se há uma pequena peça no grupo que falha, o trabalho fica todo em causa. Duvidar é para a altura do debate de ideias. Mas quando estás ali com a metralhadora não dá, é tudo muito rápido, não se pode falhar. E às vezes arranjo problemas com o gajo que não me disparou o gatilho. Se alguém pergunta porquê, acabou, já perdemos o comboio!
E é o que o Sr. Ego diz: dispara agora!
Ora bem: dispara e foge do homem-câmara!
Porque é que o teu filme é uma «missão antidogma 2000»?
É uma palhaçada em relação aos outros palhaços, que estão ao nível do cientista de Auschwitz. Mas prefiro que os dogmáticos escolham a arte em vez da política. Acho muito bem que os nazis só façam filmes e fiquem por aí. O «Big Brother» também deu uma imagem disso, as pessoas meteram-se lá dentro sem pensar no que estavam a fazer.
Vês o «Big Brother»?
Vi o primeiro.
E então?
Gramei! Houve ali verdadeiros momentos de estudo animal. Prefiro isso ao Lars von Trier. Quer dizer: acho que ele é um grande artista.
E a transmissão na TV da queda das Twin Towers? É um filme?
E que filmaço! É o «Big Brother» dos terroristas. Costumo dizer que A Janela é uma utopia maryalva muçulmana. Só de pensar nas virgens do paraíso que vêm para aí depois daqueles kamikazes todos... Se pensares bem, cada um daqueles tipos era um potencial Antónyo que encontrou o paraíso.
O Antónyo é muçulmano?
É, mas o Sr. Ego é americano. É um detective.
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Francisco Ferreira, Expresso, 13/10/2001
DECLARAÇÕES DE LÚCIA SIGALHO
'Uma Xerazade pós-feminista'
Em 1996, anos antes de José Álvaro Morais e Teresa Villaverde descobrirem Lúcia Sigalho para o cinema (em Peixe-Lua e Água e Sal), Edgar Pêra convidava a actriz-encenadora a participar num projecto de documentário sobre o bairro lisboeta da Bica, com personagens de ficção. "A realidade real" entrava na sua zona criativa, ficou "com os sininhos todos a tocar". Deu ao cineasta a ideia das seis mulheres dum homem, que resultaria no filme A Janela (Maryalva Mix). Interessada "na questão da mudança compulsiva de personalidades", partiu para improvisações. "Toda a rodagem assentou nelas, as minhas e as dos outros actores", recorda.
Das suas nasceram as "seis mulheres e uma sereia" do Antónyo da Byka - bykudíssimo exemplar de polígamo multifacetado -, "mais a Marya de Fátyma, fadista castiça, mãe dele ou talvez não", adianta Lúcia Sigalho. Nesse desdobramento enquanto actriz, só vista! Contando, ninguém acredita... Ainda assim, acredite ou não, reproduzimos excertos duma entrevista onde, não só a génese da criação foi sendo contada, mas também era apresentada aquela galeria feminina, no estilo inimitável da directora-fundadora da companhia Sensurround.
Lúcia Sigalho atendeu-nos em plena azáfama de ensaios do seu próximo espectáculo no Armazém do Ferro: Viagem à Grécia, a partir da Antígona, de Sófocles, e de poemas de Sophia de Melo Breyner Andreson. Em veloz mudança de registo, como se imaginará, apresentou as suas personagens n'A Janela, "todas elas inspiradas em figuras lisboetas um bocadinho chapadas, cada uma com as suas coisas amalucadas, umas casadas com o Antónyo, outras não, mas todas a flasharem com ele de algum modo, a vigiarem-se e a comentarem-se". Por ordem de entrada no ecrã, ei-las, identificadas e por Lúcia imitadas en passant, com muita risota pelo meio.
Júlia, peixeira. "É uma mistura de tipos: tem imensas opiniões, do tipo bulldozer, sobre modernização do bairro; trabalha dia e noite, "pois o Antónyo, coitadinho, é artista, não pode trabalhar, ele não é capaz e então eu, pois, é claro, vou pagando aquilo que é preciso pagar, ele agora vai fazer um disco..."; vende na Ribeira, "mas agora o peixe já não é como antigamente e as freguesas já não são como dantes e vêm regatear o carapau, ora o carapau já não pode custar o que custava dantes, agora é uma coisa muito mais politicamente correcta, não é?""
Sara, artista conceptual. "É uma pós-ninfomaníaca, está à procura do corpo, essa coisa muito fin de siècle, de que os artistas conceptuais, os performativos e os audiovisuais andavam todos à procura. "O Antónyo tem um corpo, coisa que não é muito comum em Portugal!" Então, ela está nos ateliers de São Paulo, a pensar na arte e no raio que a parta, o Antónyo é assim mais "um objecto na mente", embora dessem umas voltas. Entre Nova Iorque, Tóquio e Xabregas, lá trata dos affaires."
Marya, espanhola. "É chalada. "Mi marido es cantante de fado, no trabaja, se canta el fado todas las noches hasta las seis de la mañana y yo tengo seis hijos, drogadictos. Y tengo dos amantes, claro. Quando me indispueso con Antónyo, hube una fiesta muy rica aqui en Bica y bailámos sevillanas todo el dia..."
Mirita, para-médica. "Muito feia, com bigode, muito infeliz e neurótica, é puritana mas o Antónyo deu-lhe umas voltas. Mãe solteira dum filho do Antónyo, que lhe dá maus tratos, com que sofre imenso. Mas é "porque ele não sabe tratar da vida dele, tem muitos problemas psico-somáticos. Há uma grande taxa de esquizofrénicos em Portugal e o Antónyo não sabe, mas o que ele tem é uma esquizofrenia latente..."
Jacqueline, africana. "Uma das mais divertidas, embora das que tiveram menor desenvolvimento. É "a zona libèrtada dà humànidadi e dà sexuàlidadi. Não tem problema, gosta do Antónyo, é àmiga deli, só àmiga: compreende-o, ele tem aqueles problemas culturais dos bráncos, as bráncas são muito possessivas, a Jacqueline não tá aí nem para compreender os problemas delas e o Antónyo, coitado, às vezes, precisa di descontraír...""
Marya de Fátyma, fadista. "É a chave da tragédia, não se percebe se mãe ou madrinha do Antónyo. Tem ciúmes mortais das outras todas, desanca nelas, acha que não prestam para nada. No resto do tempo, vai dizendo "mas eu sou fadista, canto o fado"."
Patrícia, antropóloga. "Anda a fazer um estudo, articulado com uma equipa em São Francisco e outra em Amsterdão, sobre as populações que vivem no meio: passam o tempo a ver passar comboios ou assim, zim-zim, zim-zim. Na Bica, é o elevador: anda abaixo e acima sem ir a lado nenhum. "Uma metáfora da portugalidade", para ela, que tira medidas às pessoas, dia e noite mede o Antónyo, exemplar sui generis."
Sereia. "Dá ao Tejo e aparece na Bica, a pedido do Manuel João Vieira. Não resisti e achei que fazia sentido aparecer como sereia, a fazer oink! oink!"»
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Elisabete França, Diário de Notícias, 12/10/2001
(imagem deste vídeo em mau estado)
Realização: Edgar Pêra
Argumento: Lúcia Sigalho, Manuel João Vieira, Senhor Ego
Dir. Fotografia: Luís Branquinho
Montagem: Pedro A. Machado, Inês Henriques
Música: Artur Cyanetto, Tiago Lopes
Canções: Pedro Ayres Magalhães, Paulo Pedro Gonçalves
Interpretação: Nuno de Melo, José Wallenstein, Lúcia Sigalho, Manuel João Vieira, Jacqueline Ginja
Miguel Borges, João Didelet, Nuno Bizarro
Origem: Portugal
Duração: 104’
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