A ilha é minúscula de 17 quilómetros quadrados e de 440 habitantes. Ilha que se chama Corvo e que é a mais pequena de um arquipélago, o dos Açores, de ressonância mítica – pode não ser a Atlântida no meio do Atlântico, mas tal hipótese já foi teorizada. Aproximamo-nos dela, olhar alargando-se da proa do barco à elevação do antigo e morto vulcão que se desenha no horizonte. Já lá estamos. Uma janela com vista para mar e casario, gotas de chuva e vento lá fora, do outro lado daquela janela que protege o homem que filma. Que se chama Gonçalo Tocha e que nos diz “É NA TERRA NÃO É NA LUA”. Não é o primeiro a dizê-lo. O título foi utilizado na imprensa portuguesa quando, pouco depois da chegada do Homem à Lua, precisamente, jornalistas andaram a procurar outras luas por descobrir aqui mesmo, na terra – vemos as parangonas e recortes de imprensa no filme. Chegaram onde chegou Gonçalo Tocha em Agosto de 2007, mas não viram o mesmo que Gonçalo Tocha, o realizador que se estreou com “Balaou”, melhor longa portuguesa no Indie Lisboa 2007, e que regressa agora, quatro anos depois de partir pela primeira vez para o Corvo, com um filme, É NA TERRA NÃO É NA LUA [...].
Gonçalo partiu para a mais pequena ilha dos Açores porque sentiu que teria que pegar novamente na câmara. É um cineasta que vive de arrebatamentos: depois de “Balaou” dissera não saber se faria outro filme e diz o mesmo agora, quando terminou este filme de uma demência surda, em que nada está explodido – a meio é que percebemos que é algo gigantesco, porque já passaram quase duas das suas três horas – que se tornou numa obsessão de que não estava certo de se libertar. Gonçalo diz não saber se fará outro filme e não é pose.
“Mas vês-te como cineasta?”, perguntámos quando já passáramos pela música – Tocha também é Gonçalo Gonçalves, “o cantor romântico abandonado”, criação que é acto de amor (à ideia de um tempo e de um lugar e à música correspondente) no limite de gesto de performer. Passáramos por isso e ele dissera-nos que “fazer música aparece primeiro [que o cinema]: “Estive anos a ver cinema, a comer cinema. Sabia que mais tarde iria fazer qualquer coisa, esperava o momento. O ‘Balaou‘ foi esse momento.” Perguntámos então se se via como cineasta. Olhou-nos com surpresa e timidez, soltou um “talvez”, depois um “sim” interrogativo à espera de confirmação. Disse por fim. “Não consigo responder a isso. Estou naquele ponto em que não sei se vou fazer outro filme. Se calhar sou um cineasta quando aparece um novo projecto. Então percebo, ‘ah, continuo a ser cineasta‘”. Neste caso, projecto talvez seja palavra demasiado burocrática para descrever o processo. Gonçalo parte à descoberta. Como que responde a um chamamento. “A ilha é a estrela do filme”, entusiasma-se. “Na minha família de São Miguel [o avô nasceu lá, Gonçalo, na infância, passava todos os verões no arquipélago] ninguém conhece o Corvo. Digo que vou ao Corvo e é como se dissesse que vou ao Taiti ou às Maldivas”. Foi por isso que teve que partir, sem saber em busca de quê. “Ia filmar a comunidade. Ia filmar a ilha”. Como um explorador. “Cada dia que passava era mais aberto, cada vez havia mais coisas para descobrir. Nunca senti a claustrofobia [na ilha]. Câmara à mão e tripé, 24 horas por dia. Nunca cheguei ao ponto de dizer ‘já não há nada para filmar’”. Em “Balaou”, também tínhamos o mar como cenário. O que separa São Miguel de Lisboa, e que Gonçalo Tocha filmou numa viagem que fora descoberta, exorcismo e por fim, aceitação. Fora a morte da mãe, sete meses antes da rodagem, a espoletar uma “viagem para aceitar o olvido das coisas”. Agora, tem um barco em que navega, aquele que o conduz ao Corvo, essa ilha sobre a qual diz o capitão belga que lhe dera boleia, “os Açores são loucos, mas o Corvo é mais louco ainda”.
O barco de Gonçalo Tocha é a ilha ela mesma.
Tocha é o aventureiro que observa, que perscruta, que se aventura. Os Açores, e o Corvo, como descobriu, são o sítio perfeito para se aventurar. Uma história antiga. “A mitologia dos Açores marcou-me profundamente. Quando somos pequenos, a natureza marca-nos, principalmente se for uma natureza que cheiramos e tocamos. Os Açores eram o sítio onde ia todos os anos em pequeno e marcou-me. Não era a questão de estar isolado numa ilha. Era a ligação entre as ilhas, era ser um ponto de passagem”. Mais tarde, mergulhou nos arquivos em busca da história, mas esse deslumbramento da infância não se desvaneceu. Por isso mesmo, É NA TERRA NÃO É NA LUA não é um documentário que pretenda dar respostas.
É uma aventura náutica em terra firme e a Gonçalo Tocha interessam tanto os pessoas que filma, a história que guardam e corporizam, quando uma certa neblina de fantasia que a câmara não esconde.
Todos os processos no filme vão no sentido de conhecermos as pessoas filmadas, de conhecermos o velho caçador de baleias, o bailarino que se harmoniza no verde natural, o casal que dança uma canção de Paulo Gonzo no pequeno café que é também bar e discoteca, os homens que desbastam a erva daninha da encosta ou aqueles dois que comentam, com conhecimento que nos escapa e olhar treinado com todo o tempo do mundo, o impacto as vagas arrojando sobre o cimento e escalando o pontão. Todos os processos do filme, continuemos, parecem manifestar um desejo de aproximação, mas a forma como Gonçalo Tocha e o sonoplasta Dídio Pestana aparecem e trocam impressões, corpo real ou em sombra, e a forma como narram em tom sereno, contemplativo, os diálogos que pontuam a “descoberta” no filme, qual diário de bordo, tudo isso e os planos replicando fotos antigas, não são luz iluminando de “verdade”, no estrito sentido documental, este Corvo que é na Terra e não é na Lua – mas que se calhar, por isso mesmo, continua na lua.
Essa ilha meio nebulosa e escondida não se revela afinal “normal” e tão “próxima” de nós, como se pretende, por exemplo, em reportagem televisiva - a televisão tenta explicar, normalizar, diluir a diferença num todo perfeitamente legível, sem sobressaltos. Não era isso que o filme procurava. “Não me interessa nada desmistificar os Açores, e principalmente o Corvo”. Isto é muito importante para Gonçalo Tocha, 32 anos, cineasta que só sente sê-lo quanto tem uma câmara na mão e, com ela, um objecto de desejo que filmar. Gonçalo é também um músico que não se limita a fazer canções. No duo Tocha Pestana, cruzamento entre glam T. Rex e baile popular Nel Monteiro que o reúne a Dídio Pestana, tão à vontade em clube berlinense quanto em praça de Alfama em noite de Santos, ou, principalmente, enquanto Gonçalo Gonçalves, o “cantor romântico abandonado” que idolatra Rei Roberto Carlos e Júlio Iglesias, encontramos, de uma forma mais evidente, esse desejo de fantasia, essa vontade de maravilhamento. Em Gonçalo Tocha, o cineasta, esse desejo está presente, mas manifesta-se de forma diferente. Na música, Tocha conduz a orquestra. No cinema, responde ao apelo de um cenário e do que nele se esconderá sobre o aparente - descobre-o surpreendente sob um manto de normalidade.
“Chegas à verdade pelo artifício”, disse-nos em 2010 na sua casa decorada como museu Gonçalo Gonçalves, com relógios em forma de coração na parede, bibelots com corpo bailarina na mesinha, gambiarra tremeluzente serpenteando os móveis ou vinis de cantores românticos europeus e sul-americanos espalhados pela sala. “Crias uma distância que te protege. Não te fecha [ao mundo], abre [um mundo]”. Isso, no limite, une-lhe a música ao cinema.
Com esta diferença fundamental. “O cinema para mim é uma coisa de muito tempo. De aventura pessoal. Para mim, é o desconhecido total. A música nasce de referências que tenho, deste quase desejo de me transformar num cantor dos anos 1970 e querer viver como um”.
É NA TERRA NÃO É NA LUA foi filmado em três viagens de um mês e meio. Esse regressar foi importante para a conseguir familiaridade e vencer, dentro do possível, a desconfiança. “No Corvo é importante voltar. Estão habituados a que chegues e vás embora. Voltar abre o livro”. Não havia plano de rodagem pré-definido. Apenas a vontade de filmar. De filmar tudo, com essa urgência de “isto está tudo a mudar, está tudo a desaparecer” – as pessoas, precisará, eram as pessoas, os octogenários e nonagenários e as suas histórias de uma ilha sem historiografia fixada que desapareciam. Gonçalo e Dídio estavam a “acompanhar o mundo a acontecer” perante os seus olhos.
Falámos acima de fantasia. A fantasia que sobressai em É NA TERRA NÃO É NA LUA não é fantasia exuberante de conto fantástico. A sua dimensão é outra. O delirante período eleitoral que, dado que a maioria da população está directamente envolvida nele, pára a ilha – “a política é o melhor que há; devia haver eleições todos os meses”, atira o homem que passa no seu jipe. Esse lado mais selvagem e tradicional, com o porco e ser preparado para a matança manhã cedo, convivendo com um progresso que ganha contornos de futurismo maquinal – o matadouro de cinzento chapa e a água que escorre dos aparelhos, em ambiente de “Blade Runner” asséptico. E a sensação de viagem subentendida nas memórias de emigração para os EUA, expostas nos pratos com bandeira americana nas paredes das casas, explícita no mecânico que, iluminado pelo crepúsculo, explica sem papas na língua que planeia ir para Angola – “para dinheiro é lá” – porque “a Europa está toda fodida”. Mas talvez essa possibilidade de fantasia que se explique melhor com a história do ornitólogo inglês que certo dia, enquanto vagueava sozinho, avistou um pássaro raríssimo e vomitou de tanta emoção. Vomitou do nervosismo da descoberta e de estar a viver aquele momento único sozinho, sem ninguém com quem a partilhar. No minúsculo mas interminável Corvo de Gonçalo Tocha, as descobertas ficam com os 440 habitantes da ilha, incorporadas no seu código genético, entre lenda e (pouca) história oficial, ao longo dos cinco séculos que distam da descoberta da ilha por Duarte e João de Teive, em 1452.
É NA TERRA NÃO É NA LUA é pautado pelo lento tecer de um gorro. Um gorro corvino feito pela mulher de 75 anos que, com “paciência de velha” (as palavras são dela), o prepara para Gonçalo Tocha. Aquele gorro é como que ritual de passagem. Quando o colocar na cabeça, Gonçalo será oficiosamente um corvino. Mas o que é ser corvino? Não sabe, mas sabê-lo não é importante. “O filme é o baptismo”. O ritual de passagem é que é importante. Aquilo em que nos transformamos? Logo veremos.
Um dia depois da entrevista, recebemos um mail. Dizia isto: “Fiquei um pouco sem resposta quando me perguntaste se me considerava um cineasta, porque nunca tinha pensado nisso nem nunca ninguém me tinha perguntado. ‘Balaou’ foi o filme da revelação pessoal e o Corvo [É NA TERRA NÃO É NA LUA] o filme da descoberta do mundo, posso dizer que foi o meu baptismo civilizacional. Só consegui terminar este filme quando me libertei do peso de ter de acompanhar o registo contemporâneo ad eternum da ilha. Tudo tem um fim e a aventura é única. O que vivi no Corvo não se volta a viver. Foi outra lição do desapego”.
O cineasta aprendeu que, mesmo que o cinema seja a vida, ou fantasia de vida, tem que aprender quando parar de filmar. Para que, mais tarde, possa filmar novamente.
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Vasco Câmara e Mário Lopes, Público
"Cada filme que faço é uma revolução na minha vida", diz Gonçalo Tocha. E essa é a sua forma de estar no cinema. A cada filme se entrega como a um projeto de vida, sempre num tom íntimo e pessoal. A viagem é o viajante. Em Balaou, obra de estreia que venceu o Indie Lisboa, partiu em busca dos Açores da sua mãe e deixou-se levar por um barco entre as ilhas. Em É na Terra, não é na Lua vai ao último lugar do arquipélago que lhe corre no sangue. E deixou-se deslumbrar pela ilha e por aquela sociedade. São três horas de filme retiradas de quase 200 filmadas, que mostram de tudo um pouco, desde a vida noturna no bar da vila ao insólito período de campanha eleitoral. Gonçalo Tocha, 33 anos, com apenas dois filmes, tornou-se um dos documentaristas de maior relevo no panorama nacional. Divide a sua atividade artística entre o cinema e a música. Formou os Lupanar (a banda de Ana Bacalhau antes dos Deolinda) e os projetos Tocha Pestana e Gonçalo Gonçalves, que brevemente conhecerão novas edições discográficas.
O teu filme anterior, Balaou, passava-se em grande parte dentro de um barco ao largo dos Açores. O que achaste mais isolado, o barco ou a Ilha do Corvo?
Obviamente o barco é muito mais isolado. Mas fiquei com a ideia, até pela sua forma redonda, de que o Corvo é um barco parado no mar. As pessoas é que se mexem, a ilha fica sempre parada.
Logo no início do filme propões-te a um exercício exaustivo, a filmar cada rosto, a captar a totalidade do Corvo sem que nada te escape. Mas, obviamente, há coisas que não estão no filme... Ou estarão lá todos os rostos?
Acho que nós fizemos mesmo tudo o que queríamos. A exaustão está lá, não podia era entrar tudo no filme, porque só tem três horas. Mas existe o arquivo, que foi quase de 200 horas. O único pressuposto que eu tinha era que aquela era uma oportunidade de fazer um filme sobre tudo. Só ali podíamos ter essa pretensão. Há uma única vila, não há terras vizinhas, o mundo em síntese.
Aliás, não há um eremita que seja a viver fora da Vila do Corvo.
Houve um austríaco que o conseguiu durante alguns anos e depois foi-se embora. Teoricamente, nem sequer é permitido, porque é obrigado a viver sem saneamento básico, sem água nem luz, uma experiência radical.
O Corvo é um caso exemplar para um estudo sociológico, um meio pequeno, mas não comparável com uma aldeia isolada em Trás-os-Montes.
Nos anos 60 e 70 escreveram-se alguns livros sobre isso, mas versavam essencialmente sobre o antigo comunitarismo do Corvo, sem que fosse feita uma análise exaustiva aos modos de vida. As múltiplas visões do que acontece lá dentro é que nunca se esgotarão no filme. Há sempre mais. É uma ilha em completa mutação. Está tudo a acontecer. À partida imaginamos que nada se passa lá, mas é precisamente ao contrário: tudo se passa, mas a uma escala pequena. Um pequeno nada é um grande acontecimento. E o Corvo sempre esteve aberto a muitas rotas. Antes do barco a motor todas as rotas passavam por lá. Por isso foi constante o aparecimento de navegadores, piratas, de outras culturas. Os corvinos estavam sempre de olhos virados para a América. Não era de todo uma sociedade fechada. Era fechada na sobrevivência, na autossuficiência, mas não no conhecimento do que se passava à volta.
Notaste isso hoje em dia?
Hoje é uma sociedade diferente, que está a sofrer uma mudança radical. Podemos imaginar que toda a evolução que Portugal sofreu em 80 anos, o Corvo está a sofrer em 20. Tudo ao mesmo tempo. Isso vai criar roturas e contrastes, que o filme também tem. Joga com esses contrastes entre o moderno e o antigo, o rural e o urbano, o modo de vida dos avós e das novas gerações. Está ali em choque: tudo ao molhe e fé em Deus.
Sentiste dificuldade em entrar naquela sociedade? São muito desconfiados?
É uma sociedade que se autoprotege. Eu sabia, à partida, que essa desconfiança iria existir. Então decidi assumir tudo claramente desde início. E é por isso que chego ao Corvo logo com a câmara de filmar. Tinha que assumir, "eu sou o gajo da câmara". E isso permitiu-me estar sempre a filmar. Avisei logo: "Isto está sempre ligado."
A população é muito envelhecida?
Nem por isso, foram criados empregos na área dos serviços e a população mais nova ficou..
Deu-te uma sensação de claustrofobia?
Não, porque estava tudo a acontecer, uma surpresa atrás de outra, tudo era novidade, um deslumbramento. Nunca senti que não havia mais nada para fazer.
E os corvinos sentem a ânsia de sair dali?
É caso a caso. Quando fiz o filme procurei o contrário. A minha pergunta era: por que é que esta ilha pode ser o centro do mundo? Porque para quem é dali o Corvo é sempre a sua terra, por mais longe que esteja. O que queria saber é o que faz disto o umbigo. Eu fui adotado pela população e sempre que saí do Corvo senti-me perdido, o mundo pareceu-me demasiado grande. E isso é qualquer coisa que os corvinos têm de especial: o seu mundo é demasiado pequeno e abstrato.
Um centro do mundo que também está fora do mundo. É quase a lua?
As condições geográficas são inacreditáveis. É um grande mergulho, um pedaço de terra no meio do oceano, exposto a todos os ventos e correntes. Esse impacto é inesquecível no próprio corpo, ouve-se sempre o mar brutalmente, numa paisagem a pique, toda a ilha é vertical. Mas em termos de sociedade, a vida humana repete-se. Os hábitos repetem-se. Apesar da distância, aquilo é Corvo, Açores, Portugal, Europa. Está ali marcado, é uma sociedade ocidental e europeia.
Há partes especialmente caricatas, como o período da campanha eleitoral, em que a ilha pára.
Filmei as eleições todas e o ato eleitoral propriamente dito, os vencedores... mas não tinha espaço para mostrar, seria outro filme. Aquilo mexe com toda a gente. É uma das coisas do Corvo que é única, em mais nenhum lado há uma campanha daquele tipo, porque muito poucos votos dão muito poder.
Os corvinos são os açorianos mais esquecidos ou, pelo contrário, dado o seu afastamento, acabam por ser protegidos?
Já não são assim tão esquecidos. Antes sim. Por isso é que era uma sociedade muito digna e valente. Não podiam contar com ninguém. E os barcos apareciam só de seis em seis meses. Nem sequer havia dinheiro. A única coisa que vinha de fora era o açúcar. Isso cria uma sociedade muito brava. Portugal é a periferia da Europa, os Açores estão na periferia de Portugal, e todas as ilhas têm a sua periferia. Todas menos o Corvo. O Corvo é a periferia das Flores.
E foi esse 'fim do mundo' que te atraiu?
Quis fazer um filme no limite. Em que não soubesse quando acabava, que fosse uma aventura na rodagem, autónoma e solitária. Eu fui para o Corvo em 2007, depois de mostrar o Balaou em São Miguel. Fui à boleia de barcos à vela e passei pelas ilhas todas até chegar lá. Ninguém me conhecia quando cheguei ao Corvo. E fiz tudo a partir do nada, não quis fazer repérage. A ideia era recriar a energia dos exploradores que vão a um sítio que não conhecem e deixam-se embrenhar e maravilhar por tudo o que acontece. Se o filme tem alguma virtude é mostrar a energia da rodagem, abrir o livro de bordo.
Tal como tinhas feito no Balaou...
Sim, há recorrências na maneira de contar. Quando comecei a montar o filme, experimentei fazer de outra forma, mas para o filme ser honesto com ele próprio tinha que seguir este roteiro. Mas é como nos livros de viagem: são maravilhosos porque acompanhamos o processo todo da viagem do narrador e não só as consequências.
E agora? Já estás a preparar outra coisa?
Ainda não, estou dedicado à distribuição e queria intercalar com os meus projetos musicais. Este filme acompanha quatro anos da minha vida. Joguei tudo quanto tinha. Pensei: "Isto ou me mata ou me dá uma segunda vida". Acabei por tê-la, mas estive prestes a queimar tudo. Fazer o filme foi uma revolução na minha vida. Agora não sei o que se segue, mas sei que vai ser nos Açores.
Mas onde se poderá ir além da Ilha do Corvo?
Não sei, talvez ao fundo do mar.
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Manuel Halpern, Visão
Gonçalo partiu para a mais pequena ilha dos Açores porque sentiu que teria que pegar novamente na câmara. É um cineasta que vive de arrebatamentos: depois de “Balaou” dissera não saber se faria outro filme e diz o mesmo agora, quando terminou este filme de uma demência surda, em que nada está explodido – a meio é que percebemos que é algo gigantesco, porque já passaram quase duas das suas três horas – que se tornou numa obsessão de que não estava certo de se libertar. Gonçalo diz não saber se fará outro filme e não é pose.
“Mas vês-te como cineasta?”, perguntámos quando já passáramos pela música – Tocha também é Gonçalo Gonçalves, “o cantor romântico abandonado”, criação que é acto de amor (à ideia de um tempo e de um lugar e à música correspondente) no limite de gesto de performer. Passáramos por isso e ele dissera-nos que “fazer música aparece primeiro [que o cinema]: “Estive anos a ver cinema, a comer cinema. Sabia que mais tarde iria fazer qualquer coisa, esperava o momento. O ‘Balaou‘ foi esse momento.” Perguntámos então se se via como cineasta. Olhou-nos com surpresa e timidez, soltou um “talvez”, depois um “sim” interrogativo à espera de confirmação. Disse por fim. “Não consigo responder a isso. Estou naquele ponto em que não sei se vou fazer outro filme. Se calhar sou um cineasta quando aparece um novo projecto. Então percebo, ‘ah, continuo a ser cineasta‘”. Neste caso, projecto talvez seja palavra demasiado burocrática para descrever o processo. Gonçalo parte à descoberta. Como que responde a um chamamento. “A ilha é a estrela do filme”, entusiasma-se. “Na minha família de São Miguel [o avô nasceu lá, Gonçalo, na infância, passava todos os verões no arquipélago] ninguém conhece o Corvo. Digo que vou ao Corvo e é como se dissesse que vou ao Taiti ou às Maldivas”. Foi por isso que teve que partir, sem saber em busca de quê. “Ia filmar a comunidade. Ia filmar a ilha”. Como um explorador. “Cada dia que passava era mais aberto, cada vez havia mais coisas para descobrir. Nunca senti a claustrofobia [na ilha]. Câmara à mão e tripé, 24 horas por dia. Nunca cheguei ao ponto de dizer ‘já não há nada para filmar’”. Em “Balaou”, também tínhamos o mar como cenário. O que separa São Miguel de Lisboa, e que Gonçalo Tocha filmou numa viagem que fora descoberta, exorcismo e por fim, aceitação. Fora a morte da mãe, sete meses antes da rodagem, a espoletar uma “viagem para aceitar o olvido das coisas”. Agora, tem um barco em que navega, aquele que o conduz ao Corvo, essa ilha sobre a qual diz o capitão belga que lhe dera boleia, “os Açores são loucos, mas o Corvo é mais louco ainda”.
O barco de Gonçalo Tocha é a ilha ela mesma.
Tocha é o aventureiro que observa, que perscruta, que se aventura. Os Açores, e o Corvo, como descobriu, são o sítio perfeito para se aventurar. Uma história antiga. “A mitologia dos Açores marcou-me profundamente. Quando somos pequenos, a natureza marca-nos, principalmente se for uma natureza que cheiramos e tocamos. Os Açores eram o sítio onde ia todos os anos em pequeno e marcou-me. Não era a questão de estar isolado numa ilha. Era a ligação entre as ilhas, era ser um ponto de passagem”. Mais tarde, mergulhou nos arquivos em busca da história, mas esse deslumbramento da infância não se desvaneceu. Por isso mesmo, É NA TERRA NÃO É NA LUA não é um documentário que pretenda dar respostas.
É uma aventura náutica em terra firme e a Gonçalo Tocha interessam tanto os pessoas que filma, a história que guardam e corporizam, quando uma certa neblina de fantasia que a câmara não esconde.
Todos os processos no filme vão no sentido de conhecermos as pessoas filmadas, de conhecermos o velho caçador de baleias, o bailarino que se harmoniza no verde natural, o casal que dança uma canção de Paulo Gonzo no pequeno café que é também bar e discoteca, os homens que desbastam a erva daninha da encosta ou aqueles dois que comentam, com conhecimento que nos escapa e olhar treinado com todo o tempo do mundo, o impacto as vagas arrojando sobre o cimento e escalando o pontão. Todos os processos do filme, continuemos, parecem manifestar um desejo de aproximação, mas a forma como Gonçalo Tocha e o sonoplasta Dídio Pestana aparecem e trocam impressões, corpo real ou em sombra, e a forma como narram em tom sereno, contemplativo, os diálogos que pontuam a “descoberta” no filme, qual diário de bordo, tudo isso e os planos replicando fotos antigas, não são luz iluminando de “verdade”, no estrito sentido documental, este Corvo que é na Terra e não é na Lua – mas que se calhar, por isso mesmo, continua na lua.
Essa ilha meio nebulosa e escondida não se revela afinal “normal” e tão “próxima” de nós, como se pretende, por exemplo, em reportagem televisiva - a televisão tenta explicar, normalizar, diluir a diferença num todo perfeitamente legível, sem sobressaltos. Não era isso que o filme procurava. “Não me interessa nada desmistificar os Açores, e principalmente o Corvo”. Isto é muito importante para Gonçalo Tocha, 32 anos, cineasta que só sente sê-lo quanto tem uma câmara na mão e, com ela, um objecto de desejo que filmar. Gonçalo é também um músico que não se limita a fazer canções. No duo Tocha Pestana, cruzamento entre glam T. Rex e baile popular Nel Monteiro que o reúne a Dídio Pestana, tão à vontade em clube berlinense quanto em praça de Alfama em noite de Santos, ou, principalmente, enquanto Gonçalo Gonçalves, o “cantor romântico abandonado” que idolatra Rei Roberto Carlos e Júlio Iglesias, encontramos, de uma forma mais evidente, esse desejo de fantasia, essa vontade de maravilhamento. Em Gonçalo Tocha, o cineasta, esse desejo está presente, mas manifesta-se de forma diferente. Na música, Tocha conduz a orquestra. No cinema, responde ao apelo de um cenário e do que nele se esconderá sobre o aparente - descobre-o surpreendente sob um manto de normalidade.
“Chegas à verdade pelo artifício”, disse-nos em 2010 na sua casa decorada como museu Gonçalo Gonçalves, com relógios em forma de coração na parede, bibelots com corpo bailarina na mesinha, gambiarra tremeluzente serpenteando os móveis ou vinis de cantores românticos europeus e sul-americanos espalhados pela sala. “Crias uma distância que te protege. Não te fecha [ao mundo], abre [um mundo]”. Isso, no limite, une-lhe a música ao cinema.
Com esta diferença fundamental. “O cinema para mim é uma coisa de muito tempo. De aventura pessoal. Para mim, é o desconhecido total. A música nasce de referências que tenho, deste quase desejo de me transformar num cantor dos anos 1970 e querer viver como um”.
É NA TERRA NÃO É NA LUA foi filmado em três viagens de um mês e meio. Esse regressar foi importante para a conseguir familiaridade e vencer, dentro do possível, a desconfiança. “No Corvo é importante voltar. Estão habituados a que chegues e vás embora. Voltar abre o livro”. Não havia plano de rodagem pré-definido. Apenas a vontade de filmar. De filmar tudo, com essa urgência de “isto está tudo a mudar, está tudo a desaparecer” – as pessoas, precisará, eram as pessoas, os octogenários e nonagenários e as suas histórias de uma ilha sem historiografia fixada que desapareciam. Gonçalo e Dídio estavam a “acompanhar o mundo a acontecer” perante os seus olhos.
Falámos acima de fantasia. A fantasia que sobressai em É NA TERRA NÃO É NA LUA não é fantasia exuberante de conto fantástico. A sua dimensão é outra. O delirante período eleitoral que, dado que a maioria da população está directamente envolvida nele, pára a ilha – “a política é o melhor que há; devia haver eleições todos os meses”, atira o homem que passa no seu jipe. Esse lado mais selvagem e tradicional, com o porco e ser preparado para a matança manhã cedo, convivendo com um progresso que ganha contornos de futurismo maquinal – o matadouro de cinzento chapa e a água que escorre dos aparelhos, em ambiente de “Blade Runner” asséptico. E a sensação de viagem subentendida nas memórias de emigração para os EUA, expostas nos pratos com bandeira americana nas paredes das casas, explícita no mecânico que, iluminado pelo crepúsculo, explica sem papas na língua que planeia ir para Angola – “para dinheiro é lá” – porque “a Europa está toda fodida”. Mas talvez essa possibilidade de fantasia que se explique melhor com a história do ornitólogo inglês que certo dia, enquanto vagueava sozinho, avistou um pássaro raríssimo e vomitou de tanta emoção. Vomitou do nervosismo da descoberta e de estar a viver aquele momento único sozinho, sem ninguém com quem a partilhar. No minúsculo mas interminável Corvo de Gonçalo Tocha, as descobertas ficam com os 440 habitantes da ilha, incorporadas no seu código genético, entre lenda e (pouca) história oficial, ao longo dos cinco séculos que distam da descoberta da ilha por Duarte e João de Teive, em 1452.
É NA TERRA NÃO É NA LUA é pautado pelo lento tecer de um gorro. Um gorro corvino feito pela mulher de 75 anos que, com “paciência de velha” (as palavras são dela), o prepara para Gonçalo Tocha. Aquele gorro é como que ritual de passagem. Quando o colocar na cabeça, Gonçalo será oficiosamente um corvino. Mas o que é ser corvino? Não sabe, mas sabê-lo não é importante. “O filme é o baptismo”. O ritual de passagem é que é importante. Aquilo em que nos transformamos? Logo veremos.
Um dia depois da entrevista, recebemos um mail. Dizia isto: “Fiquei um pouco sem resposta quando me perguntaste se me considerava um cineasta, porque nunca tinha pensado nisso nem nunca ninguém me tinha perguntado. ‘Balaou’ foi o filme da revelação pessoal e o Corvo [É NA TERRA NÃO É NA LUA] o filme da descoberta do mundo, posso dizer que foi o meu baptismo civilizacional. Só consegui terminar este filme quando me libertei do peso de ter de acompanhar o registo contemporâneo ad eternum da ilha. Tudo tem um fim e a aventura é única. O que vivi no Corvo não se volta a viver. Foi outra lição do desapego”.
O cineasta aprendeu que, mesmo que o cinema seja a vida, ou fantasia de vida, tem que aprender quando parar de filmar. Para que, mais tarde, possa filmar novamente.
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Vasco Câmara e Mário Lopes, Público
"Cada filme que faço é uma revolução na minha vida", diz Gonçalo Tocha. E essa é a sua forma de estar no cinema. A cada filme se entrega como a um projeto de vida, sempre num tom íntimo e pessoal. A viagem é o viajante. Em Balaou, obra de estreia que venceu o Indie Lisboa, partiu em busca dos Açores da sua mãe e deixou-se levar por um barco entre as ilhas. Em É na Terra, não é na Lua vai ao último lugar do arquipélago que lhe corre no sangue. E deixou-se deslumbrar pela ilha e por aquela sociedade. São três horas de filme retiradas de quase 200 filmadas, que mostram de tudo um pouco, desde a vida noturna no bar da vila ao insólito período de campanha eleitoral. Gonçalo Tocha, 33 anos, com apenas dois filmes, tornou-se um dos documentaristas de maior relevo no panorama nacional. Divide a sua atividade artística entre o cinema e a música. Formou os Lupanar (a banda de Ana Bacalhau antes dos Deolinda) e os projetos Tocha Pestana e Gonçalo Gonçalves, que brevemente conhecerão novas edições discográficas.
O teu filme anterior, Balaou, passava-se em grande parte dentro de um barco ao largo dos Açores. O que achaste mais isolado, o barco ou a Ilha do Corvo?
Obviamente o barco é muito mais isolado. Mas fiquei com a ideia, até pela sua forma redonda, de que o Corvo é um barco parado no mar. As pessoas é que se mexem, a ilha fica sempre parada.
Logo no início do filme propões-te a um exercício exaustivo, a filmar cada rosto, a captar a totalidade do Corvo sem que nada te escape. Mas, obviamente, há coisas que não estão no filme... Ou estarão lá todos os rostos?
Acho que nós fizemos mesmo tudo o que queríamos. A exaustão está lá, não podia era entrar tudo no filme, porque só tem três horas. Mas existe o arquivo, que foi quase de 200 horas. O único pressuposto que eu tinha era que aquela era uma oportunidade de fazer um filme sobre tudo. Só ali podíamos ter essa pretensão. Há uma única vila, não há terras vizinhas, o mundo em síntese.
Aliás, não há um eremita que seja a viver fora da Vila do Corvo.
Houve um austríaco que o conseguiu durante alguns anos e depois foi-se embora. Teoricamente, nem sequer é permitido, porque é obrigado a viver sem saneamento básico, sem água nem luz, uma experiência radical.
O Corvo é um caso exemplar para um estudo sociológico, um meio pequeno, mas não comparável com uma aldeia isolada em Trás-os-Montes.
Nos anos 60 e 70 escreveram-se alguns livros sobre isso, mas versavam essencialmente sobre o antigo comunitarismo do Corvo, sem que fosse feita uma análise exaustiva aos modos de vida. As múltiplas visões do que acontece lá dentro é que nunca se esgotarão no filme. Há sempre mais. É uma ilha em completa mutação. Está tudo a acontecer. À partida imaginamos que nada se passa lá, mas é precisamente ao contrário: tudo se passa, mas a uma escala pequena. Um pequeno nada é um grande acontecimento. E o Corvo sempre esteve aberto a muitas rotas. Antes do barco a motor todas as rotas passavam por lá. Por isso foi constante o aparecimento de navegadores, piratas, de outras culturas. Os corvinos estavam sempre de olhos virados para a América. Não era de todo uma sociedade fechada. Era fechada na sobrevivência, na autossuficiência, mas não no conhecimento do que se passava à volta.
Notaste isso hoje em dia?
Hoje é uma sociedade diferente, que está a sofrer uma mudança radical. Podemos imaginar que toda a evolução que Portugal sofreu em 80 anos, o Corvo está a sofrer em 20. Tudo ao mesmo tempo. Isso vai criar roturas e contrastes, que o filme também tem. Joga com esses contrastes entre o moderno e o antigo, o rural e o urbano, o modo de vida dos avós e das novas gerações. Está ali em choque: tudo ao molhe e fé em Deus.
Sentiste dificuldade em entrar naquela sociedade? São muito desconfiados?
É uma sociedade que se autoprotege. Eu sabia, à partida, que essa desconfiança iria existir. Então decidi assumir tudo claramente desde início. E é por isso que chego ao Corvo logo com a câmara de filmar. Tinha que assumir, "eu sou o gajo da câmara". E isso permitiu-me estar sempre a filmar. Avisei logo: "Isto está sempre ligado."
A população é muito envelhecida?
Nem por isso, foram criados empregos na área dos serviços e a população mais nova ficou..
Deu-te uma sensação de claustrofobia?
Não, porque estava tudo a acontecer, uma surpresa atrás de outra, tudo era novidade, um deslumbramento. Nunca senti que não havia mais nada para fazer.
E os corvinos sentem a ânsia de sair dali?
É caso a caso. Quando fiz o filme procurei o contrário. A minha pergunta era: por que é que esta ilha pode ser o centro do mundo? Porque para quem é dali o Corvo é sempre a sua terra, por mais longe que esteja. O que queria saber é o que faz disto o umbigo. Eu fui adotado pela população e sempre que saí do Corvo senti-me perdido, o mundo pareceu-me demasiado grande. E isso é qualquer coisa que os corvinos têm de especial: o seu mundo é demasiado pequeno e abstrato.
Um centro do mundo que também está fora do mundo. É quase a lua?
As condições geográficas são inacreditáveis. É um grande mergulho, um pedaço de terra no meio do oceano, exposto a todos os ventos e correntes. Esse impacto é inesquecível no próprio corpo, ouve-se sempre o mar brutalmente, numa paisagem a pique, toda a ilha é vertical. Mas em termos de sociedade, a vida humana repete-se. Os hábitos repetem-se. Apesar da distância, aquilo é Corvo, Açores, Portugal, Europa. Está ali marcado, é uma sociedade ocidental e europeia.
Há partes especialmente caricatas, como o período da campanha eleitoral, em que a ilha pára.
Filmei as eleições todas e o ato eleitoral propriamente dito, os vencedores... mas não tinha espaço para mostrar, seria outro filme. Aquilo mexe com toda a gente. É uma das coisas do Corvo que é única, em mais nenhum lado há uma campanha daquele tipo, porque muito poucos votos dão muito poder.
Os corvinos são os açorianos mais esquecidos ou, pelo contrário, dado o seu afastamento, acabam por ser protegidos?
Já não são assim tão esquecidos. Antes sim. Por isso é que era uma sociedade muito digna e valente. Não podiam contar com ninguém. E os barcos apareciam só de seis em seis meses. Nem sequer havia dinheiro. A única coisa que vinha de fora era o açúcar. Isso cria uma sociedade muito brava. Portugal é a periferia da Europa, os Açores estão na periferia de Portugal, e todas as ilhas têm a sua periferia. Todas menos o Corvo. O Corvo é a periferia das Flores.
E foi esse 'fim do mundo' que te atraiu?
Quis fazer um filme no limite. Em que não soubesse quando acabava, que fosse uma aventura na rodagem, autónoma e solitária. Eu fui para o Corvo em 2007, depois de mostrar o Balaou em São Miguel. Fui à boleia de barcos à vela e passei pelas ilhas todas até chegar lá. Ninguém me conhecia quando cheguei ao Corvo. E fiz tudo a partir do nada, não quis fazer repérage. A ideia era recriar a energia dos exploradores que vão a um sítio que não conhecem e deixam-se embrenhar e maravilhar por tudo o que acontece. Se o filme tem alguma virtude é mostrar a energia da rodagem, abrir o livro de bordo.
Tal como tinhas feito no Balaou...
Sim, há recorrências na maneira de contar. Quando comecei a montar o filme, experimentei fazer de outra forma, mas para o filme ser honesto com ele próprio tinha que seguir este roteiro. Mas é como nos livros de viagem: são maravilhosos porque acompanhamos o processo todo da viagem do narrador e não só as consequências.
E agora? Já estás a preparar outra coisa?
Ainda não, estou dedicado à distribuição e queria intercalar com os meus projetos musicais. Este filme acompanha quatro anos da minha vida. Joguei tudo quanto tinha. Pensei: "Isto ou me mata ou me dá uma segunda vida". Acabei por tê-la, mas estive prestes a queimar tudo. Fazer o filme foi uma revolução na minha vida. Agora não sei o que se segue, mas sei que vai ser nos Açores.
Mas onde se poderá ir além da Ilha do Corvo?
Não sei, talvez ao fundo do mar.
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Manuel Halpern, Visão
Realização, Fotografia, Montagem, Voz, Produção: Gonçalo Tocha
Som, Banda-Sonora, Voz: Didio Pestana
Montagem: Rui Ribeiro, Catherine Villeret
Pós-Produção Vídeo: Sérgio Aragão
Colorista: Ignacio Ribera
Mistura de Som: André Neto
Origem: Portugal
Ano: 2011
Duração: 180’
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