Obras-Primas na Sede, 5ªf 31 - A VIA LÁCTEA de Luis Buñuel, o Herege.

21h30. Entrada livre. Cerveja ou água a 1€...

Ciclo "Buñuel, o Herege", antecipando a Conferência sobre este realizador que será proferida pelo Dr Reia Baptista no próximo dia 6 de Junho, na Sede, integrada no Projecto "Livros em Cadeia" (iniciativa com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian).


La Voie Lactée é uma "colagem perversa". A expressão aplica-se por igual a todos os filmes finais e coloridos de Buñuel, com a excepção de Tristana. Desde que se dê ao primeiro termo a acepção que sempre teve para os surrealistas e ao segundo a acepção que sempre teve para Buñuel.

O caso de La Voie Lactée é flagrante. ''Interessam-me as heresias como me interessam todos os inconformismos do espírito humano, seja na religião, na cultura ou na política", disse o autor. Face a uma ortodoxia, a heresia é o comportamento perverso, como face à normalidade sexual o são as chamadas perversões. A Séverine de Belle de Jour é tão perversa como os "pateliers" do século XVI, a que alude o louco padre da primeira estalagem, que diziam que "o corpo de Cristo estava na eucaristia como a lebre no patê" (e não foi Buñuel quem inventou a imagem nem nenhuma outra deste filme) ou como Prisciliano, o bispo que fala latim com pronúncia restaurada. Ou ainda o jansenista, ou todos os outros heréticos deste filme. São os desvios da norma-padrão.

Isto quanto à perversidade. Quanto à collage, bastará ler a ficha técnica para abrir a boca de espanto: que obra será esta, onde intervêm Cristo e a Virgem, o Diabo e o Marquês de Sade, bispos e prostitutas, freiras e "mâitres" de restaurantes de luxo, cegos e polícias, professoras primárias e o Papa?

Nem Cecil B. DeMille, nos seus momentos mais inspirados, inventou tal "salada". Uma série de sketches? Buñuel rejeitou expressamente tal forma ou tal fórmula, e o filme tem sempre um fio condutor que é a peregrinação dos mendigos de Paris a Compostela. A construção da "continuidade descontínua" desta prodigiosa obra é a das collages e a sua figura, como o título da obra, uma constelação.

A José de la Colina e Tomás Perez Turrent, Buñuel disse: "Nunca lhes aconteceu, ao ler um romance ou ao ver um filme, ter vontade de que o autor passe a outro personagem, a outra história? A mim, sim. Por exemplo, quando leio o Crime e Castigo, digo com os meus botões: Que chatice estar sempre a seguir Raskolnikov. O que me apetecia, agora, em vez de subir mais uma escada com ele, era poder dizer-lhe 'Adeus, boa noite' e, em vez de o acompanhar, ir atrás do miúdo que saiu para comprar pão e com quem Raskolnikov se cruzou um segundo no caminho".


No fundo, são mais uma vez processos das novelas pícaras espanholas, do D.Quixote ou, para citar exemplos posteriores, invocados pelo próprio Buñuel, de Gil Blas, de Peter Ibbetson ou do Manuscrito Encontrado em Saragoça. Cinematograficamente, e para fazer agora comparação com Hitchcock, há uma analogia com Family Plot, quando o primeiro casal quase atropela a raptora, Karen Black. Travões a fundo e a câmara a mudar de rumo, seguindo em perpendicular essa mulher de negro para passar a outra história.

E não é certamente por acaso que as sequências que dão mais "chaves" se passam numa "auberge espagnole", expressão que em francês tanto tem sentido literal ("estalagem espanhola") como metafórico ("casa de doidos", "lugar da máxima confusão"). Esse "episódio" centra-se, inicialmente, na narração pelo padre do milagre da Virgem. É uma história de "como se", em que a Virgem apagou o tempo, para "desfazer" o real, tornando inexistente o pecado de uma carmelita.

Esse lugar do tempo, esse desfazer do real são o "raccourci" de todo o sentido do filme, em que sempre se está a caminhar em vias análogas (sempre como se nada se tivesse passado, sempre como se o mais extraordinário fosse o mais banal, sempre como se todos os tempos e locais coexistissem, sempre sem delimitações da zona do real, sempre sem relações de causa ¬a efeito entre antecedentes e consequentes). Passa-se para a noite na pousada. O estalajadeiro mete o candeeiro de petróleo dentro do armário e tanto basta para uma citação evangélica: "Ninguém acende uma vela para a meter debaixo dum alqueire", expressão metafórica da ocultação da verdade. Qual verdade? Pressentimo-la algo "trouble" porque o que resulta é a insólita proibição - sem razão - de que os dois rapazes durmam no mesmo quarto, e a insólita advertência para não abrirem a porta a ninguém. Mas, nos quartos, cada um deles encontra novo companheiro: a rapariga (para Rodolphe), o desconhecido (para François). É o mundo do conto de fadas, a que se vem juntar uma forte carga erótica. Porque se os inesperados "partenaires" dos dois homens (sequências paralelas) são muito "puros", nenhuma pureza existe quando o padre regressa a bater à porta e fica de ouvido colado a ela, "voyeur" e ouvinte frustrado. Enquanto decorre esse incrível diálogo sobre a riqueza dos mistérios da Santíssima Virgem e, depois, sobre a repugnância divina pelo pecado da impureza, Buñuel procede a ilustrações que são outras tantas ocultações.

O padre entra e sai do quarto, como que "ilustrando" o mistério da virgindade de Nossa Senhora, mas entra e sai também "ocultando" o carácter erótico da relação de confissão invertida. Mas, quando essa inversa e perversa confissão se torna mais "quente" (o padre cada vez mais de ouvido colado à porta), a rapariga deita-se abertamente na cama e diz-lhe que é virgem e, portanto, sem pecado. O padre refuta-a e só consegue que Rodolphe (pela primeira vez) se sente na cama dela, enquanto a rapariga quer saber das eventuais faltas da Virgem.

Nesse momento, o padre desinteressa-se e o inesperado casal apaga a luz e prepara-se para uma noite tranquila. O padre vai bater a outra porta.


Mesma sorte ainda no outro quarto, com um casal de homens. Aí já não há diálogo, a não ser a célebre réplica final do desconhecido: "O meu ódio à ciência e o meu horror à tecnologia ainda me acabarão por levar a essa absurda crença em Deus", que pôde aparecer como uma profissão de fé buñueliana. Depois - a não ser o sabre - não acontece mais nada e nunca veremos os estudantes ou os seus comparsas daquela noite. Quem quiser explicações está como o padre a bater à porta: fala doutra coisa e não vê nada. Explicar só leva à "absurda crença". Nesta paradigmática sequência fundem-se todas as ordens do imaginário do filme. A anulação do tempo e do espaço (como antes sucedera com o prodigioso duelo do jansenista e do jesuíta, presenciado pelos dois luteranos), a invocação da semelhança do mundo mágico e do mundo religioso (basta desejar para acontecer, como no episódio com Clémenti ou como no fuzilamento do Papa, tão singularmente premonitório), a irrisão de qualquer explicação racional ("Nome de Deus, Nome de Deus" e os peregrinos são logo atirados para fora do carro; se Deus existe que nos fulmine, e um raio caíu do céu; "os desígnios de Deus são impenetráveis" e jesuíta e jansenista vão-se embora, em boa paz), o absurdo servido na mesa do prazer, com o desejo e o medo, como seus duplos constantes. Sem que nada seja jamais explicado, essa associação permite (absurdamente) que o espectador siga sempre com tais emoções (prazer, desejo e medo) as querelas teológicas e os acontecimentos extraordinários, colocado no estádio da infância que lhe permite tudo (essas e outras histórias) como se ouvisse um conto ou um catecismo.

A distanciação irónica só intervém em "descargas". Apesar dela, ou por causa dela, o que queremos saber é, como as crianças: "e depois?".

Depois: Compostela vazia porque se descobriu que o corpo não era o de S. Tiago, mas o de Prisciliano (como durante muito tempo vozes autorizadas da Igreja o disseram) e Delphine Seyrig a cumprir o mandato do homem da capa, na citação explícita das palavras de Jeová a Oseias, do Livro dos Profetas (os filhos chamados "Não és o povo" e "Mais Misericórdia').

E o regresso a Cristo e ao episódio dos cegos. A câmara rente ao chão só enquadra pés. Cristo e os apóstolos transpõem a vala com facilidade. Um dos cegos também. O outro não. E é a esse nível (quem passa o filme, quem o não passa) que intervém o fim, sobre as ervas verdes. Última rasteira, num caminho cheio delas. Peregrinações pela via láctea dão muito que pensar...
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João Bénard da Costa, Luis Buñuel – As Folhas da Cinemateca




Título Original: La Voie Lactée
Realização: Luis Buñuel
Argumento: Luis Buñuel e Jean-Claude Carrière, baseado numa ideia original de Luis Buñuel
apoiada na Historia de los Heterodoxos Españoles de Marcelino Menendez Pelayo
e nos volumes dedicados às heresias da Histoire de I'Église de

Migne, ed. Paris, 1863
Fotografia: Christian Matras
Montagem: Louisette Hautecoeur e Luis Buñuel
Interpretação: Laurent TerziejJ (Jean), Paul Frankeur (Pierre), Bernard Verley (Jesus Cristo), Edith Scob (a Virgem Maria), Denis Manuel (Rodolphe, estudante protestante), Daniel Pilon (François, o amigo de Rodolphe), Pierre Clémenti (o diabo),
Origem: França/Alemanha/Itália
Ano: 1969
Duração: 98’

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